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<DOCNO>PUBLICO-19940408-102</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940408-102</DOCID>
<DATE>19940408</DATE>
<CATEGORY>Economia</CATEGORY>
<AUTHOR>MC</AUTHOR>
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Álvaro Barreto
«Emaranhado legislativo é o maior problema da floresta»
Manuel Carvalho
A floresta portuguesa deixou de ser considerada o «petróleo verde» da segunda metade da década de 80. Mas, para Álvaro Barreto, ex-ministro da Agricultura e presidente da Soporcel, continua a servir de esteio a uma indústria «em que somos competitivos a nível mundial».
Num momento em que se aprofunda a dependência externa de matérias-primas, Álvaro Barreto evita entrar em polémicas em relação aos apoios para o sector no âmbito da reforma da PAC e do PDR. Assumindo-se como «um fortíssimo ecologista», diz apenas que «é um erro» não subsidiar os eucaliptos e remete os problemas de fundo da floresta para «o emaranhado legislativo que a bloqueia».
PÚBLICO -- Acredita na iminência de ruptura na fileira florestal que o relatório Porter prevê para a próxima década?
R. -- Se não forem tomadas medidas importantes e drásticas acredito que isso possa acontecer. No inventário florestal que se fez recentemente verifica-se que há um défice de madeira para os próximos anos. Nós já estamos a importar madeira este ano, em conjunto com as outras empresas. No nosso orçamento [da Soporcel] previmos a importação de 100 milhões de esteres só para nós, o que representa seis ou sete por cento do nosso consumo, mas as indicações que temos é que nos próximos anos vamos ser obrigados a importar cada vez maior quantidade. E o que faz a competitividade deste sector é o custo da madeira, que representa no nosso caso 35 por cento dos custos de produção. Se continuarmos a importar cada vez mais, a nossa competitividade será menor.
P. -- Os 80 milhões de contos de comparticipações públicas previstos para o fomento florestal nos próximos anos parecem-lhe capazes de alterar esse cenário de dependência externa?
R. -- Sinceramente não me quero pronunciar sobre valores exactos e a sua aplicação sem os conhecer oficialmente. Sei que o ministro Arlindo Cunha os anunciou recentemente, mas ainda não sei como é que se vão repartir...
P. -- Sabe-se de qualquer forma que estão à disposição do sector à volta de 80 milhões de contos quando há uns meses atrás se falava em 120 milhões...
R. -- Pois e os valores que me dão em termos genéricos, depois de bem "espremidos" ainda vão ser menos de 80 milhões. É que estão aí incluídos alguns indicadores como a luta contra os incêndios -- e que estão bem, não critico isso. Mas quanto a saber que parte desses 80 milhões é que vão ser aplicados no fomento florestal eu não tenho ainda elementos seguros. Lembro apenas que os valores que se falaram anteriormente eram de facto superiores.
Indústria líder
P. -- Considera portanto que as verbas destinadas ao fomento florestal não afastam os riscos de ruptura na fileira.
R. -- Penso que vai ser possível na conjugação de todos os esforços encontrar solução para este problema porque é um problema muito importante para o país. Portugal não tem muitas indústrias com nível competitivo no contexto mundial. Na indústria da pasta e do papel, Portugal é hoje o líder europeu e temos uma participação muito importante na produção mundial. Só o papel que nós produzimos representa cinco por cento de toda a produção europeia.
Temos a grande vantagem competitiva de termos uma matéria-prima que não existe nos outros países da Europa e que nos garante uma enorme qualidade ao papel, que é o eucalipto. As pessoas podem não gostar dele, mas do ponto de vista da qualidade, conseguimos que o papel fabricado com o eucalipto nacional possa ser vendido nos mercados externos a preços sete a oito por cento superiores à média dada a sua textura e brancura. Temos condições ideais para ser líderes nesse sector: temos tecnologia, experiência, matéria prima e temos espaço para a floresta.
P. -- O Governo ainda não decidiu em definitivo, mas tudo indica que os eucaliptos não venham a ser contemplados com subsídios para a arborização no âmbito do próximo Plano de Desenvolvimento Florestal (PDF). Aliás, os apoios aos eucaliptos só aconteceram no seu mandato no Ministério da Agricultura.
R. -- Não é verdade. Ainda no meu tempo foram anulados os subsídios aos eucaliptos. O Plano de Acção Florestal I [antecessor do actual PDF] previa uma ajuda de 20 por cento à arborização com eucaliptos. No entanto, constatámos que os preços no mercado mundial eram de tal forma favoráveis ao sector que nos pareceu de certa maneira ridículo estarmos a subsidiar uma árvore cujo sector tinha capacidade de financiar a 100 por cento. No período de 1986/89 o preço da pasta chegou a 700 ecu por tonelada e agora, para comparação, está nos 290. Ou seja, foi uma análise feita sobre a alta rendibilidade que o eucalipto apresentava que nos levou a concluir que o agricultor não necessitava de subsídios. Foi então que disse para se desviar as ajudas dos eucaliptos para outras espécies.
O factor
brasileiro
P. -- E na situação actual justifica-se essa atitude?
R. -- Há uma alteração profunda no sector industrial da pasta de papel que é o arranque no princípio da década de 1990 da indústria brasileira. Nessa altura, Portugal era o país mais competitivo do sector. Mas a entrada em produção da indústria brasileira faz entrar o sector em crise profunda, o que faz com que a pasta nunca mais volte aos valores da década de 1980. É por isso necessário que a floresta portuguesa tenha capacidade para fornecer as nossas indústrias. Se na nova regulamentação o eucalipto tiver uma ajuda zero, eu acho errado. Mas mais errado ainda porque hoje há grandes avanços na genética florestal que permitem obter rendimentos da madeira 40 ou 50 por cento superiores aos rendimentos anteriores. Poderíamos assim arrancar as árvores ao primeiro corte e reflorestar com as espécies novas. O Governo devia dar um sinal muito claro para se reflorestarem os eucaliptais velhos com as novas espécies. Estávamos então numa situação em que não era necessário aumentar tanto a área de eucalipto.
P. -- O que o preocupa mais, a limitação dos apoios financeiros ou a dispersão legislativa da competência de quatro ministérios?
R. -- Para mim, o principal problema da floresta é o emaranhado burocrático e administrativo criado pela legislação. O Ministério do Ambiente cria a reserva ecológica, o da agricultura não revê a reserva agrícola... agora os Planos Directores Municipais também definem que área é para a agricultura e definem-na sem qualquer integração dos princípios da agricultura comunitária. A própria legislação da floresta está mal feita e depende das autorizações de várias autoridades, o que acaba por bloquear os processos. O que acaba por tornar moroso e praticamente impossível fazer a reflorestação ao ritmo necessário para não haver a ruptura que o relatório Porter antevê.
P. -- Que comentários lhe merece o projecto Lei sobre a Política Florestal Nacional que o Governo se prepara para apresentar à Assembleia da República?
R. -- Estou de acordo com a filosofia base do projecto. Mas a parte mais importante da lei vai ser a sua regulamentação. Se a lei não for regulamentada não serve para nada. Tenho um certo receio que o Governo considere ter definido uma política de floresta nacional com a saída da lei e depois nunca mais venha com a regulamentação, que terá de ser muitíssimo complexa e ambiciosa. Depois, o projecto prevê funções para o Estado e eu não vejo que o Estado tenha hoje capacidades para as cumprir.
Por exemplo, aquela previsão que, no caso de as terras não serem devidamente florestadas, o Estado ocupa-las-á e fará a sua florestação. Eu não dirijo a máquina do Ministério há quatro anos, mas não estou a ver onde é que, na prática, aquilo vai ter possibilidades de ser aplicado. A lei por si própria é positiva, é necessária, mas não é suficiente. O que falta fazer é muito mais importante que a própria lei: a sua regulamentação e depois a capacidade de actuação para aplicar aqueles mesmos princípios.
Concentração de meios
P. -- A Soporcel vai continuar a investir directamente na arborização, ou vai privilegiar contratos com terceiros?
R. -- Nós parámos o plano de reflorestação próprio porque nestes anos de dificuldade tivemos de concentrar os meios financeiros na parte dos investimentos e no desenvolvimento do papel. Tivemos de fazer opções. Mas temos intenção de retomar a reflorestação logo que a situação da empresa o permita. No entanto, estamos a tentar desenvolver muito o apoio técnico a projectos de produtores privados porque na realidade o que nós pretendemos é ter madeira. Não nos interessa nada ter florestas próprias. Nós entendemos que deveríamos ter como objectivo pelo menos 40 a 50 por cento da nossa própria capacidade garantida por florestas próprias.
Na realidade, se houver um movimento de agricultores a quererem reconverter terras à florestação a função da Soporcel, através da Emporsil, é dar o apoio em projectos, nos processos burocráticos. Para nós o que nos interessa é fomentar a parte agrícola. Mas isso depende também um bocadinho da mentalidade dos nossos produtores florestais, que nunca viram a floresta como investimento. Muitos deles viram-na sempre como algo para estar guardado, para poderem cortar no casamento das filhas. E a floresta é das nossas maiores potencialidades.
P. -- Embora haja quem condene os eucaliptos. Como o fez Mário Soares na sua Presidência Aberta dedicada ao ambiente.
R. -- Pois. Eu penso que o bom senso há-de vencer. Não estou a defender a eucaliptização total do país. Defendo é que o eucalipto tem um lugar importante na vida portuguesa e que há muitas pessoas que quando se opõem ao eucalipto gostariam de saber quais são as alternativas.
P. -- Há muito cinismo neste discurso. É isso que quer dizer?
R. -- Não. Há muita falta de realismo. Há muita fantasia. As pessoas julgam que eu estou a brincar, mas eu sou um fortíssimo ecologista. As pessoas não acreditam. Eu defendo à viva força que temos de levar o ambiente a sério neste país, para o preservar. Mas temos que ser ao mesmo tempo realistas. Por exemplo, a Soporcel comprou a herdade do Gavião, no Alentejo, com três mil hectares, onde nos foi proibido fazer a reflorestação de uma parte daquela área. Nós não fizemos. Pressupõe-se, assim, que se continue a fazer cereal na região, mas não vai haver cereal naquela região. Porque quando acabar o período de transição [ajuda extraordinária que é concedida aos cereais portugueses até ao ano de 2003] as pessoas que fazem cereal vão abandoná-lo.
Venda de herdades
P. -- O que vai acontecer a essa herdade e a algumas outras que há no distrito de Castelo Branco? A Soporcel continua a ter o propósito de as vender?
R. -- Estamos a tentar vendê-las. A nossa função é fazer papel. E portanto se nós podermos comprar a madeira melhor será. Essa é a forma que nós defendemos, até pela imobilização de capital que representa comprar as propriedades. Por outro lado nós temos já 65 mil hectares de terras próprias, na qual só temos 43 mil de eucaliptos plantados. Porque obviamente há muitas zonas onde intercalamos o eucalipto com agricultura, ou com outros tipos de floresta.
P. -- Porque é que no fim da segunda metade da década de 80 não foi possível essa associação? Porque é que as empresas privilegiaram a estratégia da acção própria?
R. -- Na minha opinião viveu-se um momento de euforia no sector. A Soporcel em 1989 ganhou 18 milhões de contos...
P. -- Mas está com isso a assumir um erro estratégico tomado numa altura de euforia?
R. -- Pois. É sempre fácil nós falarmos «à posteriori». Na altura os agricultores portugueses não estavam numa fase de fazer a reconversão. Ainda não havia muita gente a querer reconverter terras. Segundo, havia disponibilidades financeiras importantes. E, portanto, as empresas decidiram aplicar essa dinheiro na parte do património imobiliário. Teria sido mais inteligente fomentar o apoio ao agricultor.
P. -- Dada a depreciação do valor fundiário das terras agrícolas isso representa perdas significativas para algumas empresas?
R. -- Nós já tínhamos assumido isso. Nas coisas que temos estado a vender tentamos pelo menos não perder dinheiro.
P. -- Há quem diga que a importância económica da fileira florestal um dia há-de ultrapassar a posição relativa dos têxteis e situar-se a nível da metalomecânica?
R. -- Sim. Porque basta ela manter-se no nível em que está actualmente em preços de mercado internacionais não favoráveis e olhar ir para o tamanho que vai ter quando se fizer a sua racionalização. Vai haver uma transferência de posição relativa, mas a maior influência no processo vai ser a queda da têxtil e não tanto a subida da fileira florestal, na minha opinião.
Questões
ambientais
P. -- Em relação aos aspectos de protecção ambiental em que nível nos situamos a nível internacional?
R. -- A Soporcel é a única empresa do sector que cumpre integralmente toda a legislação que foi fixada em 1982, que nos obrigou a investir mais de quatro milhões de contos.
P. -- Não exigem ao Estado para que os outros a cumpram para que a competição seja mais justa?
R. -- Noutro país qualquer talvez se exigisse. Nós compreendemos que alguns dos nossos concorrentes tem problemas muito complicados. É o caso da Portucel. Tem equipamento muito antiquado e onde os investimentos para cumprir essas regras iriam ser muito vultuosos e portanto entendemos que devem ser eles a tratar com o Governo e nunca tomamos nem tomaremos nenhuma posição de ataque a essas empresas. Diria que se estivessemos noutro país como os Estados Unidos talvez isso não acontecesse. Mas nós aqui em Portugal ainda temos uma sã convivência entre todos e entendemos que o Governo deverá dar mais tempo a uma empresa que tem equipamentos mais antiquados como é o caso da Portucel. Nós temos equipamento mais moderno.
P. -- Mas as recentes indicações do ministro da Indústria até parecem favoráveis à manutenção deste «status quo»?
R. -- Eu li com atenção essa entrevista...
P. -- Quando ele refere que não podemos ser fundamentalistas?
R. -- Bom, ele refere-se a uma coisa com que eu concordo, embora o Dr. Mário Soares não goste da palavra «fundamentalista». Nós neste momento estamos a cumprir integralmente os regulamentos nacionais, mas aquilo que o Ministério do Ambiente se preparava para se fazer sair como metas a atingir em 1997, são muito mais avançadas do que aquelas que estão em vigor na Comunidade Europeia. E isto é o que eu chamo «fundamentalismo». Eu acho que nós estamos num mercado aberto em concorrência com outros, não se pode exigir às empresas portuguesas mais do que os outros têm. Eu acho que o Governo deve impor às empresas portuguesas as regras que os outros concorrentes são obrigados a cumprir, mas não deve ir para além disso porque isso significa acréscimos de investimento na indústria portuguesa e perda de competitividade.
Perigos do Norte
P. -- A eventual adesão dos países nórdicos e da Áustria à União Europeia vai eventualmente introduzir alterações de fundo à definição da política florestal?
R. -- É um risco, mas também temos que negociar para que os nórdicos não queiram amanhã impôr que a floresta industrial se situe apenas nos seus países, onde existem condições adversas para outras actividades agrícolas. E que se deixe a floresta de lazer para o sul da Europa. Há esse perigo. Essa ameaça. Sei que há pessoas que estudam esses assuntos estão preocupados com isso mas penso que é uma questão de sabermos defender os nossos interesses em Bruxelas.
P. -- Defende a criação de uma política florestal comum à semelhança da política agrícola comum?
R. -- Há-de ser muito difícil porque, quer a Inglaterra, quer a França, quer a Alemanha, são capazes de a vetar.
P. -- O ministro Arlindo Cunha tem feito imensas diligências desde a reforma da PAC nesse sentido. Acha que isso é uma boa posição estratégica?
R. -- Acho que sim. Aliás conseguiu-se qualquer coisa dentro das propriedades da defesa dos fogos, mas há neste momento o terror na comunidade em relação à PAC, que quando começou tinha uns objectivos muito importantes e muito nobres mas depois, de repente, absorvia 70 por cento dos recursos financeiros. E os países onde a floresta não tem aspectos produtivos, que são os do centro da Europa, não estão muito inclinados a entrarem num processo que eventualmente pode vir a ter custos. Por isso todas as tentativas feitas desde há vários anos encontraram sempre uma grande barreira.
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