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Crise nas proteções sociais
Robert Castel aponta problemas na sociedade transformada pelas conquistas dos trabalhadores
JANE A. RUSSO
Mª DA GLÓRIA RIBEIRO DA SILVA
Especial para a Folha
Robert Castel, 61, é sociólogo e coordena atualmente o Grupo de Pesquisa e Análise do Social e da Sociabilidade no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) - o mais importante instituto de pesquisa francês -, atividade que acumula com a de diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.
Nos anos 70, fez parte da Rede Alternativa à Psiquiatria, junto com Franco Basaglia, Felix Guattari e David Cooper. Neste período produziu suas mais importantes obras sobre o campo da saúde mental, entre elas "O Psicanalismo" (que vendeu de 25 a 30 mil exemplares na França), "A Ordem Psiquiátrica", "La Société Psychiatrique Avancée" (sobre a assistência psiquiátrica nos Estados Unidos) e "A Gestão dos Riscos: Da Antipsiquiatria à Pós-psicanálise".
Nos últimos dez anos o prof. Castel tem se dedicado ao estudo do surgimento e desenvolvimento do sistema de previdência social na Europa e da assistência de um modo geral.
Acaba de publicar em janeiro, pelas Edições Fayard, o livro "Les Metamorphoses de la Question Sociale" (As Metamorfoses da Questão Social), tema sobre o qual falou para a Folha.

Folha - O sr. fala de uma crise da sociedade salarial na Europa hoje. O que o sr. está chamando de "sociedade salarial"?
Robert Castel - A sociedade salarial foi a formação social que se impôs progressivamente nos anos de crescimento e cujo ponto culminante pode ser localizado em meados dos anos 70, antes do que chamamos "a crise". Poderíamos caracterizar a sociedade salarial como a associação entre trabalho e proteção, quer dizer, através da sociedade salarial, a condição dos trabalhadores deixou para trás essa espécie de vulnerabilidade de massa que era seu estado há muitos séculos e o assalariamento tornou-se um status.
Isto quer dizer que ser assalariado não significa apenas receber um salário, uma retribuição monetária, mas um certo número de garantias e de direitos, essencialmente o direito ao trabalho e à proteção social.
Folha -Em seus seminários o sr. afirma que essa nova forma de organização social implicou uma nova forma de propriedade.
Castel - É verdade. Poderíamos falar aí de propriedade social. Acho que trata-se aí de uma "invenção" histórica bastante sutil. Porque é um meio de ultrapassar, em certa medida, a propriedade privada, economizando, entretanto, sua apropriação coletiva. De uma certa forma nega o patrimônio privado e a coletivização. Tomemos como exemplo o fato de se ter um seguro para os tempos de velhice. Isto quer dizer que alguém que trabalhou e que contribuiu terá o direito a uma aposentadoria.
Não se trata de um patrimônio privado do tipo que se carrega no bolso, que se pode negociar. Trata-se de uma propriedade cuja posse passa por um sistema de regulações e direitos complicado, fundado e garantido pela lei, e que é um deslocamento importante com relação à concepção privada de patrimônio.
Por isso houve uma oposição cerrada por parte dos partidários do patrimônio privado e dos liberais, porque há aí alguma coisa que ultrapassa o liberalismo, que ultrapassa o mercado, sem cair do socialismo. Uma espécie de via intermediária que se impôs lentamente, através de muito conflito. Por exemplo, a primeira forma de aposentadoria para operários e camponeses na França foi discutida durante 15 anos, foi votada em 1910, mas só se impôs verdadeiramente como uma forma de seguridade social após a Segunda Guerra Mundial.
Folha - Poderíamos dizer que se tratou de uma forma de conjurar a ameaça representada pelo socialismo?
Castel - Para Bismark, na Alemanha, onde teve início esse tipo de política na sua forma mais avançada, esse era certamente o objetivo. Tratava-se conscientemente de um instrumento de luta contra o partido socialista. Mas esta é uma interpretação um pouco reducionista. Poderíamos dizer que, de um modo mais geral, o que ocorreu foi o triunfo de uma noção reformista, que no fundo é o ideal social-democrata: conseguir assegurar, se possível, a totalidade da população e suprimir as disparidades excessivas entre as diferentes condições. Mas sem que isso signifique uma transformação das relações de produção.
Por isso é um ideal compatível com o capitalismo, mas não com qualquer forma de capitalismo -poderíamos falar aí de um capitalismo domesticado, que admite o que às vezes chamamos "compromisso social", isto é, uma certa partilha dos benefícios que foi relativamente indolor no período do crescimento econômico, quando havia o que se chamava o fruto do crescimento a ser partilhado. O compromisso social não significou de modo algum a igualdade de condições.
A sociedade salarial não é uma sociedade onde as pessoas são iguais, nem onde existe justiça social no sentido mais estrito do termo, mas na qual às pessoas são comparáveis, quer dizer, todas se beneficiam igualmente de um certo número de vantagens, recursos e possibilidades de consumo. É, portanto, uma sociedade diferenciada, não é uma sociedade pacificada como dizem alguns, porque nela há conflito, concorrência. Mas não é mais uma sociedade onde se opõem dois blocos antagonistas, como era a sociedade industrial que antecedeu a sociedade salarial.
Folha - Poderíamos falar de uma superação da sociedade de classes?
Castel - Essa é uma interpretação possível. É uma sociedade em que não há mais blocos antagonistas, o que caracterizaria uma sociedade de classes. Também é uma sociedade que se impõe quando o proletariado perde o papel histórico que tinha ou que acreditava ter, de ser o portador de uma reviravolta total do fundamento da sociedade. Isso supõe que o assalariado deixe de ser essencialmente o assalariado operário.
Poderíamos dizer que nos países da Europa ocidental a classe operária não foi vencida numa política ou numa luta social forte como ocorreu no século 19, na Comuna de Paris, mas foi submersa por uma classe assalariada mais ampla e mais diferenciada que ela. Usando uma imagem um pouco exagerada, ela foi afogada por toda essa diversidade de situações salariais, pelo desenvolvimento das atividades terciárias etc. Por isso perdeu seu papel central no que tange à organização de classe dos assalariados.
Folha - Pensando na crise atual das sociedades européias, o que o sr. tem a dizer sobre as transformações da clientela da assistência pública?
Castel - Poderíamos dizer que há uma "zona" tradicional da assistência, que abarca aquelas pessoas que são incapazes de trabalhar, que são reconhecidas como sendo isentas da obrigação do trabalho, por incapacidade física ou psíquica ou outra qualquer. Grosso modo, essa é a assistência tradicional, que assegura as necessidades mínimas das pessoas incapazes de trabalhar.
Com a crise - o desemprego, a precarização do trabalho etc. - passaram a se valer da assistência pessoas que podiam trabalhar, quer dizer, que tinham a capacidade, eram válidas, que foram invalidadas pela nova conjuntura que começou a aparecer em meados dos anos 70. Não se tinha aí o perfil tradicional das pessoas que recorriam à assistência. Isso significou também uma transformação nos modos de assistência que eram antes dirigidos às pessoas incapazes de trabalhar.
Essa transformação abarca o que se chama na França políticas de inserção - esforços para recolocar no circuito normal as pessoas cuja exclusão não se deu por incapacidade, ou por uma incapacidade que lhes seja própria. A questão deixa de ser portanto "repará-las" como antes.
Folha - É possível comparar a situação de exclusão tal como se verifica na Europa com o que ocorre na sociedade brasileira?
Castel - Como não conheço bem a situação brasileira não posso ser preciso. Me parece muito diferente porque, como acabei de dizer, se queremos falar de exclusão na França ou na Europa, falamos de pessoas que se desligaram de uma situação de estabilidade relativa, o que nos remete à sociedade salarial que havia conseguido assegurar essa proteção e essa estabilidade, não para todo mundo, mas para uma grande maioria da população da Europa ocidental.
Pelo que posso observar, se falamos de exclusão no Brasil, trata-se de pessoas que nunca entraram num processo de estabilização, que também significa pleno ou quase pleno emprego, que nunca fizeram parte desse movimento da sociedade salarial. Esta sem dúvida está setorialmente representada no Brasil, mas certamente de uma maneira menos total. É possível dizer que na Europa havia formas de exclusão semelhantes às existentes no Brasil porque mesmo nos momentos de maior expansão da sociedade salarial sempre há uma franja de pessoas que permanecem do lado de fora.
Folha - E os imigrantes e filhos de imigrantes na Europa ocidental? Seriam eles habitantes naturais dessa zona de exclusão ou desafiliação?
Castel - Eu não acredito que isso funcione como um destino. Diria sim que eles têm um "handicap" suplementar. Na França não há comunidade étnica, não há guetos, não há minorias constituídas. De fato, a segunda geração de magrebinos participa em larga medida da cultura geral, dos valores, do consumo e da música, por exemplo. Mas ao mesmo tempo eles têm, por um lado, os mesmos problemas que os jovens de origem popular, de emprego, da vida em ambientes degradados, e além disso, essa marca. Por vezes são objeto de reações racistas. Mas não creio que possamos considerá-los como pertencendo a uma comunidade separada.
Folha - É muito comum ligar a crise do que o sr. chama sociedade salarial à onda racista na Europa hoje?
Castel - Trata-se da maior visibilidade de um certo racismo, o que é diferente. Infelizmente, é possível dizer que o racismo, de um certo modo, sempre existiu. Na França há episódios pouco gloriosos durante a ocupação alemã. O anti-semitismo, por exemplo, é uma linha que percorre a cultura francesa. É preciso admitir isso. Há momentos, situações, circunstâncias em que isso é mais agudo. Com os problemas de desemprego e outros, atitudes desse tipo parecem se desenvolver atualmente, inclusive nos meios populares.
Folha - O que o sr. pensa das políticas criadas para o enfrentamento das crises na Europa?
Castel - Foram feitos esforços - as chamadas políticas de reinserção - para dar conta dessa população de válidos "invalidados" pela conjuntura. Mas hoje em dia parece que essas políticas não estão à altura do problema. Por exemplo, no que diz respeito à divisão do trabalho, é impossível voltar à situação dos anos 60, 70, mesmo que o crescimento fosse retomado. Não sei se podemos ser otimistas ou pessimistas, mas podemos desenhar possibilidades diferentes.
Creio que, se deixarmos as coisas seguirem seu curso, ou mesmo se fizermos apenas esforços mínimos de ajustamento como fazemos hoje, a situação corre o risco de se degradar. A questão me parece política, seria necessário uma opção política, passando pelo Estado. Somente o Estado pode desempenhar esse papel - talvez esse seja o seu papel fundamental - de assegurar a coesão social. Não pode ser a empresa a fazê-lo. Não basta o aumento da competitividade das empresas, o desenvolvimento econômico, é necessário que haja contrapartidas sociais a isso.
É preciso admitir, por exemplo, que não haverá mais pleno emprego. Não haverá um retorno, mesmo com crescimento econômico, à situação anterior. O par trabalho-proteção tornou-se um bem relativamente raro. A solução seria uma certa redistribuição disso. Uma redução por 35 horas semanais de trabalho, por exemplo, se for bem feita, pode ter consequências importantes.
Mas mesmo isso parece algo um tanto utópico porque aparentemente muito pouca gente aceitaria... É verdade, porém, que nos últimos dois ou três anos o debate sobre a divisão do trabalho começou a se impor. À medida, justamente, que se começa a tomar consciência da amplitude da transformação, isto é, do fato de que esta não é uma crise passageira.
Folha - Será que poderíamos dizer que o neoliberalismo é uma resposta a esta crise da sociedade salarial?
Castel - Sim, mas acrescentando que é uma resposta que, no meu ponto de vista não representa uma solução na medida em que vai no sentido de uma flexibilização, de uma individualização da sociedade com os fenômenos de dissociação social. Poderíamos acrescentar que há um ou dois anos nós temos um governo de inspiração neoliberal que foi, até agora, muito prudente. Pode ser que isto mude, por exemplo, em termos de pequenas colisões do ponto de vista do direito do trabalho, da previdência social, mas até agora o edifício não foi profundamente transformado.
Folha - Como na Inglaterra.
Castel - Sim. Nós não tivemos Thatcher, nem Reagan, na França ou na Alemanha. É um governo de centro-direita, e os direitos sociais na Alemanha estão relativamente conservados.
Folha - Mas o que não fica muito claro é o porque da crise da sociedade salarial.
Castel - Existe toda uma dimensão da crise que, sem dúvida, é econômica e sobre a qual existem teorias, como o esgotamento da relação fordista etc. É com certeza um dos elementos. Mas tem também um nível mais sociológico. É a mundialização, em primeiro lugar, da economia e, depois, do mercado de trabalho. Por exemplo, nós tínhamos muitas oportunidades na Europa e elas foram exploradas cinicamente; precisávamos de mão-de-obra, importamos mão-de-obra estrangeira pela qual, geralmente, pagávamos pouco e da qual podíamos nos livrar com relativa facilidade. Com a subcontratação e a flexibilidade externa, se estamos, por exemplo, em concorrência com a Tailândia, não podemos lhe impor as condições. É um elemento, mas devem existir vários outros. Eu sou sempre cuidadoso ao entrar nas causas.
No meu livro, inclusive, falo disto. Existe um nível de análise relativamente autônomo ou autonomizável que são os mecanismos que entram em jogo, como os mecanismos sociais, a precarização, o aumento de um individualismo em massa. É um elemento importante: as pessoas perdem seus vínculos coletivos e passam a ser indivíduos despojados, que carregam suas individualidades como um fardo.
Folha - Qual foi a resposta do movimento sindical em relação à crise?
Castel - Os sindicatos e o movimento operário participaram da construção da sociedade salarial. Para se ter um acordo social é preciso que haja parceiros. Os sindicatos operários, a CGT dominada pelo PC, o Partido Comunista, queriam mais. Então, era uma forma de acordo polêmico, que funcionou bem durante a época do crescimento econômico. Como diz uma liderança sindical da CGT-FO ("Force Ouvrière"), "tinha grão para ser moído". Então, durante uma negociação, consegue-se sempre um pouco deste grão e, amanhã ou daqui a seis meses, pode-se conseguir ainda mais.
Por trás da sociedade salarial existe a idéia de progresso e isto permitia acordos polêmicos. Não significava um consenso, mas formas de negociação conflituosas que permitiam assegurar um relativo equilíbrio e progredir. Quando o processo do crescimento está bloqueado, não há muito grão para se moer. É mais difícil, então, negociar, mas ao mesmo tempo, a ameaça do desemprego pesou fortemente. Nos últimos 20 anos o número de greves diminuiu.
Há uma tentação de se concentrar o movimento operário e dos sindicatos em posições defensivas. Existe um grande debate sobre a posição dos desempregados e os sindicatos, mesmo os de operários, não defendem muito os desempregados. Não existe uma solidariedade, só declarações verbais. Há também um fechamento nas vantagens adquiridas e na medida em que os bens tornam-se raros, surge a tentação de defendê-los.
Todos, verbalmente, lamentam a existência dos desempregados e isto lembra o problema de uma eventual divisão do trabalho, que não é simples, inclusive para os sindicatos operários. Talvez isto esteja mudando nos últimos anos, principalmente em um dos sindicatos, a CFDT. Mas para que esta questão da divisão do trabalho seja seriamente formulada, as pessoas teriam que perder algumas ilusões da retomada, do retorno ao "status quo" e isto é relativamente recente, não somente no caso dos sindicatos, mas na opinião pública também, de maneira geral. São os governos que geraram a crise como se fosse simplesmente uma crise. Talvez possamos esperar que sejam tomadas posições mais enérgicas neste sentido, mas ainda não é o caso.
Folha - O Brasil nunca foi uma sociedade salarial, mas nós temos proposições neoliberais. O presidente eleito tem um projeto dito neoliberal. O que o senhor pensa disto?
Castel - É verdade que a sociedade brasileira não é salarial. Acredito que seja a mesma coisa na Argentina. O novo presidente tem uma posição que parece próxima dos neoperonistas, que aliás não eram nada peronistas. Parece que, comparando com a Europa, o abandono da sociedade salarial traz graves problemas, inclusive de coesão social, e talvez questões para a democracia.
Os direitos políticos não são inscritos em um campo de idéias. Se as pessoas são inúteis socialmente, não lhes serão concedidos direitos. Vê-se então os perigos sociais e políticos em países como o Brasil ou a Argentina: se desregula o que já estava regulado, agravando-se assim o processo de marginalização.
Ou talvez, ao invés de chamarmos de marginalização, devemos pensar no fato de existirem muitos brasileiros que, como dizia Auguste Comte sobre os proletários do século 19, acampam à beira da sociedade, como por exemplo nas favelas, mas não são nela integrados, com todos os problemas políticos da violência.

JANE A. RUSSO - é professara e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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