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<DOCNO>PUBLICO-19940324-112</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940324-112</DOCID>
<DATE>19940324</DATE>
<CATEGORY>Sociedade</CATEGORY>
<AUTHOR>BR</AUTHOR>
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Ainda não existe hospital de dia para a sida em Santa Maria
As dez crises de um serviço hospitalar
Bárbara Reis
Há entre 500 e 700 seropositivos a fazer tratamento ambulatório no Hospital de Santa Maria. O que nunca é fácil, neste caso é-o muito menos. Não existe hospital de dia. As pessoas ficam horas à espera para fazer um tratamento. Mais grave, faltam medicamentos e material com frequência. E lá em baixo, no piso 5, os doentes internados comem no corredor.
Santa Maria é o único hospital central português que não tem ainda hospital de dia para a sida. Não é uma novidade, mas há mais de quatro anos que a equipa médica diz que é uma urgência. Em termos práticos, isto implica que os doentes percam o dobro das horas necessárias para fazer um tratamento, ou que à tarde não haja uma enfermeira no serviço, ou que com frequência faltem medicamentos ou material.
Um hospital de dia é um serviço onde as pessoas -- porque têm uma doença crónica -- vão regularmente fazer tratamentos diferenciados mas de curta duração, que por isso não implicam internamento. Funciona das oito às oito. É bom para todos. Para os doentes, para o hospital e para o orçamento. Permite atender mais doentes, sem muitos custos.
Em 1992, no Dia Mundial da Sida, 1 de Dezembro, o então ministro da Saúde, Arlindo de Carvalho, prometeu, durante uma visita a Santa Maria, cinco mil contos para a criação de um hospital de dia para a sida. Nada aconteceu.
Miguel Carneiro de Moura, presidente do Conselho Administrativo do hospital, confirma que esse dinheiro está nos seus cofres e que, «por acaso», Odete Ferreira, coordenadora da Comissão Nacional de Luta contra a Sida (CNLCS), «teve a gentileza de disponibilizar, há duas semanas, 15 mil contos».
Santa Maria já tem portanto 20 mil contos prontos a serem investidos na criação de um hospital de dia, cujo projecto já está pronto. Carneiro de Moura diz que, apesar de o investimento necessário ser de 40 mil contos, a unidade será criada este ano.
À excepção de Santa Maria, todos os hospitais centrais portugueses têm hospitais de dia para a sida. Ou seja, o da Estefânia, Curry Cabral, Egas Moniz, em Lisboa; o de S. João, S. António e Joaquim Urbano, no Porto, e o da Universidade de Coimbra, além do distrital de Setúbal, o segundo distrito do país com mais casos de infecção pelo HIV. O processo começou em 1993, quando a CNLCS deu a cada um dos hospitais, incluindo o de Santa Maria, cinco mil contos. Aliás, os 15 mil a que Carneiro de Moura se refere, tiveram despacho do actual ministro da Saúde, Paulo Mendo, em Dezembro, disse ao PÚBLICO Jorge Torgal, membro da direcção da CNLCS. Ao todo, a comissão atribuiu já 70 mil ao Egas Moniz, 20 mil a Santa Maria e 17 mil ao de São João.
Em 1985, apareceu o primeiro seropositivo em Santa Maria. Há sete anos havia cinco ou seis pessoas. Desde então foram registadas no serviço 2000. Hoje, entre 500 e 700 fazem tratamento ambulatório. Isabel, professora do ensino secundário, é uma delas, acompanhada neste hospital há nove anos: «Eles fazem de conta que aquilo é um hospital de dia, embora não tenham apoio. Uma médica esteve fora, com uma depressão. Nós sentimos que os médicos estão cansados da falta de apoio.»
Porquê quatro anos de espera? A explicação da administração é a de que o critério de criação de hospitais de dia se define pelo volume de doentes. Foi por isso que em 1991 Santa Maria criou um hospital de dia para a unidade de hematologia, depois para a transplantação de medula óssea (50 transplantes/ano), a seguir para oncologia médica e, em Dezembro de 1993, para otorrinolaringologia (200 doentes diários).
Muitos tratamentos regulares dos seropositivos, como os soros, não requerem internamento, mas implicam estar-se deitado numa cama. Camas só há três e um soro pode demorar duas ou três horas a ser ministrado.
«O meu marido já lá esteve à espera horas, várias vezes», diz Isabel. Por isso, ela e o marido acabaram por comprar um suporte para fazer o tratamento de soro em casa e contrataram uma enfermeira. Cada ida a casa custava três contos. E foi muito difícil encontrar uma que aceitasse o trabalho. «Cinco ou seis recusaram, dando diferentes justificações.» Depois, diz o óbvio: «Se tivéssemos hospital de dia, não teríamos necessidade disto.»
Se houvesse hospital de dia, também a «frequência de falta de medicamentos ou material deixaria de existir», disse ao PÚBLICO o director do serviço de doenças infecciosas, Francisco Antunes.
Na quinta-feira, a ida de Isabel ao hospital não lhe serviu para nada, a não ser para se angustiar. Tinha feito análises ao fígado na consulta anterior, um mês antes, e os resultados não estavam prontos. Era também o dia do tratamento de profilaxia da pneumonia, o que não aconteceu. Uma vez mais, não havia a traqueia necessária para fazer o tratamento de pentamidina. Isto já aconteceu «várias vezes» e Isabel já esteve dez e 15 dias à espera que o «stock» fosse de novo preenchido.
A sétima crise: o presidente do Conselho Administrativo de Santa Maria disse ao PÚBLICO que nunca ouvira falar deste problema. «A farmácia é categórica em dizer que nunca faltou pentamidina nos últimos tempos. Do que tem havido falta é de traqueias, para fazer o tratamento.» A casa fornecedora está em dívida com mais de 200 cânulas, diz Carneiro de Moura.
O problema parece estar no facto de as cânulas serem importadas dos Estados Unidos. «Não tem sentido que venham da América, não acredito que não haja cânulas europeias ou que Paris importe dos EUA.» Por isso vai dar «instruções para se ter outro fornecedor».
Entre 50 e 70 pessoas fazem este tratamento, de três em três semanas, e no fim do mês passado pelo menos dez doentes não o fizeram. «Houve um atraso de 15 dias na entrega de cânulas. O armazém não tinha em `stock'. No dia seguinte dei instruções para se comprar no exterior», disse Francisco Antunes.
A nona crise, mais abstracta. «Todas as semanas existe falta de qualquer coisa. A culpa não é só dos fornecedores, mas do armazém», diz Francisco Antunes.
Para os doentes, tanto faz de quem é a culpa. A única questão é que, correndo o risco de apanharem uma pneumonia, quem é que responsabilizam? O armazém? A administração? Os fornecedores? O serviço? A pentamidina é a única profilaxia para a pneumonia, uma das doenças que em muitos casos acaba por matar os seropositivos, que progressivamente vão perdendo a sua imunidade.
Outra queixa de alguns doentes é sobre o fornecimento do AZT. Ricardo é seropositivo desde 1988 e diz que sempre que vai à farmácia [do hospital, o AZT não é vendido nas farmácias externas] discute com a directora farmacêutica. «Ela diz: `Só posso dar para um mês.' Eu respondo: `Mas eu tenho receita para três meses.' Isto é complicado, sobretudo para pessoas cujo trabalho é a viajar ou para alguém que vive em Santarém.»
Este é um problema com explicação. «É uma política interna das farmácias hoje em dia, aqui e lá fora», diz Carneiro de Moura. «Dado o volume que temos, fornecer os medicamentos para um mês é uma decisão que nos pareceu correcta em termos de gestão. Para todas as doenças. Mas, se vários doentes se queixarem, podemos pensar nisso.»
Haveria mais dez. No piso de internamento, por exemplo, há 24 camas com pessoas infectadas pelo HIV e, muitas vezes, sete ou oito macas com doentes no corredor. Ver mais crises no texto ao lado.
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