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<DOCNO>PUBLICO-19940226-192</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940226-192</DOCID>
<DATE>19940226</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>MSL</AUTHOR>
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O sangue do ódio
David Landau, em Jerusalém
A paranóia de um só fanático que matou dezenas de fiéis muçulmanos numa mesquita de Hebron ameaçou deitar a perder meses de persistentes esforços diplomáticos e negociações entre Israel e os palestinianos. Com essa ameaça no horizonte, a comunidade internacional suplica aos dois lados que continuem a dialogar. Clinton chamou à Casa Branca Rabin e Arafat. Os dois líderes enfrentam pressões tremendas dos respectivos campos extremistas. Terão o engenho para transformar o massacre de ontem num trampolim para acelerar um acordo de paz?
O massacre de pelo menos 50 palestinianos por um colono judeu, numa mesquita de Hebron, na Cisjordânia, deixou o Médio Oriente em estado de choque, mas, apesar da raiva e da dor de uns e da vergonha de outros, a OLP e Israel reafirmaram ontem que não desistem de procurar a paz.
Não se conhece com precisão o total de vítimas de Baruch Goldstein, um médico do colonato de Kyriat Arba que descarregou a sua espingarda automática quando centenas de palestinianos rezavam na Gruta de Machpela, em Hebron, um lugar sagrado para judeus e muçulmanos. O número de mortos oscila, consoante as fontes, entre os 52 e os 63 e o de feridos entre 80 e 300.
O líder da OLP, Yasser Arafat, apelou para uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU (esperavam-se ontem à noite contactos informais deste órgão) e pediu protecção internacional para o seu povo. O primeiro-ministro israelita, Yitzhak Rabin, que chamou «psicopata» a Goldstein, tomou a iniciativa de telefonar a Arafat, para lhe pedir desculpas e dizer que «estava envergonhado».
Apesar da indignação de Arafat e de outros líderes palestinianos, como Faiçal Husseini, que advertiram para «a agonia do processo de paz», Sakher Habache, falando em nome do comité central da Fatah, a principal facção da OLP, assegurou que as negociações com os israelitas não serão interrompidas apesar do massacre. «Pelo contrário», salientou, «estes actos demonstram que a paz é uma urgência». Não excluiu, porém, os riscos de represália por parte de palestinianos que querem vingar-se.
Numa tentativa de apaziguamento, o Presidente americano, Bill Clinton, que ajudou Rabin e Arafat a apertar as mãos na Casa Branca, convidou israelitas e palestinianos a retomarem rapidamente as negociações em Washington, para impedir que «os extremistas de ambos os lados» tornem o conflito interminável. «A resposta agora é redobrar os esforços para concluir as conversações entre Israel e a OLP e iniciar o mais rapidamente possível a aplicação de um acordo».
Só podia ser em Hebron
Enquanto as consequências do massacre de Hebron continuam a ser matéria para as mais variadas especulações, qualquer asserção sobre as suas causas depende quase inteiramente da perspectiva política de quem a faz.
Para muitos no campo árabe, e no mundo em geral, o ataque de um atirador judeu contra fiéis árabes indefesos que se encontravam a rezar, é um símbolo da ocupação israelita. Para alguns extremistas árabes, o ataque é consequência do acordo entre Israel e a OLP, assinado em Setembro passado, mas ainda atolado na discussão de pormenores e, por isso, ainda não aplicado.
Paradoxalmente, também alguns extremistas judeus lançam as culpas sobre o acordo. Na realidade, amigos do assassino, Baruch Goldstein, afirmaram que ele estava perturbado pelo acordo e considerava que «alguma coisa tinha que ser feita para acabar com ele». A maior parte dos israelitas mostrava-se ontem envergonhada e espantada. Não podiam acreditar que Goldstein represente de alguma forma os 120 mil colonos que há 27 anos vivem nos territórios conquistados na Guerra dos Seis Dias.
Mas, seja quem for que analise as causas profundas do massacre, o seu «background» específico -- religioso, histórico e geográfico -- surge perfeitamente claro. Se existe um único lugar nos territórios ocupados onde poderia esperar-se que um acto destes acontecesse, esse local seria a Gruta de Machpela, ou Túmulo dos Patriarcas, em Hebron.
Fracasso do Exército
Desde a guerra de 1967, o Exército israelita tem protegido este local sagrado precisamente do tipo de perigo representado por um único indivíduo fanático que de repente enlouquece. O facto de ter, apesar de tudo, acontecido é, para além de todos os outros aspectos desta tragédia, uma mancha no cadastro do Exército, um rotundo fracasso em termos de espionagem, segurança e capacidade elementar de reacção.
Tanto judeus como muçulmanos acreditam que por detrás das paredes imponentes de Machpela se encontram os túmulos de Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacob e Lia. É um lugar sagrado para as duas religiões. Desde 1967 tem vigorado um «statu quo» que regulamenta a utilização para os serviços religiosos da enorme estrutura edificada pelos cruzados (em tempos foi uma igreja).
Os muçulmanos argumentam que, à medida que os colonatos judaicos foram crescendo, tanto dentro de Hebron como na vizinha Kiryat Arba, esse «statu quo» se alterou francamente a favor dos judeus. Periodicamente, têm-se registado confrontos e até motins entre fiéis. Ontem, nas horas que antecederam o massacre, judeus e muçulmanos terão discutido sobre o «horário» para a manhã de um dia que era simultaneamente o feriado judeu do Purim e uma sexta-feira do mês sagrado muçulmano do Ramadão.
O massacre em Hebron desencadeou confrontos violentos em toda a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental, nalguns casos com balas disparadas pelo Exército a fazerem cair mais palestinianos e a aumentar o balanço de mortos e feridos do dia. Milhares de residentes árabes dos territórios foram para a rua protestar, envolvendo-se em choques com soldados, que mataram pelo menos 12. Israelitas confessaram que «nunca tinham visto nada assim».
De Damasco e Beirute vieram promessas sombrias dos grupos rejeicionistas palestinianos e de movimentos fundamentalistas islâmicos: os inocentes assassinados serão vingados. Nos territórios ocupados começaram a circular panfletos clamando por vingança sobre os colonos e os soldados. Um «guarda civil» israelita foi morto com um machado, perto de Telavive, por um palestiniano que fugiu e levou a pistola da vítima. Logo de seguida, a polícia prendeu vários palestinianos.
Para o Governo israelita, que se reuniu em sessão de emergência ontem à tarde, a tarefa imediata é impedir que a confrontação alastre. A população palestiniana, que se vinha mostrando cada vez mais frustrada com o ritmo lento e hesitante do processo de paz, foi assaltada por um paroxismo de raiva e dor, atiçado por forças anti-Arafat e anti-paz.
Colonos devastados
Os colonos judeus, na maior parte dos casos, também ficaram devastados: compreendem que o crime enfraquecerá tremendamente a sua posição na sociedade israelita, e afastará pessoas que se mostravam compreensivas para com a sua causa, ou pelo menos para com o seu argumento humano, já que eles combatem contra a perspectiva de serem expulsos das suas casas.
Mas há aqueles -- e, ainda que na margem, é uma margem armada e militante -- que vêm Goldstein como um mártir e um herói. Pode esperar-se destes fanáticos que façam aquilo que puderem para exacerbar as tensões e a violência.
O Governo e o Exército enfrentam, portanto, a tarefa vital e urgente de tapar o caldeirão do ódio e de impedir que ele continue a deitar por fora até ao ponto de extinguir qualquer esperança de paz. Essa tampa, se realmente colocada, precisará de ser mantida firmemente no seu lugar durante dias e semanas, até que a situação arrefeça. Terá de ser mantida no lugar mesmo se -- como é provável, mas não inevitável -- ocorrerem mais actos de terror, em ambas as direcções.
Mas se as autoridades forem bem sucedidas neste desafio, as consequências ulteriores do sangrento horror de ontem podem ainda revelar-se favoráveis. Vários ministros pediram que as conversações de paz sejam aceleradas por causa do que aconteceu. O próprio Rabin, numa declaração sombria à imprensa, falou da sua determinação em «avançar rapidamente», a fim de chegar ao «dia da paz... quando extremistas dos dois lados perderão todas as esperanças».
Um deputado da coligação, Ran Cohen, sugeriu que o Exército anuncie o início da sua retirada, dentro de uma semana, de Gaza e Jericó -- a primeira fase do plano de paz --, deixando que os pormenores das negociações sejam concluídos com a retirada já em andamento.
A ideia, embora não imediatamente adoptada a nível ministerial, parece reflectir um sentimento cada vez mais generalizado em círculos governamentais de que, tendo atravessado o Rubicão em Setembro do ano passado na Casa Branca, Rabin e Arafat, sem hipótese de voltar atrás, fariam bem em ultrapassar os mais pequenos detalhes e aplicar urgentemente o acordo conseguido.
Não há dúvida de que os dois líderes enfrentam, este fim-de-semana, pressões poderosas e contraditórias dentro dos respectivos campos. Do lado palestiniano, a raiva e a dor são imensas; entre os israelitas há agitação e dúvidas.
O massacre de Hebron pode significar o fim do processo de paz e, com ele, de todas as esperanças de um novo Médio Oriente. Mas pode ser transformado, por artes de liderança de ambos os lados, num catalisador dramático que conduza os negociadores a uma rápida e bem sucedida conclusão da sua tarefa.
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