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<DOCNO>PUBLICO-19940123-094</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940123-094</DOCID>
<DATE>19940123</DATE>
<CATEGORY>Nacional</CATEGORY>
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Retrato da Semana
Cavaco Silva hesita entre uma mulher submissa e um homem feminista, que é o mesmo que dizer entre o nacionalismo e o federalismo. No Parlamento, durante um debate supostamente sobre a questão europeia, revelou a sua evolução sentimental: em previsão das dificuldades próximas, não está nacionalista nem federalista.
O primeiro-ministro português não tem uma ideia clara do que quer para Portugal, na União Europeia, dentro de alguns anos. Tem, isso sim, uma contabilidade, que, até há pouco tempo, foi o único capítulo da sua visão. Com a promoção da Espanha a "país grande" e a ameaça de reforma das instituições, pela qual Portugal passaria ao segundo balcão, a resistência a essa eventualidade passou a ser o segundo capítulo. E mais não diz.
Felicito-o por não ser federalista. Aplaudo a ausência de nacionalismo. Mas já não posso festejar o facto principal, que é o de ele não ser nada. Passou por tudo, como se nada fosse com ele, mas, no fim de cada etapa, passou na tesouraria. Carta Social, Acordo do GATT, Tratado da União, Acordo de Schengen, Reforma da PAC e tudo o resto, da PESC às instituições, de Timor à Bósnia, tudo passou. De Cavaco Silva não ficaram vestígios nas actas.
O debate da Assembleia revelou a indigência parlamentar em que vivemos. Cavaco não quis discutir. A oposição também não, com a excepção de Lobo Xavier (a revelação da legislatura) e poucos mais. O Governo odeia o Parlamento, a oposição ama-o: duas atitudes pouco recomendáveis nestas coisas.
Para ambos, Governo e oposição, o problema europeu é simples: não se pode, não se deve, não fica bem dizer mal de quem paga. Ainda por cima, "dizer mal" tem, em Portugal, uma acepção muito larga. Dizer mal significa: difamar, caluniar, ofender, escarnecer, enxovalhar, insultar, maltratar, criticar, duvidar, interrogar, perguntar, analisar, reflectir, pensar...
Os dirigentes nacionais, com raríssimas excepções, abdicaram definitivamente de contribuir para a reflexão comum europeia. E abstêm-se de reflectir sobre o futuro do seu país no quadro europeu. A Portugal e aos Portugueses, acontecerá... o que tem de acontecer. Enquanto houver fundos europeus, haverá satisfação. Enquanto houver fundos europeus, o melhor é não fazer ondas. Nisto, Cavaco Silva é o melhor. O aluno mais aplicado. Enquanto houver fundos... Se tudo correr bem, financeiramente entenda-se, ainda veremos Cavaco Silva secretário de Estado da União para os Assuntos Portugueses. Ele não quer nada para a Europa. Ele quer alguma coisa da Europa. É toda a diferença.
Mas, atenção! Se não houver fundos, Cavaco saltará a terreno, nacionalista como poucos, à espadeirada, na defesa da Pátria ferida e dele se ouvirá, por vales e desertos, o grito mobilizador: "Deixem-me trabalhar!".
O Banco de Portugal ainda não interveio no Totta.
Melancia, Emaudio, Costa Freire... É cedo para sabermos as consequências destes casos para a vida pública. Custa-me a acreditar que não haja nenhuma. Gostaria de pensar que os efeitos serão salutares, que poderá crescer a consciência de que não há impunidades e que a justiça vai melhorando. Mas duvido do meu próprio optimismo. Na verdade, a comparação entre os resultados da comissão parlamentar de branqueamento, isto é, de inquérito, e a sentença do tribunal é má conselheira. Por outro lado, a atitude dos responsáveis políticos deixa prever o pior.
Tenho para mim que Costa Freire é culpado: pelo que fez e pelo que foi voluntária e conscientemente utilizado pela ministra e pelo primeiro-ministro. Ora, depois de o ouvirmos, na televisão, assassinar docemente Leonor Beleza, a sua mãe e o seu primeiro-ministro, fico estupefacto perante o silêncio que se seguiu. Silêncio dos responsáveis, evidentemente. Em nenhum país do Mundo, ministra e primeiro agiriam como se nada fosse com eles. Em nenhum país do Mundo, gente como eles deixaria de se defender, de esclarecer, ou até de contra-atacar. Em nenhum país do Mundo, o Parlamento e a maioria ficariam assim, comatosamente abúlicos. Está em curso uma espécie de conspiração do esquecimento: não conheço país onde ela possa vingar tão bem como no nosso.
Devo dizer que esta família Beleza merece atenção. Eventualmente admiração. E há-de ter livro ou filme. Teresa, Miguel, Leonor, José e a mãe deles: nenhum passa desapercebido por esta terra. Pelas melhores razões, uns. Pelas piores, outros.
O Governo ainda não interveio no Totta.
Os episódios político-judiciais acima referidos vieram confirmar, uma vez mais, o que penso há muito tempo: a imprensa livre é, em Portugal, o melhor defensor das liberdades. Por vezes, mesmo, contra ou apesar das instituições democráticas.
Por isso não fico chocado com o primeiro-ministro, quando diz que apenas dedica dez minutos por dia para a leitura de jornais. Nem quando diz que 95 por cento do que os jornais dizem dele é mentira. Não fico surpreendido, porque o primeiro-ministro luta contra a imprensa livre que o não sirva. E, quando se luta, vale tudo. Aliás, conheço analfabetos que ainda dedicam menos tempo, por dia, à leitura dos jornais.
E também não fico surpreendido, porque sei que o jornal favorito de Cavaco Silva é o "Diário da República".
Neste mês de Janeiro, o PSD tem prestado um valioso serviço ao país. A aliança que fez com o PCP em vários municípios tem virtualidades: mostra que já ninguém tem medo dos comunistas e que eles podem ser integrados no sistema democrático. Com estas alianças, a união das esquerdas fica mais possível.
Apesar de doutorado em Economia, Cavaco Silva não sabe como se intervém no Totta, para o pôr em ordem, sem nacionalizar. Vai a Madrid, jantar com González, para lhe perguntar como se faz. Mas imagino que González nada lhe dirá. É que, agora, o Totta é deles.
A lei das propinas foi substancialmente mudada pelo PSD. Que, assim, deu razão ao veto presidencial! E provou que a sua reacção ao veto nada tinha a ver com os méritos da questão, mas sim com a necessidade de manter vivo o conflito com Soares.
Foi fundada a Associação dos Amigos de Monserrate. Finalmente! Talvez haja agora uma hipótese de impedir que os parques de Sintra se transformem em lixeiras!
Para vergonha dos meus concidadãos que, em assustadora maioria, detestam árvores, abominam jardins, odeiam parques e execram florestas, a inauguração teve lugar na residência do embaixador inglês. É assim, a triste sina de um povo que, do reino vegetal, se ficou pela batata. Com grelos.
Há quatro anos que escrevo o Retrato da Semana. Fiz as contas: o que aqui disse representa exactamente cinco por cento do que os jornais disseram sobre o primeiro-ministro...
O Governo e o Banco de Portugal estão a tentar perceber o que se passou no Totta.
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