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<DOCNO>PUBLICO-19940419-113</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940419-113</DOCID>
<DATE>19940419</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>LMAI</AUTHOR>
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António José Martins Em Público*
Tem estado, com o José Mário Branco, a trabalhar no novo álbum da Amélia Muge. O que já pode adiantar sobre este disco ou sobre a colaboração de que ele resultará?
Bom, o disco sairá entre Maio e Junho. É um disco com temas que já foram muito rodados, muito tocados em concertos. São temas para os quais os arranjos já tinham sido feitos por mim. Mas pretendi fazer uma adaptação para disco, por uma questão de qualidade musical, e pensei em pedir ao Zé Mário para colaborar na direcção musical. Acho que há aqui toques que um conhecedor e um fiel ouvinte do Zé Mário reconhecerá. É um disco que vem no seguimento dos nossos concertos no Instituto Franco-Português, essencialmente acústico e que conta com a participação de mais músicos dos que então presentes. Mas não quero alongar-me muito neste disco; quando ele sair, a Amélia falará nele.
Ao longo da sua carreira, tem tocado com muita gente. Por que áreas já passou?
Eu comecei a tocar há muitos e muitos anos no Porto, onde nasci, e comecei, na minha adolescência, como toda a gente, num grupo rock chamado Psico, aí pelos anos 70. Depois, e ainda no Porto, entrei para o grupo Zanarp, um grupo de jazz, com o António Pinho Vargas, o José Nogueira e o Artur, no contrabaixo. Por alturas do 25 de Abril, estava eu na tropa. Um pouco mais tarde, fizemos um outro grupo paralelo, os Abre Alas, para desenvolver outro tipo de área musical, mais virado para o que eu (para situar, de algum modo) poderia chamar «funky» -- isto em finais dos anos 70. Entretanto, tive uma encomenda para uma banda sonora de doze pequenos filmes de animação para a televisão e, por essa razão, mudei-me para Lisboa, que era onde estavam os estúdios e os animadores. Acabei por conhecer e tocar com outros músicos, de várias áreas. Voltei ao jazz, no Hot Clube, onde estive na formação da sua escola, na qual também dei aulas de Educação Musical e de Rítmica. Aí, tive como alunos dois dos então elementos dos Trovante. Convidaram-me para tocar com eles (ao princípio, apenas como convidado) mas depois acabei por ficar a tempo inteiro. Ao mesmo tempo, fui-me dedicando à música portuguesa. Trabalhei com o Sérgio Godinho durante muitos anos, fiz arranjos e co-produzi dois discos dele. Toquei com o Janita e comecei a interessar-me pelo trabalho do Zé Mário. Ele convidou-me a trabalhar no seu álbum «Correspondências» e passei a tocar com ele ao vivo.
Decidi, mais tarde, por alturas do concerto do Campo Pequeno, sair dos Trovante. Um dia, num encontro com o Júlio Pereira a propósito da UPAV, mostrei-me interessado no que ele fazia e participei no «Bandolim» (último disco de Júlio Pereira). Finalmente, a UPAV, através do Zé Mário, pediu-me para produzir e fazer arranjos para o disco da Amélia. Já a conhecia há muitos anos, tinha umas cassetes dela guardadas, à espera de serem trabalhadas. Até que o dia surgiu e eu aqui estou. Tenho estado quase exclusivamente a tocar e a fazer arranjos para a obra dela.
O seu percurso parece ter sido o inverso do das outras pessoas. Quando toda a gente estava mais ou menos envolvida em grupos e cooperativas, tocava jazz. Agora, numa altura em que cada um pretende ter uma carreira individual, envolve-se numa cooperativa, na música portuguesa... Mudou, pessoal e musicalmente, assim tanto?
Não sei se eu, pessoalmente, mudei assim tanto para ter tido esse percurso. Quero dizer: eu sempre me envolvi nas áreas musicais que me interessavam. Eu sempre me revi na área do jazz, que é aquele espaço em que o músico pode ter mais criatividade, em que pode mostrar mais a capacidade de improvisação. Esse sentimento de liberdade já vem desde o início. E a música portuguesa nunca foi nada que estivesse fora dos meus gostos. Eu, desde pequeno, em Guimarães, participava naquelas festas, em que se tocava muita música tradicional e onde eu tinha uma gaita de beiços e cantava aquelas coisas. Há um princípio muito arreigado às formas mais tradicionais, e nortenhas, da nossa música. Agora, todo o percurso da minha vida fez-me passar e interessar por várias coisas. No Porto, houve uma altura em que andei ali pela música erudita contemporânea, cheguei mesmo a estudar Análise e Técnicas de Composição, estudei Percussão Contemporânea, etc. Tentava fazer aquilo que gostava de ouvir e foi isso que me fez ir sempre tendo incursões em várias áreas diferentes. Sempre numa atitude mais rítmica do que outra. Todos os instrumentos que fui tocando e a que me dediquei tinham sempre, nos grupos, funções rítmicas.
Não acha que a parte rítmica está pouco presente na música popular portuguesa? Ou, antes, que qualquer secção rítmica se assemelha a todas as outras secções rítmicas de outros agrupamentos, na música tradicional nacional?
Acha? Eu não creio que isso seja verdade. Quero dizer, se falarmos de música tradicional no sentido estrito da palavra, sim, é verdade, a chula, o fandango têm rítmicas muito específicas, muito semelhantes. Mas, se falarmos num sentido mais alargado em música portuguesa, se falarmos num Sérgio Godinho ou num Zeca Afonso, bom, estão ali raízes indubitavelmente portuguesas com um tratamento rítmico muito rico e importante. O rock, por exemplo, tem uma rítmica muito menos variada! Eu não acho que as possibilidades rítmicas na música portuguesa sejam assim restritas; e, de qualquer maneira, eu não me estou a especializar em música portuguesa. Eu estou a trabalhar com a Amélia Muge porque é isso que me dá gozo. Vou beber a toda a minha experiência para me inspirar para essa parte rítmica.
Nunca pensou sair da sombra e lançar um projecto seu?
Não, porque eu não sou compositor. Eu sou músico, arranjador e produtor. Não tenho essa capacidade para compor, para fazer coisas interessantes. Prefiro pegar nas boas ideias dos outros e dar-lhes o meu contributo, à minha maneira, com ou sem sintetizadores, computador ou sequenciador.
O abandono de projectos, já que esteve em tantos, deveu-se a alguma insatisfação artística, a desentendimentos pessoais?... O que é que o levou a envolver-se e, depois, a retirar-se de tantos grupos?
No caso dos Trovante, por exemplo... digamos que o processo de funcionamento do grupo e o estilo de música que estava a ser feito a partir do «Sepes» já apontava para um afastamento do projecto inicial dos Trovante, que me fizera estar lá. Nesse ponto, sem quaisquer problemas, conversei com os meus colegas e decidi sair, após assegurar a participação em todos os concertos de Verão, para não haver sobressaltos. Na fase de hibernação de Outono-Inverno, então saí, numa altura em que já tinham tempo para ter arranjado outro músico.
No caso do grupo de jazz do António Pinho Vargas, tudo se passou de forma diferente. Às tantas, eu já não aguentava o elevado nível técnico dos outros músicos, eu tocava bateria e mal, e então disse que tinha que sair, não aguentava a pedalada. O grupo era demasiado desenvolto, as minhas capacidades só me diziam: tens é que ir para casa estudar!
Nestes 20 anos, para uma pessoa que passou por tantos lados, o que é que mudou na música feita em Portugal?
Eu não sou grande observador desse tipo de coisas, mas, por exemplo, falando de mim, acho que muito naturalmente adquiri uma maior maturidade, uma atitude mais calma em relação à atitude musical... Eu era muito nervosinho. Eu tinha que ter cuidado com uma certa densidade de discurso. Mas fui apurando e melhorando isso. Quanto aos grupos portugueses em geral, para começar, acho que existe uma maior variedade de projectos. E essa variedade vai de um extremo ao outro, desde projectos que apontam para uma recriação o mais fiel possível de músicas mais antigas até músicas que partem de ambientes e formas não portuguesas para uma adaptação a palavras, instrumentos e temáticas portuguesas. Até chegar a música que nada tem a ver com Portugal. Em termos de conhecimento público, a variedade já não é assim tão grande. Os músicos portugueses, creio, também estão melhores, a nível técnico e criativo. Creio que aprenderam muito, se esforçaram bastante. Mas tudo quanto aconteceu de melhor foi sempre à custa dos próprios músicos. Porque as estruturas de apoio, essas, pouco ou nada mudaram.
Marta Duarte
* Teclista, baterista, percussionista e executante de guitarra braguesa, ex-membro dos Trovante, actual músico, arranjador e produtor de Amélia Muge.
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