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GEORGES SADOUL
O motorista estava à minha espera na estação de Bandol. Seguimos para a casa de campo dos Lumière, situada sobre uma pequena colina, a leste da cidade. Sou introduzido num salão repleto de bronzes monumentais: nus, gênios alados, guerreiros agonizantes etc., oferecidos a Lumière por seus companheiros de trabalho e por diversas associações culturais. Uma criança brinca no terraço.
Louis Lumière faz seu ingresso. É grande, encurvado, corpulento, as bochechas caídas, as orelhas pontudas e excepcionalmente longas, como as de um Buda. Usa um par de óculos especiais, com uma das lentes substituída por uma placa de metal preta com um furo no centro. Lumière fora operado de catarata no ano anterior.
Apesar de seus 82 anos, está vivo e alerta. Ao longo de nossa conversa, não manifestará nenhum sinal de cansaço. Estará sempre presente e pronto à resposta. Mas ao dar alguns passos, rapidamente perde o fôlego, pois sofre do coração. É por isso que há um elevador para descer a seus laboratórios, localizados no subsolo do terraço, em que reina a mais perfeita ordem.
Começamos pela frase que geralmente lhe é atribuída, dita a Méliès por ocasião da primeira apresentação do Grand Café: "O cinema não tem futuro" _frase muitas vezes repetida e deturpada. A respeito disso, Lumière estende-me indignado um artigo de jornal. Lê assiduamente os artigos em que figura como tema.
Louis Lumière - Não compareci à primeira apresentação do Grand Café. Permanecera em Lyon. Se a frase "o cinema não tem futuro" foi proferida nesse 28 de dezembro de 1895, é bem provável que tenha sido dita por meu pai, Antoine Lumière. Quanto a mim, é verdade, não acreditava que se pudesse prender a atenção do público diante do cinematógrafo durante horas a fio.
Meu irmão e eu não fomos responsáveis pela exploração do cinematógrafo em Paris. Meu pai, depois de confiar essa tarefa a Clément Maurice, fechou negócio também com Lafont. Esse Lafont era cunhado de um amigo de meu pai, o capitão Thiers.
Meu pai, Antoine Lumière, ficara órfão aos 15 anos. Seus pais foram vítimas da cólera. Ainda criança, contou com o apoio do pintor Auguste Constantin, que o ensinou a desenhar. Tornou-se pintor de insígnias e decorador, primeiro numa grande casa de Paris e depois em Besançon. Foi lá que se associou a um fotógrafo chamado Mauroges. Não tardou em romper essa associação e, logo em seguida, se estabeleceu por sua própria conta como fotógrafo em Besançon.
Nessa cidade nascemos eu, meu irmão Auguste e minha irmã mais velha. Depois da guerra de 1870, meu pai mudou-se para Lyon, onde se associou ao fotógrafo Fatalo. Seu ateliê foi instalado em algumas lojas da rue de la Barre.
Meu pai era um "poeta". Não podia ver a cor do dinheiro que já começava a gastá-lo. Detestava a ciência e todos os cientistas...
Georges Sadoul - Mas então o senhor e o seu irmão foram péssimos filhos!...
Lumière - (sem dar importância à interrupção) - Meu pai fez parte da Guarda Nacional. Tinha uma voz sonora e, como a vida em casa nem sempre foi fácil, chegou algumas vezes a cantar no cassino, onde se especializou em canções patrióticas. Nos camarins do cassino foi apresentado ao prestidigitador Trewey, ao cantor Plessis e a outros artistas, que se tornaram seus companheiros.
Quando os negócios melhoraram, meu pai não hesitou em construir uma pequena loja para abrigar seu comércio. Era uma operação arriscada, já que o terreno não lhe pertencia e podia a qualquer momento ser retomado. Fotografávamos os grupos nos fundos, num pátio aberto, à frente de um painel de sua própria autoria. Meu pai fez retratos de extrema beleza.
Por volta de 1878, as revistas fotográficas começaram a falar da gelatinografia, processo que utilizava o brometo de prata em suspensão coloidal. Durante muito tempo, as únicas placas encontradas no mercado eram produzidas por Bernaert de Gand, de acordo com o procedimento de Van Monkhoven. Até então, meu pai utilizara somente placas de colóide úmido, preparadas num laboratório instalado no subsolo.
Ele apostava no futuro da gelatinografia e realizava experiências com as fórmulas então publicadas pelas revistas fotográficas. Mas tais fórmulas eram imperfeitas, e o tempo de exposição era ainda mais problemático que a composição do colóide úmido. Suas tentativas resultaram num total fracasso. Ele foi incapaz de aperfeiçoar as fórmulas. Eu já lhe disse que seu espírito não era nada científico...
Nessa época, acabara de concluir meus estudos na École de la Martinière, na qual ingressara com certo atraso devido às terríveis dores de cabeça de minha infância. Tive professores excelentes, como Tarabaud e Du Pasquier. O segundo ano letivo incluía química como matéria regulamentar. Como todos falavam das placas de Monkhoven, comecei a pesquisar os meios para aperfeiçoá-la.
O procedimento que descobri então suprimia a lavagem das emulsões como etapa necessária. As revistas técnicas falavam em acrescentar às placas uma certa proporção de ácido bromídrico. Fiz a tentativa, mas não obtive bons resultados. Utilizei o amônio, e fiquei plenamente satisfeito. Acabara de sair da Martinière. Tinha 16 anos. Minhas dores de cabeça eram o único empecilho para que me preparasse para a escola politécnica.
Meu pai recusou-se a comprar as balanças de precisão necessárias para minhas dosagens. Para ele, a balança da cozinha era mais do que suficiente. Fui obrigado a fazer as pesagens na farmácia ao lado. Depois de dois meses de trabalho, obtive uma placa sem lavagem, muito superior a todas as placas conhecidas, mais sensível e com mais gradações do que as placas de Monkhoven.
Ao longo de quase um ano, minhas manhãs foram dedicadas à confecção das placas para o ateliê de meu pai. Pouco a pouco, os clientes começaram a encomendar meus produtos e meu pai teve a idéia de abandonar a profissão de fotógrafo para tornar-se fabricante de placas fotográficas. Passamos várias semanas em busca de uma fábrica nos arredores de Lyon. Meu pai era exigente e achava todas as instalações muito pequenas. Finalmente, uma chapelaria fundada por um certo Baton e abandonada desde 1855 pareceu-lhe o local adequado.
Eu chefiava toda a operação da fábrica. Meu irmão não tomou parte na produção. Meu pai vendera seu ateliê fotográfico a um velho comerciante de carroças e incumbira Auguste de pô-lo a par de sua nova profissão. Auguste passou dois anos na rue de la Barre, enquanto eu me dedicava à instalação da fábrica. Precisei criar máquinas de enxaguar vidros e espalhar emulsões. Por outro lado, meu primeiro método de obter o óxido de prata com ajuda do amônio tinha o inconveniente de liberar torrentes de amoníaco, o que tornava bastante delicada sua aplicação em escala industrial.
Mesmo assim, demos seguimento à produção com uma dezena de funcionários sob meu comando, sem no entanto deixar de buscar novos procedimentos. Foi então que descobri a fórmula chamada "Etiqueta Azul".
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