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<DOCNO>PUBLICO-19940110-031</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940110-031</DOCID>
<DATE>19940110</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>DPGH</AUTHOR>
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Poucos acreditam que adversário de Kadhafi seja encontrado vivo
O caso do dissidente desaparecido
Deborah Pugh, no Cairo
O desaparecimento no Egipto do dissidente líbio Mansour Kikhia continua a ser um mistério. Poucos acreditam que ele venha a ser encontrado vivo e muitos acusam agentes de Kadhafi de terem raptado o homem mais capacitado para unificar a oposição ao coronel. O «grande líder» convenceu-se de que os seus adversários estão a ser apoiados pelos EUA e terá decidido regressar às tácticas de terror.
Na noite em que desapareceu sem deixar rasto do seu quarto de hotel, no Cairo, Mansour Kikhia, antigo ministro líbio dos Negócios Estrangeiros e um respeitado dissidente nos Estados Unidos, contou a um familiar que se ia encontrar com um agente do regime [líbio]. Na madrugada do dia seguinte, um carro com matrícula diplomática líbia, transportando quatro homens, foi detectado a atravessar a fronteira egípcia para a Líbia -- mais ou menos à mesma hora a que Kikhia foi visto pela última vez.
Não houve, no entanto, uma identificação positiva, pois os veículos diplomáticos líbios não são obrigados a parar na fronteira de Salloum. A investigação egípcia sobre o que aconteceu a Kikhia, há cerca de um mês, continua, mas poucos observadores acreditam que ele ainda apareça com vida.
«Kikhia parece ter sido o primeiro alvo da nova campanha do coronel Kadhafi contra os seus opositores políticos. O seu desaparecimento aterrorizou todos os adversários do líder líbio e era esse, provavelmente, o objectivo», explicou um diplomata no Cairo, exprimindo «sérias dúvidas de que ele esteja vivo para contar a história».
O príncipe herdeiro líbio, Muhammad Al-Hassan al-Rida Al-Sanussi, que vive exilado em Londres desde que fugiu da sua pátria em 1988, tem apelado aos países estrangeiros para aumentarem a protecção aos dissidentes líbios a quem concederam asilo. Al-Sanussi falou das tentativas de Kikhia para unificar a oposição e, embora tenha admitido não possuir provas do envolvimento das autoridades líbias, salientou que o desaparecimento obedece a uma determinado modelo.
«Pode-se dizer que a actuação inconstitucional do regime no nosso país, usando seja o rapto seja outras formas de terrorismo, está cheio de exemplos flagrantes como este [de Kikhia]», observou Sanussi, durante uma visita privada à Jordânia, na semana passada.
A monarquia Sanussi foi derrubada por um jovem oficial, num golpe de Estado, em 1969. Vinte e cinco anos depois, o coronel Kadhafi continua a ser o homem forte da Líbia, mas sujeito a pressões políticas internas e internacionais sem precedentes.
Regresso ao terror
A determinação americana e britânica de obter a extradição de dois líbios, alegadamente responsáveis pela colocação de uma bomba que fez explodir um avião da Pan Am, há cinco anos, sobre Lockerbie (Escócia), causando 270 mortos, conduziu, em Dezembro, a um reforço das sanções internacionais contra o Governo de Trípoli. Mas, no actual clima de dúvidas crescentes sobre se o regime líbio teria sido o único instigador do desastre da Pan Am, é muito improvável que as sanções da ONU sejam reforçadas no futuro.
Perante isto, Kadhafi terá concluído que o Governo americano se está a preparar para apoiar a oposição ao seu regime dentro do país. É de admitir, por isso, que as ameaças na frente interna, nos últimos meses, tenham perturbado o coronel, levando-o, aparentemente, a regressar às tácticas de terror de que se tinha distanciado desde 1987.
Apesar de ter fracassado, uma rebelião do Exército, em Outubro, teria enfraquecido a base de poder de Kadhafi. Depois, em Novembro, dissidentes líbios de várias organizações, entre eles personalidades independentes como Mansour Kikhia, reuniram-se em Washington para uma conferência intitulada «A Líbia depois de Kadhafi».
A resposta de Trípoli foi quase histérica, com o líder político a apelar aos líbios para destruírem as figuras da oposição. Num discurso empolgado e em termos muito duros, pronunciado um dia depois do desaparecimento de Kikhia, o coronel mostrou-se disposto a «esmagar os traidores e espiões».
Só duas semanas após o sucedido as autoridades líbias desmentiram que estivessem envolvidas no desaparecimento e afirmaram que competia ao Egipto resolver o caso. [Na sexta-feira, o delegado permanente da Líbia na Liga Árabe, Ibrahim al-Béchari, acusou «elementos estrangeiros», sem os designar, de terem raptado Kikhia, para «prejudicar as relações» entre o Cairo e Trípoli. No mesmo dia, a mulher do dissidente pediu ajuda ao Governo líbio para ajudar a encontrar o marido, cujas ideias «podem ser diferentes» das do regime].
Na verdade, o desaparecimento embaraçou profundamente o Governo egípcio, que foi apanhado desprevenido. Durante quatro dias não houve informações oficiais. Por fim, as autoridades entraram em acção, impelidas talvez pelos rumores de que eram de certa maneira cúmplices no caso. Mas esta ideia é refutada por observadores, não só pela posição extremamente prudente do Governo do Cairo no seu relacionamento com o regime líbio, mas também porque os egípcios, sabendo que Kikhia era próximo dos EUA, não provocariam Washington, o seu mais generoso financiador.
Tempos difíceis
O Egipto manifestou-se profundamente preocupado com o desaparecimento do dissidente líbio e Washington pediu ajuda para o encontrar. No entanto, é provável que o Cairo, subestimando o desespero com que Trípoli encarava a crescente confiança da oposição no estrangeiro, tenha sido complacentes nos seus contactos com os líbios, pois estava ansioso por obter a cooperação do país vizinho para controlar a infiltração de militantes islâmicos, regressados do Afeganistão, através da porosa fronteira com a Líbia.
No final de Novembro, teve lugar no Cairo uma reunião entre altos funcionários dos serviços secretos da Argélia, Tunísia, Egipto e Líbia, encontro que reflectiu o crescente empenho egípcio em unificar a ofensiva contra os militantes islâmicos. Sabe-se que o chefe da espionagem líbia, Abdullah Sanussi, esteve no Cairo.
Especula-se, entretanto, que Sanussi terá aproveitado a oportunidade para renegociar a permissiva atitude do Egipto para com os dissidentes líbios residentes no Cairo e teria obtido maiores obstruções administrativas aos oposicionistas. Mas há também um consenso generalizado de que os egípcios nunca concordariam com o rapto de um líbio no Cairo.
O certo é que se desconhece o paradeiro de Mansour Kikhia, uma das mais destacadas personalidades em quem muitos líbios moderados confiavam. O regime de Trípoli poderá ficar satisfeito a curto prazo, mas a crise geral que aflige o Governo não diminuiu e alguns observadores prevêem que estão para vir tempos mais difíceis.
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