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<DOCNO>PUBLICO-19940117-104</DOCNO>
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<DATE>19940117</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>CCL</AUTHOR>
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Portugal heterodoxo
Carlos Câmara Leme
Ainda antes de ser oficialmente apresentada -- o que acontece hoje, às 16h, no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, com a presença do secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes, e provavelmente do próprio primeiro-ministro, Cavaco Silva --, a «História de Portugal» dirigida por João Medina vendeu já cinco mil exemplares. Os editores, o Ediclube, uma empresa de venda por correspondência, filial portuguesa do Clube International del Libro, com sede em Madrid, calculam que em dois anos poderão colocar mais de 60 mil exemplares (ver caixa).
A aposta do Ediclube ocorre quase um ano depois do lançamento pelo Círculo de Leitores (CL) da «História de Portugal» dirigida por José Mattoso -- o primeiro volume acaba de chegar às livrarias com a chancela da Estampa (ver PÚBLICO de 15/12/1992). Desde então, o CL já divulgou as tiragens da sua «História»: 93 mil exemplares para o primeiro volume, 87 mil para os cinco restantes já lançados. O oitavo volume sairá em Janeiro de 1995.
Assumindo um objectivo promocional claro, «comemorar as Grandes Viagens Interoceânicas e os Descobrimentos Portugueses», a «História de Portugal» sob a direcção de João Medina apresenta -- independente dos valores científicos e das propostas historiográficas de cada uma -- uma vantagem sobre a editada pelo CL, que os responsáveis do Ediclube não se cansam de repetir: a de o grande público poder, de um dia para o outro, ter à sua disposição quinze volumes, de uma só vez, ou seja, uma «História de Portugal» de fio a pavio».
De repente, o país vê-se confrontado com com três modelos globais, contemporâneos e diversos de interpretar a sua história -- é preciso não esquecer que a Presença continua a publicar, já com 5 tomos editados, a sua «Nova História de Portugal», co-dirigida por A. H. Oliveira Marques e Joel Serrão. Para João Medina, este «regresso da história» dá-se porque, diz, «voltámos a ser europeus ou começámos sê-lo».
Natural de Moçambique, onde nasceu a 21 de Novembro de 1939, João Medina. depois de fazer os seus estudos primários em Joanesburgo, na África do Sul, começou por licenciar-se em Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa (FLL), onde actualmente é professor catedrático. Em 1970, doutorou-se em Sociologia pela Universidade de Estrasburgo, França, leccionando até 1974 na Universidade, da Provença, em Aix-en-Provence, e regressando a Portugal só depois do 25 de Abril. Director-geral no Ministério da Comunicação Social, entre os anos (quentes) de 1975 e 1977, é em 1979 que passa a ensinar na FLL. Actualmente, e ao abrigo de um acordo entre a Brown University (de Providence, EUA) e a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, dá um curso sobre salazarismo.
Autor de uma obra que oscila entre a história contemporânea -- nomeadamente em torno da I República -- e a literatura, com especial incidência sobra a obra de Eça de Queirós e a Geração de 70, dirigiu entre 1986 e 1989 a «História Contemporânea de Portugal» (7 vols.). Editada pelos Amigos do Livro, esta editora acabaria por passar as suas posições ao Ediclube. Quando os editores espanhóis o contactaram para fazer um «História de Portugal», mostrou-se reticente. Mas depois acabou por aceitar: «Pensei que era a grande `chance' da minha vida de fazer uma história diferente», justifica.
À sua volta juntou mais de cem colaboradores de «cores» políticas, ideológicas e historiográficas diferentes, como os historiadores Jorge Borges de Macedo, Joaquim Veríssimo Serrão, António Borges Coelho, António Dias Farinha, Maria José Ferro Tavares ou Henrique Barrilaro Ruas, constitucionalistas como António Vitorino, Vital Moreira, Lucas Pires e Magalhães Mota, o presidente do Tribunal de Contas, Sousa Franco, os economistas Joaquim da Silva Pinto e José Silva Lopes, ou os ex-conselheiros da Revolução Salgueiro Maia e Melo Antunes.
«Queria que esta história fosse realmente polifónica, para não dizer sinfónica» -- defende-se quando colocado perante a dificuldade de gerir uma equipa tão heterogénea. «Uma história não apenas de um autor, mas que articulasse uma série de visões que, na sua complexidade e na sua complementaridade, constituísse uma visão mais rica de Portugal.»
Dividida em quinze volumes e respeitando a cronologia clássica -- «Portugal na Pré-História», «O Mundo Luso-Romano», «Portugal Medieval», «Os Descobrimentos» (que serão analisados em dois volumes, «O Mar sem Fim» e «Os Impérios»), «Judaísmo, Inquisição e Sebastianismo», «Portugal Absolutista», «Portugal Liberal», «A Monarquia Constitucional», «A República» e «O Estado Novo» (ambos os períodos também analisados em dois tomos) e «Portugal Democrático», para além de um volume de índices --, esta «História de Portugal», reconhece João Medina na entrevista que deu ao PÚBLICO, «obedece toda a um fito de heterodoxia!»
O regresso à Europa
PÚBLICO -- A obra que dirige aparece um ano depois da «História de Portugal» de José Mattoso (Círculo de Leitores), a Presença continua a publicar «A Nova História de Portugal», os romances históricos não deixam de se escrever e, até 1995, vão ser lançadas mais duas novas histórias e uma enciclopédia de literatura portuguesa. Tem alguma explicação sobre esta «descoberta» da nossa história?
JOÃO MEDINA -- Sim. Creio que estávamos intoxicados de uma visão historiográfica que era preciso ser corrigida. Durante cerca de meio século, tivemos uma visão nacionalista -- uma visão de gueto oposta à diáspora. Agora essa perspectiva sobre Portugal dissolveu-se e tornámo-nos, pela primeira vez, um país de uma outra nação, a nação europeia...
P. -- Só agora? Pela primeira vez?
R. -- Verdadeiramente e pela primeira vez, voltámos a ser europeus ou começámos sê-lo. De facto, creio que agora nos olhamos a nós próprios e aos outros como europeus. Sou um eurofanático, apesar da crise do sistema monetário europeu, acredito no ecu e em toda a mitologia europeia talvez, até, por ter nascido em África. Este renovado interesse pela nossa história representa uma viragem do nosso próprio centro ontológico.
P. -- Todos somos europeus, mas há alguns que são mais europeus do que outros. Não teme que Portugal continue a assistir a um «jogo» em que não pode participar?
R. -- Não. Creio que se tivermos, como a Holanda e como outros países pequenos, suficiente «raça» e teimosia de afirmar, não o nosso gueto, mas a nossa especificidade, manteremos a nossa dimensão própria.
P. -- Não o preocupa a actual crise europeia?
R.- Claro que sim! A Europa atravessa uma fase muito difícil, mas que é passageira. Creio sinceramente que a Europa é o melhor do nosso futuro, é na Europa que devemos afirmar a nossa diferença e a nossa autonomia. Sei, como historiador, que há fases más, e estamos precisamente a viver uma delas. Temos de ter confiança!
Da história inter-activa...
P. -- O projecto de José Mattoso tinha como modelo a «História de Portugal» de Damião Peres. Qual foi o seu?
R. -- Embora admire Damião Peres e o considere um dos homens mais honestos no panorama historiográfico português, inspirei-me mais em modelos estrangeiros: americanos e europeus.
P. -- Quais? Qual é a sua principal referência historiográfica?
R. -- Tendo vivido sete anos em França, creio que sou um estrangeiro que se sente mais à vontade com modelos e mestres europeus, nomeadamente franceses: homens como Pierre Nora, Maurice Agulhon, Paul Veyne ou Vovelle estiveram na base da minha aprendizagem lá fora, assim como outros grandes vultos da historiografia europeia (e norte-americana): na Alemanha, Nolte; na Itália, Renzo De Felice; na Inglaterra, Isaiah Berlin, Theodore Zeldin e Hobsbawm; na América do Norte, Arthur Schelesinger Jr. e Walter Laqueur.
P. -- Qual é a ideia-chave da sua História de Portugal?
R. -- A ideia principal é a de que a saga de uma comunidade nacional não pode ser pensada em termos exclusivistas, mas em termos englobantes de aventura da própria humanidade. Ou seja, conceber que o português é, antes de mais, um homem, um europeu, que pertence a uma aventura planetária e que essa aventura se inscreve numa evolução mais ampla. Uma história nacional nunca é apenas uma história nacional, é uma história inter-activa com outras nações, com outros espaços geográficos e outras civilizações.
P. -- Na «História Contemporânea de Portugal», defendia que a «história recupera o passado para nos deixar conquistar o porvir». Com a queda das ideologias, não é querer transformar a história numa ideologia?
R. -- Não, creio que não. Como historiador, fui sempre influenciado por uma concepção de história nada dogmática, muito globalista, com a preocupação de que a história é uma das ciências sociais -- não é «a» ciência social.
P. -- Quando perguntaram à escritora Susan Sontag se a história ainda nos podia ensinar alguma coisa ou se o mundo teria esquecido Auschwitz, ela respondeu: «Creio que a história nos ensina continuamente. O que se passa é que as pessoas não querem ouvir.» Quer comentar?
R. -- Auschwitz põe um problema grave, tanto do ponto de vista teológico como do ponto de vista moral, filosófico e historiográfico. Chegou-se a dizer que não se pode escrever depois de Auschwitz. O horror é tal que toda a produção humana, literária ou científica, perde todo o sentido. Por outro lado, pode por-se o problema do silêncio de Deus perante Auschwitz. Mas é importante fazer a história para que Auschwitz não se banalize, para que o mal não se banalize. Não para que nos familiarizemos com o horror e o horror deixe de o ser...
P. -- Mas não é isso que continua a acontecer, por exemplo, com o que se passa na ex-Jugoslávia? Ou na Somália?
R. -- A função do historiador, para além das mensagens mediáticas que constantemente vão banalizando o mal, é situar o problema na sua dimensão mais dramática: é que não há imagem nenhuma de Auschwitz que, por mais repetitiva que seja, nos permita banalizar Auschwitz. É preciso voltar sempre a Auschwitz como é preciso voltar sempre ao crime de Caim. É uma exigência ética do historiador. A história, na medida em que é uma vigilância da memória, talvez seja a melhor maneira, a mais correcta, de meter a memória ao serviço do homem. A história é uma ética aplicada.
... à história como romance
P. -- Escreve no prefácio: «Sabemos `mais' mas nem por isso sabemos `melhor' que fazer desta História.» Para quem não quer perder de vista que «a verdade é o todo», esta confissão não é contraditória? Ou é a defesa do relativismo da história?
R. -- A minha formação weberiana deu-me uma grande sentido do relativismo. Não creio que exista uma lei de desenvolvimento interno da história ou que haja qualquer determinismo no acontecer histórico. Só uma posição relativista, com algum cepticismo gnoseológico, pode dar a realidade e a complexidade da história. Isto porque o grau de incerteza do conhecimento do historiador e a complexidade dos fenómenos estudados nunca nos permitem uma visão a que chamaríamos rigorosa ou absolutamente científica.
P. -- Daí até se interrogar, como se interroga, se a «história é uma espécie de romance verdadeiro» vai um grande passo. Aonde quer chegar com essa questão?
R. -- É uma citação do Paul Veyne, que introduzi num dos meus livros sobre Salazar [«Salazar e os Fascistas», 1979]. O que distinguiria a história de um romance é que a história é um romance em que todas as acções que estamos a contar aconteceram realmente, enquanto que a paixão de Carlos Eduardo por Maria Eduarda é do total domínio da ficção -- foi inventada por Eça de Queirós.
P. -- Não acha que, por vezes, os verdadeiros historiadores são os escritores, os romancistas?
R. -- Há muito de verdade nisso! O melhor estudo sobre a Guerra Colonial é o romance «Nó Cego», de Carlos Vale Ferraz. O melhor estudo sobre a I República é «O Milagre Segundo Salomé», de um grande romancista, José Rodrigues Miguéis. Não quero dizer com isto que um historiador tenha que ser romancista ou que o romancista é o único historiador; a verdade é que o historiador tem que ter a imaginação do romancista com algo mais que ele não tem que ter: a necessidade da comprovação. O que não se pode perder em história é, como exigia Weber, o «heroísmo da objectividade». Ou seja: apesar de todas as incertezas, há garantias de factos, processos e verificações que são obtidas pelo documento. Um historiador não pode inventar um documento; pode imaginar uma realidade, mas não a pode inventar.
Ovos de Colombo
P. -- Em que é que a sua «História de Portugal» se distinguirá mais das outras? Que novidades é que traz? São polémicas?
R. -- As novidades não têm que ser forçosamente polémicas. Há umas que são óbvias e outras são um espécie de ovos de Colombo, ou seja, eram processos ou figuras que já deveriam ter sido estudados.
P. -- Por exemplo...
R. -- Este meu projecto dá uma grande importância aos fumos da Índia. Além de um estudo sobre a crítica que se fez aos lados negativos da expansão portuguesa, há uma antologia que dá a conhecer toda uma vasta produção em torno dos malefícios dos impérios, desde o século XVI ao século XIX. Há também um estudo da condição feminina, a história da mulher é feita desde o século XVI. Mas mais: para além da história da inquisição, há um estudo estrutural sobre o auto de fé em si mesmo, como funcionava; incluí uma investigação sobre a fotografia em Portugal onde se vê como fomos um dos países pioneiros da arte fotográfica. Existe um longo estudo sobre o sebastianismo, sobre o Zé Povinho como estereótipo nacional ou sobre a língua portuguesa, para além de uma série de figuras históricas que têm sido postas à margem ou de períodos históricos ignorados. Há, ainda, um trabalho sobre a ausência de utopias no pensamento português: porque é que um país que esteve na origem da «Utopia» de Thomas Morus não produziu utopias? A utopia é a forma suprema da heterodoxia, e muitas vezes a paredes meias com a heresia.
P. -- Estamos perante uma «História de Portugal» heterodoxa?
R. -- Esta história não é uma história dos heterodoxos, mas obedece toda a um fito de heterodoxia! Isso não escondo!
P. -- O inimigo público número um do seu projecto é o nacionalismo. É esse o seu núcleo teórico fundamental?
R. -- Não. A recusa do nacionalismo é a consequência directa da concepção de Portugal como país diaspórico, que oscilou sempre entre o gueto e a diáspora. O gueto que revelou uma obsessão fechada, nacionalista, introvertida e, às vezes, paranóica (anticastelhana, por exemplo) e, por outro lado, uma verdadeira vocação de «globe-trotter», mundialista, planetária, de viajante, de «judeu errante».
P. -- Mas, em última análise, uma História de Portugal, qualquer que ela seja, não é uma afirmação nacionalista?
R. -- Evidentemente que é! Uma história de um país é, antes de mais, a história da comunidade nacional desse país -- e esta «História de Portugal» está concebida nessa dimensão. Mas uma nação não é apenas um gueto, é também uma lado aberto ao mundo, uma diáspora, um disseminar, e no caso português mais do que em nenhum outro. Uma das preocupações desta «História» é mostrar o nosso constante construir de impérios.
P. -- «Éramos grandes `longe', fora de nós», como diz Eduardo Lourenço, em «O Labirinto da Saudade»?
R. -- O português trabalha sobretudo lá fora, é mais português lá fora, e só sabe dar a dimensão de si mesmo lá fora.
P. -- Porquê?
R. -- Talvez como forma de protesto, ou de castigo, ou de vingança, ou de qualquer outra forma subconsciente de punir o país que nos obrigou à diáspora. Embora, o que também é curioso, o nosso estereótipo nacional -- o Zé Povinho -- seja precisamente o homem não diaspórico, o homem fechado, de mãos nos bolsos, que não tem aventura marítima, que não sai da sua terra...
Nacionalismo e patriotismo
P. -- A diferença que estabelece entre nacionalismo («a exaltação histérica e irracional do que se supõe definir o nosso exclusivismo pátrio») e patriotismo («o amor legítimo e crítico de tudo quanto é nosso») não é artificial?
R. -- Há uma diferença capital: no nacionalismo há qualquer coisa de mórbido, de excessivo, de tirânico e de perverso. O nacionalismo é, por natureza, exagerado, e é mórbido porque apaga o sentido crítico do amor ao que é nosso, substituindo-o por uma mística nacionalista.
P. -- As fronteiras, por vezes, não são muito ténues?
R. -- Há casos em que, de facto, nos podemos interrogar. Por exemplo, o sionismo é a reivindicação legítima do nacionalismo judaico no final do século XIX. A criação do Estado de Israel é um fenómeno nacionalista patriótico de legítima defesa e que provocou as dificuldades que se conhecem naquela região. É, de facto, difícil traçar a linha divisória clara entre onde pára a legitimidade nacionalista e onde começa o exagero místico, que é quase sempre irracionalista.
P. -- «Uma `História de Portugal' para um país re-europeizado e a caminho do terceiro milénio» -- como defende para a obra que dirige -- não soa a um «slogan» cavaquista?
R. -- Não, creio que não. Devo dizer que fui sempre uma pessoa extremamente independente, nunca militei em nenhum partido, fui sempre um heterodoxo -- que não é, propriamente, nem um revolucionário nem um herético -- que pensa pela sua cabeça, ainda que possa estar de acordo com as ideias em voga. Em relação ao cavaquismo, não me considero evidentemente um aderente, e portanto não creio que essa afirmação possa ser considerada uma apologia do actual regime. Ou de Cavaco Silva, por quem aliás sinto simpatia.
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