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<DATE>19940308</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
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Teresa Sobral Cunha, a organizadora de «Poemas Completos de Alberto Caeiro», ao PÚBLICO
«Sou pelo dia triunfal!»
Carlos Câmara Leme
Aposta numa versão o mais completa possível de Alberto Caeiro. Com ou sem inéditos, que também dá a lume, Teresa Sobral Cunha quis, sobretudo, «restituir o texto à verdade original». Não acredita que Pessoa tenha escrito de uma só vez os 30 poemas d'«O Guardador de Rebanhos». Mas é pelo dia triunfal do nascimento dos heterónimos -- a acreditar no poeta, 8 de Março de 1914. Pensa até que haverá alguma explicação astrológica... Retoma críticas à Equipa Pessoa e pensa que a SEC tem de repensar a sua composição.
Os poetas Sophia de Mello Breyner Andresen, Fiama Hasse Pais Brandão, Pedro Tamen, David Mourão-Ferreira e Gastão Cruz lêem hoje, às 18h30, na Casa Pessoa, em Lisboa, textos de «Poemas Completos de Alberto Caeiro» (Ed. Presença), recolhidos, transcritos e anotados por Teresa Sobral Cunha. A obra, que inclui também um posfácio de Luís de Sousa Rebelo, será apresentada por outro poeta, José Blanc de Portugal, que nasceu a 8 de Março de 1914, curiosa e precisamente no celebérrimo «dia triunfal» da vida de Fernando Pessoa, de acordo com a mítica carta, a Adolfo Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos.
Embora Ivo Castro, o responsável pela Equipa Pessoa, tenha desmontado, na edição que fez d'«O Guardador de Rebanhos» (Ed. Dom Quixote), a história contada por Pessoa -- «não houve nada de `dia triunfal' nessa tirada» --, Sobral Cunha é pelo «dia triunfal». «Não foram escritos os trinta e tal poemas de `O Guardador de Rebanhos', mas houve um dia triunfal.» E sugere, mesmo, que a data «tem uma fundamentação astrológica».
Ficção? Não-ficção? No labirinto pessoano, os trinta e tal poemas a fio ficaram, ainda segundo a carta a Casais Monteiro, ligados ao «aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro». Alberto Caeiro da Silva. De acordo com o «photomaton» pessoano, nasceu em 1889 e morreu em 1915. Foi Lisboa que o viu nascer e morrer, «mas viveu quase toda a vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma», ao contrário da sua companhia heteronímica -- Álvaro de Campos era engenheiro naval, Ricardo Reis, médico.
«A sua vida -- informa Reis num texto que abre o livro agora apresentado --, porém, decorreu quase toda numa vila do Ribatejo.» Pessoa inventou-o «louro sem cor, olhos azuis», «estatura média, e, embora frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era». Reis afiança, por outro lado, que «a vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida».
Campos, outro seu companheiro da aventura pessoana, exclama «Viva o meu mestre Caeiro!» e reconhece que ele, Reis e António Mora são nada mais nada menos que «três interpretações orgânicas de Caeiro». Teresa Sobral Cunha, na entrevista que deu ao PÚBLICO, fala desta interactividade da relação do mestre com o universo pessoano, das suas opções editoriais e do estado da polémica em torno das investigações e edições críticas, em particular das de Campos (ver PÚBLICO de 14/2/1993).
Para Sobral Cunha, depois «da experiência traumatizante com Campos», «a equipa da edição crítica oficial existe ainda com a composição actual por razões completamente inexplicáveis». Mais: a Secretaria de Estado da Cultura tem de repensar toda esta situação.
A presença de Caeiro
PÚBLICO -- Depois de «Fausto» e do «Livro de Desassossego», por que é que se voltou, depois, para Alberto Caeiro?
TERESA SOBRAL CUNHA -- Não há um antes nem um depois, há um durante. Não é por acaso que a epígrafe com que abro os «Poemas Completos de Alberto Caeiro» -- di-lo Ricardo Reis -- é que é «de Caeiro [que] nasce tudo». Quem trabalha com Pessoa tem consciência de que a presença de Caeiro é tão extraordinariamente viva que não é possível estar-se alheado disso.
P. -- O que se diz de Caeiro, no âmbito da trama pessoana, não pode dizer-se de Campos ou de Reis?
R. -- Se olharmos atentamente para a nota oitava da «Recordação do Meu Mestre Caeiro por Álvaro de Campos» -- nota que explica o que foi a transformação dos heterónimos depois do seu contacto com o terramoto caeiriano --, podemos ter uma espécie de síntese da missão que foi cometida a cada um deles.
P. -- Mas não há grande dose de invenção, de ficção, nessa construção pessoana? Campos chega a dizer que «mais curioso é o caso de Fernando Pessoa, que não existe, propriamente falando»...
R. -- ... e mais adiante diz que Pessoa só logrou fazer o seu retrato interior com «Chuva Oblíqua», depois do seu contacto com Caeiro -- de resto, à semelhança do que aconteceu com os outros heterónimos: Reis assumiu o paganismo integral, Mora encontrou a verdade e Campos decide-se a escrever a «Ode Triunfal». Isto é de tal maneira interactivo...
P. -- O que há de mais significativo em «Poemas Completos de Alberto Caeiro»? O que dele dizem Campos & Reis? Ou o que de Caeiro aparece com a sua assinatura? Há muitas diferenças entre as edições anteriores, nomeadamente a da Ática, e a que agora propõe?
R. -- Há imensas diferenças! O que fiz, por isso, foi dar prioridade ao texto. O texto tem sido de tal maneira secundarizado, por alguns editores, em favor das metodologias que a minha principal preocupação não foram as incidências heteronímicas, mas o estado do texto. Há poemas de «O Pastor Amoroso» -- por exemplo, o primeiro poema -- que têm vindo a ser lidos sem três versos finais; noutro caso, a uma grande ode foram retirados dois versos iniciais e foi sempre publicado como sendo seis poemas diferentes, quando, de facto, são seis estrofes que pertencem à mesma ode.
Tirando os que Pessoa publicou em vida, quase todos contêm erros: quer os que foram publicados pela Ática quer os que foram editados, por Ivo Castro, de «O Guardador de Rebanhos».
P. -- Já agora: concorda, ou não, com Ivo Castro em que a história contada, na carta a Adolfo Casais Monteiro, por Pessoa do «dia triunfal» é «uma ficção»?
R. -- Evidentemente que o «dia triunfal» é um truque poético, embora o primeiro e o segundo poemas de «O Guardador...» tenham sido escritos no dia 8 de Março de 1914 -- uma data que, julgo, tem uma fundamentação astrológica. O facto de, nesse mesmo dia, Pessoa ter escrito os seis poemas de «Chuva Oblíqua» acaba por dar uma espessura a essa data que não deve ser subestimada. Eu, como Luciana Stegagno Picchio, sou pelo «dia triunfal». Não foram escritos os trinta e tal poemas d'«O Guardador de Rebanhos», mas houve um dia triunfal -- que Pessoa, de resto, preservou até 1935!
P. -- No posfácio a «Poemas Completos de Alberto Caeiro», e citando Campos, Luís de Sousa Rebelo sublinha o «poético sem quase poesia» de Caeiro. Esta ideia foi lida por José Augusto Seabra como o «grau zero da poesia» e por Eduardo Lourenço como o «grau ómega da poesia». Com que visão é que está mais de acordo?
R. -- São sobreponíveis. Ambas decorrem de um carácter essencial e de situações-limite da arte poética: uma porque pretende ser ponto de partida, outra porque se supõe ponto de chegada.
A verdade original...
P. -- Não adoptando a categoria de edição crítica, defende uma «pedagogia de projecto editorial». Qual é o seu modelo de edição dos poemas de Caeiro?
R. -- A minha preocupação fundamental é restituir o texto à verdade original.
P. -- E há uma verdade original?
R. -- A verdade qual é? São as palavras que o autor escreveu.
P. -- Mas admite a hipótese de nem sempre acertar na leitura que faz?
R. -- Claro, devemos ser prudentes. Mas nessas coisas as estatísticas também pesam. E, repito, o fundamental é dar prioridade ao texto. Está provado que o puro exercício da filologia, mesmo que muito elaborado, se não parte da matriz correcta não funciona.
P. -- Daí a distinção que faz entre «texto definitivo» e «texto fiável». O que é que entende por isso?
R. -- «Texto definitivo» é aquele que Pessoa publicou em vida. Os outros são textos fiáveis se correctamente transcritos. E sublinho o plural porque um texto onde foram introduzidas variantes é um texto múltiplo. Não há nunca uma única versão de um texto. Há tantas leituras quantas as variantes. Mas os termos têm que estar correctamente lidos.
P. -- Como é que faz para escolher a «sua» variante, qual é o critério que utiliza?
R. -- Não tenho um critério único. Cada variante é um caso. Por exemplo: num texto em que Pessoa iniciou a correcção e não a prosseguiu, não posso ter em conta esse trabalho. Se há sete variantes, nunca se poderá saber qual a escolha final do autor.
P. -- ... então por que não adopta o critério da Equipa Pessoa, isto é, o testemunho mais recente?
R. -- Porque rarissimamente se sabe qual foi esse testemunho. Além disso, não se pode saber se seria a mais recente a que Pessoa escolheria para publicação.
P. -- Do mesmo modo que não se sabe se seria aquela que escolheu?
R. -- Com certeza! Faço a minha escolha, mas sei que podia não ser a de Pessoa. Mais: as sete versões, desde que correctamente lidas, são todas legítimas.
«Não me interessam as metodologias!»
P. -- Estes problemas estão no centro da polémica pessoana desde o aparecimento do primeiro volume -- «Poemas de Álvaro de Campos» -- da Equipa da Edição Crítica e, posteriormente, da edição crítica proposta por Teresa Rita Lopes. Como é que vê esta polémica?
R. -- Estou à espera de que se regresse ao bom senso. Uma edição desta complexidade exigiria a participação de todos os pessoanos, cada um com a sua especificidade e experiência. É necessária a vertente filológica como o são, e talvez prioritariamente, outras vertentes que têm faltado. Por isso, temos uma edição crítica de Campos que é lamentável e uma outra, de Teresa Rita Lopes, que tem grandes progressos em relação à oficial, mas, como ela própria reconhece, ainda não é «a última edição». E, efectivamente, não é. É impensável que se tenha colocado no mercado uma edição, como é a oficial, que não tenha tido a aprovação de todos quantos trabalham em Pessoa...
P. -- ... podia ser a situação ideal, mas a verdade é que há, à partida, metodologias diferentes...
R. -- Voltamos à mesma questão: o primeiro e último objectivo de uma edição crítica é o texto. Não me interessam as metodologias! Por muito inovadora que seja a metodologia utilizada, se não se obtém um texto fiável, a edição crítica não tem razão de ser. Por isso, é intencionalmente que esta edição dos «Poemas Completos...», apesar de ter pressupostos paracríticos, não tem pretensões de ser uma edição crítica. Fico à espera das críticas, mas julgo que os textos -- de Caeiro mas também de Campos e Reis -- que editei sofreram grandes beneficiações.
P. -- Põe a hipótese de trabalhar nos poemas de Campos? De propor uma outra leitura?
R. -- Essa leitura vai ter de ser feita, embora não esteja nos meus planos imediatos. Se vier a fazê-la, só espero não ter que a fazer sozinha. Acho é que era importantíssimo chegar a uma edição consensual.
P. -- Mas a existência de mais de uma edição crítica não confunde a opinião pública?
R. -- Com certeza, porque a edição crítica arrancou mal. Num país onde há tão poucas pessoas que trabalham no espólio e com os originais de Pessoa, por que razão não estamos todos a contribuir? Há a experiência da Equipa de Eça de Queirós, onde não estão só investigadores nacionais, mas também estrangeiros. Mais: neste momento, é claro que a equipa da edição crítica oficial existe ainda com a composição actual por razões completamente inexplicáveis.
P. -- É apoiada pela Secretaria de Estado da Cultura (SEC), tem um plano de trabalho -- depois de Campos e do primeiro volume de «Poemas Ingleses» sairá, ainda neste ano, «Poemas de Ricardo Reis»...
R. -- Depois da experiência traumatizante com Campos, seria de esperar que houvesse uma revisão da situação quer da parte da Equipa Pessoa quer da parte da SEC.
Título: «Poemas Completos de Alberto Caeiro»
Autor: Fernando Pessoa
Recolha, organização e notas: Teresa Sobral Cunha
Editor: Editorial Presença
352 pgs., 450000
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