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<DOCNO>PUBLICO-19940223-193</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940223-193</DOCID>
<DATE>19940223</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>TN</AUTHOR>
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E na ilha (re)descoberta nascem Adão e Eva
Tolentino da Nóbrega
Adão e Eva se chamaram os dois primeiros madeirenses, nascidos na ilha. Gémeos filhos de Gonçalo Aires Ferreira, companheiro de Zarco, eram os primeiros portugueses oriundos do mundo atlântico que principiava a amanhecer, com o (re)descobrimento, achamento ou encontro do arquipélago da Madeira.
«... esta ilha era uma horta do senhor Infante e ele pôs e trouxe a semente e plantou estas canas e a deu a toda a ilha à sua própria custa», afirma, peremptório, o capitão do Funchal, em 1511. A partir de 1433 a Madeira é terra do senhor Infante e ele passa a assumir as suas atribuições. Distribui terras pelos criados e escudeiros. Estabelece as culturas e sementes a lançar à terra. Divide o território em capitanias: primeiro em 1440, o Machico, depois, o Porto Santo, em 1466, e o Funchal, em 1450.
Se o protagonismo do Infante é real no povoamento, suscita polémica o descobrimento da ilha que foi a primeira etapa da expansão henriquina. A eterna questão de quem, como e quando foi descoberto o arquipélago, não parece de fácil solução. Neste mar de dúvidas e incertezas, os autores são, contudo, unânimes em considerar o povoamento do arquipélago como obra portuguesa, tendo como obreiro o infante D. Henrique e por executor João Gonçalves Zarco, com ou sem apoio de Tristão Vaz Teixeira.
De qualquer dos modos, a figura do Infante D. Henrique firmou-se na História da Madeira. A ilha ficou-lhe grata e fez erguer no Funchal, em 1947, a estátua esculpida por Leopoldo de Almeida, na rotunda com o seu nome. No Porto Santo, a evocação surge no quinto centenário da sua morte, com um monumento ao descobrimento, da autoria de António Aragão.
Afinal, quem descobriu a Madeira?...
Numa breve síntese, o investigador Alberto Vieira, do Centro de Estudos de História do Arquipélago, apresenta quatro versões coevas sobre o descobrimento da Madeira e do Porto Santo, as quais serviram de base a todas as restantes:
1 -- Relação de Francisco Alcoforado atribui o descobrimento da ilha ao inglês Robert Machim e o reconhecimento aos portugueses;
2 -- Relação de Diogo Gomes apresenta o descobrimento como sendo de iniciativa do piloto português Afonso Fernandes e o povoamento a João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz;
3 -- Zurara atribui a João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira o achamento das ilhas, bem como o seu reconhecimento e povoamento;
4 -- Cadamosto aponta o descobrimento pelos homens do Infante D. Henrique e o seu povoamento por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz.
É a estas quatro versões-base que a historiografia vai buscar os argumentos para defesa das múltiplas teorias que se colocam. O debate que teve lugar a partir do século XIX, tendo como ponto de partida o estudo de Álvaro Rodrigues de Azevedo, deu origem ao aparecimento de várias teses sobre o descobrimento da Madeira. A polémica recrudesceu na década de cinquenta e sessenta, por altura da comemoração da morte do Infante D. Henrique. Entretanto, para trás ficara a evocação do quarto centenário do descobrimento da ilha, uma importante manifestação de relevo na Madeira do primeiro quartel do nosso século.
«Perante as principais teses ou versões, parece-nos ilógico continuar a defender a opinião, embora comummente aceite, do seu primeiro conhecimento em 2 de Julho de 1419, por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira», afirma ao PÚBLICO Alberto Vieira. Segundo este investigador, esta tese oficial carece de fundamento histórico e baseia-se num texto de Gaspar Frutuoso que poderá ser utilizado na defesa da descoberta por Machim.
Num consenso geral, como sublinha o reitor da Universidade madeirense David Pinto-Correia, a intriga ou a história da chegada de Robert Machim, com Ana de Arfet e de alguns seus companheiros, à ilha da Madeira é uma «lenda», uma narrativa explicativa onde a realidade se cruza com o imaginário, o real com a ficção, os elementos históricos com o relato mítico. «Mais do que propriamente a descoberta da nova terra, o que mais tem interessado pôr em relevo tem sido a situação miserável dos dois amantes, os seu trágicos amores, tudo isso intensificado com os motivos de fuga para o desconhecido, da tormentosa viagem, da surpresa do achamento casual da ilha, e, para concluir, a morte dos dois amantes».
A articulação da história de Machim com o empreendimento de Zarco fez-se, segundo os testemunhos literários, por João de Morales ou João de Amores. Em verso e em prosa, escritores portugueses têm retomado a lenda transmitida num longo período de oralidade e aproveitada por Francisco Alcoforado, no século XV, e Valentim Fernandes, no século XVI, em relatos que haviam de inspirar Jerónimo Dias Leite, Gaspar Frutuoso, Manuel Tomás, D. Francisco Manuel de Melo. Mais tarde, Medina e Vasconcelos e António Galvão retomariam o tema de que, cerca de 1530, o italiano Giulio Landi apresenta um versão.
... e quem povoou o arquipélago?
Outro dos muitos pontos polémicos no início da História da Madeira, considera Alberto Vieira, é a data em que o solo virgem começou a ser desbravado pelos primeiros colonos europeus. Os cronistas definem o ano de 1420 como o de começo. Todavia, surgem opiniões diferentes, como a do Infante D. Henrique que, em 1460, declarava: «Comecei a povoar a minha ilha da Madeira averá ora XXXb anos...», isto é, a partir de 1425 ele iniciara o povoamento da ilha. Mas na doação régia de 1433, o monarca afirmara «que agora novamente o dito infante per nossa autoridade pobra».
Num trabalho apresentado no III Colóquio Internacional da História da Madeira, Maria Luís Rocha Pinto e Teresa Rodrigues, da Universidade Nova de Lisboa, procuraram sintetizar as várias teses existentes sobre as origens e entidades responsáveis pelo início do povoamento, remetendo para as três fases normalmente aceites pelos investigadores: a primeira cronologicamente extensiva até 1450, a segunda de 1450 a 1550 e a terceira posterior a esta data.
«Primeiro marco da expansão portuguesa, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, completamente ocupados nos meados do século XV, são uma réplica da fisionomia humana de Portugal numa paisagem física que o Continente desconhece», escreve Orlando Ribeiro em «Aspectos e Problemática da Expansão Portuguesa». Cedo ocupadas nos seus lugares mais favorecidos, acrescenta, estas ilhas foram uma rude escola de colonização e, numa fase posterior, vão tornar-se áreas emissoras de gente para outras partes do Império.
Segundo Jorge Dias, não é hoje possível afirmar com rigor quais as origens da população madeirense. É de crer que esta derive da províncias do Algarve e Entre Douro e Minho, os primeiro ligados à actividade marítima e os segundos à agricultura. A testemunhá-lo, restam vestígios vários de uso comum, como seja o tipo de enxada transmontana e minhota usada em Santana, o moinho manual mais popular no Algarve, o arado utilizado no Minho e Beira Alta, a azenha e o tear de origem minhota, e certos instrumentos musicais típicos de Entre Douro e Minho e o folclore de raiz árabe e nortenha.
Os primitivos povoadores procederam ao arroteamento das terras e construção de habitações, dentro do perímetro actual da cidade do Funchal e, simultaneamente, em diversos pontos considerados mais apropriados na costa sul, entre Machico e Ribeira Brava. Embora avultado, o número de colonos vindos do reino tornara-se insuficiente para a larga exploração agrícola, pelo que foi necessário recorrer a escravos que, em fins do século XV, ascendiam a dois milhares, ou seja, 12 por cento da população total.
Distribuídas pelo sistema das sesmarias, parte dessas terras seriam depois abandonadas à sorte dos «caseiros» -- que recebiam metade das produções agrícolas, ficando a outra parte para o proprietário da terra --, através de contratos de colonia estabelecidos com os sesmeiros ricos e colonos abastados que procuravam nos centros de mais densa população uma vida mais confortável. Entretanto, chegam às fazendas povoadas franciscanos que transformam os centros de culto em curatos e capelanias, com foros de paróquia, constituindo as sedes das futuras freguesias.
O povoamento madeirense registou o seu maior desenvolvimento na sua segunda fase, cronologicamente delimitada entre 1450 e 1550, com progressos crescentes da agricultura e das indústrias dela derivadas. De acordo com Joel serão ("Temas Históricos da Madeira", 1992), a exploração económica caracteriza-se, numa primeira fase, pelo aproveitamento imediato daquilo que se apresentava com valor mercantil -- as madeiras, o pastel, a urzela -- ou com valor alimentar, o peixe; passa depois para uma economia de criação, para a subsistência dos povoadores e, se possível, para a exportação -- o trigo, o gado, o açúcar e o vinho.
A cultura da cana sacarina desenvolve-se de forma apreciável, provocando uma súbita crise cerealífera, o que contribui para que S. Miguel (Açores) se transforme num importante celeiro nacional. De visita ao arquipélago em 1455, Cadamosto refere a tradição de que o Infante D. Henrique «mandou pôr nesta ilha muitas canas de açúcar, que deram boa prova» e celebrou contrato, em 1452, com Diogo de Teive, para a construção de um engenho hidráulico destinado à moenda de canas. A primeira venda de açúcar local ocorreria em Machico, capitania de Tristão Teixeira, sogro do genovês Micer João. O alargamento da cultura da cana -- indiscutivelmente o facto dinamizador, por excelência, da economia insular -- suscitou o difícil problema da rega, sendo a água, abundante a norte, transportada pelas «levadas» (pequenos canais) através das montanhas.
Alguns historiadores referem a terceira fase, correspondente aos finais do século XVI, como um período de estagnação e isolamento das ilhas, sentido a vários níveis da realidade socioeconómica. A partir de então, diz o Romanceiro do Arquipélago, «a Madeira ficará entregue a si própria, [tornando-se] cada paróquia o centro da vida, o raio visual o dos limites do campanário».
PHOTOGRAPHIA PERESTRELLOS -- Museu Vicentes
As comemorações do V Centenário do Descobrimento da Madeira (1922/23) foram dominadas pela figura do Infante D. Henrique, como obreiro da descoberta
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