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Neste artigo, onde se lê "Ele tinha fama de louco, de teimoso, de teimoso, de estadista", leia-se estatista.ERRAMOS
Itamar encena mito do 'homem qualquer'
O presidente foi uma espécie de reizinho que encontrou em Fernando Henrique o primeiro-ministro certo
Itamar só existiu, a rigor, nos episódios românticos em que esteve envolvido
É absurdo dizer que Itamar fez seu sucessor; o sucessor é quem fez Itamar
Itamar foi a prova de que o Brasil pode prescindir de um presidente
MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas G anha força a idéia de que Itamar Franco foi, afinal, um bom presidente; de que fez um bom governo. Nas pesquisas de opinião, é enorme o prestígio de Itamar. Ele conseguiu –fato inédito desde 1945, desde 1926– "fazer seu sucessor" pelo voto popular. Ninguém se dispõe a criticar Itamar Franco.
Eu também não. Ele não merece críticas, pois qualquer crítica a ele se contamina da desimportância de sua atuação.
Vejo uma fotografia de Itamar: não o admiro, não o reprovo. Simpatizo moderadamente com seu jeito garnisé. Alternam-se em seu rosto o espevitamento galante e um mineirismo deprimido. O topete lhe dá alegria, mas o cerca de uma estranheza sessentona.
Itamar não é gordo nem magro, não é alto nem baixo, não é bonito nem feio, não é charmoso nem desprovido de charme.
É como se a personalidade abusiva de seu antecessor, Fernando Collor de Mello, tivesse absorvido tudo o que um presidente possa ter de "pessoal". Itamar quase não existe.
Só existiu, a rigor, nos episódios românticos em que esteve envolvido: Lisle Lucena, Lilian Ramos, esta misteriosa June. Aí tivemos os fatos mais marcantes de sua administração.
Sarney era um homem comum e afável, que por momentos se acreditou estadista. Foi capaz de discursos eloquentes, sentiu-se "cobrado" pela sociedade, empenhou-se em mostrar ao país que não era tão medíocre como se acreditava que ele fosse. Tentou provar isso até para si mesmo.
Há algo de patético em Sarney, porque nada daquilo deu certo. Há algo de pacato em Itamar, porque ele foi uma espécie de Sarney bem-sucedido. Teve sorte, não atrapalhou demais. Encenou, na Presidência, o mito do "homem qualquer" –l'uomo qualunque, der Mensch ohne Eigensbhaften, el hombre mediocre, l'homme sensual moyen; todos os idiomas e todas as nações aspiram ao que Itamar concretizou.
Esta a maior obra de seu governo: ter sido pouco presidente. Uma espécie de reizinho que encontrou o primeiro-ministro certo, a saber, Fernando Henrique, cujo maior desafio, agora, é o de deixar de ser primeiro-ministro, com tudo o que o termo pressupõe de urbanidade, refinamento, trânsito, inteligência e cancha, para ser presidente –com tudo o que o termo exige de rusticidade e liderança.
De todo modo, é absurdo dizer que Itamar fez seu sucessor. O sucessor é quem fez Itamar.
Temia-se, quando Itamar assumiu o governo, quanto à força de suas convicções e de sua personalidade. Ele tinha fama de louco, de teimoso, de estadista. Esbravejava contra os juros altos; propusera, no Senado, uma certa "emenda Jim Jones", pela qual todos os parlamentares do país deveriam renunciar aos cargos que ocupavam.
Este suicida em potencial consegue, entretanto, ser feliz. Disciplinado pelo Consenso de Washington, pelos economistas, pelo neoliberalismo, resignou-se ao cargo. Opção proveitosa: o Plano Real, o controle da moeda, as privatizações caíram sobre sua cabeça a princípio como castigo, depois como coroa de louros. Beneficiou-se de um suicídio simbólico.
Como que reduzido à impotência política, Itamar beneficiou-se das compensações permitidas à sua virilidade doméstica.
Há apenas dois fatos marcantes em seu governo: a defesa do Fusca e o Carnaval com Lilian Ramos. No caso do Fusca, modéstia de pretensões. Vontade de pôr muita areia no fusquinha, foi este o caso Lilian Ramos.
No fundo, o sucesso atual de Itamar é um pouco o sucesso do fusquinha que, contra todo prognóstico, consegue subir uma ladeira intransponível.
Entre a vaidade e a modéstia, Itamar Franco soube optar pela modéstia sem deixar de ser vaidoso. Foi vaidoso em tudo o que diz respeito à irrelevância: topete, namoros. Ao contrário de Collor, monstro de vaidade a alimentar-se de poder, e de Sarney, pequeno vaidoso e alimentar-se das pompas do poder, Itamar recusou poder e pompas. Sarney foi provinciano, Collor foi deslumbrado, Itamar foi doméstico.
Viveu na nulidade de um cargo decorativo; foi prova de que o doméstico pode ter sentido, de que o comum pode ser público, de que o mineiro pode prescindir de astúcia, de que o Brasil pode prescindir de um presidente.
Bom presidente, afinal. Em face do Consenso de Washington, do Grupo dos 7, do neoliberalismo, distraiu-se um pouco, como o faria um príncipe da Inglaterra. Conhecedor de seu próprio lugar, ilustrou para todos nós o lugar que nos cabe no mundo. Algo de modesto, com belos carnavais.
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