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O artista venezuelano, um dos principais representantes da arte cinética, terá duas instalações na Bienal
BERNARDO CARVALHO
Da Reportagem Local
Jesús Soto, 71, já esteve na Bienal de São Paulo em 1957, 1959 e 1963. Um dos maiores expoentes da arte cinética (leia texto abaixo), o artista venezuelano é um dos convidados especiais deste ano, com duas instalações do início dos anos 80, que fazem eco ao trabalho de um dos principais homenageados da mostra: Hélio Oiticica, embora a obra de Soto esteja baseada em princípios mais racionais que intuitivos.
"Fui convidado pelos organizadores da Bienal, que decidiram levar dois penetráveis. Um penetrável sonoro, construído com tubos de alumínio de diferentes diâmetros. Ao atravessar, você obtém uma música aleatória com os tubos batendo uns contra os outros. O outro é um penetrável com fios de nylon", disse o artista à Folha, de Caracas, por telefone.

Folha - Qual a atualidade da arte cinética hoje?
Jesús Soto - A arte cinética trata do movimento. Sempre haverá artistas trabalhando com o movimento. O que não se deve festejar são aqueles que fazem obras demasiado próximas das que nós haviamos criado. Por outro lado, o que faço não é apenas uma arte cinética. Tenho todo um trabalho com o movimento que vai além. Estou muito interessado em provar a desmaterialização dos sólidos, por exemplo, de uma forma óptica, já que sou um artista plástico. Não é um trabalho cinético mas sobre a vibração. Uso o movimento para demonstrar um outro aspecto da arte moderna.
Folha - Como a arte cinética, que representa o acabamento de certas questões da arte moderna, pode sobreviver num mundo onde a racionalidade e a objetividade científica são questionadas?
Soto - São ciclos típicos de nossas sociedades ocidentais. Voltamos ao obscurantismo, chegamos mesmo a ressuscitar a bruxaria. O homem, a certo momento, tem medo dos avanços e da evolução do pensamento científico. Ele se protege no irracional. Mas são ciclos. Um ciclo que estamos cumprindo agora. O homem não pode continuar a viver pensando que tudo está previsto em sua existência. Ele terá que reaprender a responsabilidade. Não se pode deixar a sociedade acreditar que divindades vão resolver as coisas.
Folha - A arte hoje perdeu o sentido e a razão?
Soto - A arte hoje regozija de coisas do passado, fecha os olhos para o futuro e para os conhecimentos do século 20. É uma arte que tem medo. Ela volta ao passado, à figuração e a composições semelhantes às da Renascença. A pintura acadêmica é a última moda. São momentos difíceis das sociedades, onde a evolução é negada. Penso que o homem chegou onde chegou pelo pensamento racional e não pela pura intuição. Vivemos um momento de crise, de medo das descobertas.
Folha - Como o sr. vê a reavaliação da arte latino-americana nos EUA, por exemplo?
Soto - Para mim, é um fiasco. A exposição do MoMA, por exemplo, foi mal escolhida. Os textos não foram escritos por especialistas. Isso só nos prejudica.
Folha - Qual é a intersecção entre arte e ciência na sua obra?
Soto - Trabalho num espaço virtual, sobre a quarta dimensão, que é o movimento. A relação que estabeleço com a ciência não é caricatural. A ciência demonstrou, ao mesmo tempo que a arte, uma nova forma de conceber o espaço. Desde o cubismo, o artista sabe que o espaço é também pelo menos quadrimensional. Não utilizo as formas científicas para construir um quadro. Tomamos consciência de uma nova realidade, que era intuída pelos artistas do passado, e que no século 20 chegou a um resultado quantitativo e mensurável. A arte evolui, assim como a ciência, através de descobertas.
Folha - Não há o risco dessa arte virar apenas uma ilustração de leis da física?
Soto - É justamente por isso que digo que não se trata de uma caricatura da ciência. São processos tipicamente artísticos. A história da vibração é colocada claramente, no final do século 19, pelos impressionistas. A paixão dos impressionistas foi encontrar a vibração da luz, que é a base das artes plásticas. A única possibilidade de atacar a arte cinética é confundindo o processo profundo da arte com uma espécie de caricatura dos resultados do conhecimento científico. Acho que meus penetráveis teriam encantado alguém como Monet. Ver um espaço vibrante, um espaço que não é mensurável. A liberdade absoluta está muito mais aí que num quadro fixo.
Folha - O sr. chegou a dizer que a luz excessivamente forte, dura, da Venezuela o afastou dos impressionistas na direção de Cézanne e dos cubistas...
Soto - Quando cheguei à França pela primeira vez, no outono, vi as árvores naquela atmosfera difusa e, nesse momento, compreendi os impressionistas. Não podia tê-los entendido com essa luz aqui da Venezuela, onde tudo é profundamente cortado, o homem é profundamente escuro e tudo passa do preto ao branco, da sombra à luz de uma forma quase agressiva. Você não vê a sutileza da luz.
Folha - Qual foi a principal contribuição do grupo que o sr. formou com Tinguely e outros artistas em Paris nos anos 50?
Soto - Achávamos que a arte nos anos 50 tinha fechado a porta. Achávamos que, depois de Mondrian, tudo andava em marcha a ré, que não podíamos ir adiante. A mesma coisa em relação a todos os artistas construtivistas, Malevitch e Gabo. Tomamos simultaneamente, sem nos conhecermos ainda, a consciência de que essa arte havia deixado sementes e que era preciso fazê-las germinar para alcançar uma arte mais avançada. Conheci o trabalho de Tinguely em 54 numa exposição chamada "Meta-Malevitch". Os quadrados de Malevitch giravam com motores. Eu tentava fazer a mesma coisa de uma outra maneira, com fibra de vidro, tentava colocar os quadrados no espaço, como queria Malevitch. Creio que grande parte de nossa contribuição foi apresentar soluções a propostas que tinham se imobilizado. Encontramos saídas pela via do espaço temporal.
Folha - O sr. diz que seu trabalho mostrou um caminho para os impasses da arte abstrata. O sr. acredita que essa saída serviu a outros artistas?
Soto - Meu trabalho me permite ver sempre novas saídas. Presto muita atenção às vias que o próprio trabalho me apresenta. Se vejo um pequeno caminho, sou eu o primeiro a segui-lo. É difícil para as pessoas que vêm depois encontrar novas possibilidades dentro desse mesmo trabalho. Como num trem. O primeiro a ver a paisagem é aquele que o dirige. Se a arte cinética não encontrou novos artistas, não é por que ela acabou mas justamente por que continuamos vivos e desenvolvendo todas as suas possibilidades. Acho que virá um dia em que uma nova equipe surgirá e fará em relação à arte do momento um trabalho equivalente ao que fizemos nos anos 50.
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