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<DOCNO>PUBLICO-19940429-154</DOCNO>
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<DATE>19940429</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>JH</AUTHOR>
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Dirigente da oposição liberal branca sul-africana em entrevista ao PÚBLICO
«Choca-me que indianos e mestiços prefiram o Partido Nacional»
Do nosso enviado
Jorge Heitor, na Cidade do Cabo
O homem que esta semana chefiava a oposição a De Klerk, quando o Parlamento sul-africano que excluía os negros se reuniu pela última vez, disse ontem ao PÚBLICO estar chocado por, aparentemente, os mestiços e indianos preferirem votar no Partido Nacional. Por outro lado, não crê que vá haver muita violência nos tempos mais próximos e mostra-se tranquilo quanto ao futuro da África do Sul, onde, destaca, há muitos empresários portugueses a fazer carreira.
Zach de Beer, um afrikaner de 65 anos que toda a sua vida tem sido um liberal e que, desde 1989, dirige o Partido Democrático, recebeu o PÚBLICO no edifício do Parlamento, na Cidade do Cabo, onde desempenhava ultimamente as funções de chefe da oposição branca, indiana e mestiça ao Governo de Frederik de Klerk, depois de esse papel ter fugido ao Partido Conservador, por deserção de alguns dos seus deputados para a Frente da Liberdade, do general Viljoen.
De Beer, embora obviamente cansado por uma carreira política de mais de quatro décadas, no fim da qual vê outros colherem os louros da sua luta por uma sociedade mais justa e sem discriminação, confia no futuro, faz os maiores elogios a De Klerk e Mandela e não vê razão para que muitos portugueses ou outros brancos pensem agora em deixar a África do Sul.
PÚBLICO -- Houve muita confusão nestas eleições.
ZACH DE BEER -- O trabalho administrativo não foi muito bem feito. Não tínhamos cadernos eleitorais, porque demorariam anos a elaborar e, assim, não sabíamos ao certo quantas pessoas iriam aparecer em cada assembleia.
P. -- A participação é, aparentemente, bastante elevada.
R. -- Como não há cadernos eleitorais, não se pode dar uma percentagem certa dos participantes nestas primeiras eleições multirraciais sul-africanas, mas estou em crer que os que vão às urnas são perto de 80 por cento dos que teoricamente poderiam votar.
P. -- Tem já alguma ideia dos resultados prováveis?
R. -- Não posso ter ideias muito precisas a esse respeito, para além de toda a gente saber que o ANC deve ser o vencedor. Creio que não chegará aos dois terços, ficando em segundo lugar o Partido Nacional, com 20 a 25 por cento.
P. -- E para o Partido Democrático?
R. -- Se conseguisse alcançar entre sete e dez por cento, já ficaria razoavelmente satisfeito, mas as sondagens deram-nos menos do que isso.
P. -- Dizem que o seu partido é um pouco antiquado e que não conseguiu chegar aos negros.
R. -- Nunca pensámos em conquistar o eleitorado negro; quando muito, que conseguiríamos três ou quatro por cento desse eleitorado, o que já era bastante. Sempre soubemos que os negros iriam na sua grande maioria votar no ANC, como movimento de libertação. O que me choca muito é que, aparentemente, a maioria dos mestiços e dos indianos prefira agora o Partido Nacional, que tanto os discriminou.
A tragédia de Buthelezi
P. -- Quanto ao Inkatha?
R. -- Não vai ficar muito bem colocado. Aceitou demasiado tarde participar nas eleições. A vida de Buthelezi é uma tragédia. Trata-se de uma boa pessoa, da minha geração, e conheço-o há 30 anos. Cristão e liberal, defrontou-se no fim dos anos 50 com o dilema de trabalhar ou não com o sistema. Foi contra o «apartheid» e contra os bantustões, não aceitou a independência do Kwazulu. Mas o ANC tratou-o mal e mais tarde foi o Governo que o abandonou, de modo que se tornou muito azedo, muito ressentido. Lamento-o muito, pois o resultado do seu ressentimento pode ser um perigo para o país. Ninguém tem nada a ganhar com isso. O perigo do radicalismo zulu é muito maior que o da extrema-direita branca.
P. -- Receia que haja muita violência depois destas eleições?
R. -- Não creio que haja agora grande violência política. O que continuaremos é a assistir a uma série de «vendettas» por motivos mais pessoais do que ideológicos. Mata-se um elemento de uma família, porque alguém daquela família insultou um membro da nossa, e assim por diante. Mas espero que abrande o nível geral da violência no Kwazulu-Natal, tal como não acredito que se vá prolongar agora a violência da extrema-direita. Já se malogrou o seu objectivo de impedir as eleições ou afastar o eleitorado das urnas. Há 31 pessoas detidas por causa das bombas e não me parece que isso vá continuar.
Entrar ou não entrar
P. -- O Partido Democrático vai para o Governo de unidade nacional, se conseguir alcançar pelo menos cinco por cento dos votos?
R. --ÊDepende da liberdade que tivermos para criticar as decisões do Governo. Se enveredarem pela doutrina da responsabilidade conjunta do gabinete, não aceitamos. Quanto às assembleias regionais, a posição vai depender dos resultados, mas parece que aqui, no Cabo Ocidental, teremos a balança do poder entre o ANC e o Partido Nacional. Tudo depende do lado para que nos inclinarmos. Mas em caso algum iremos formar aliança permanente com ninguém. Uma vezes estaremos com uns e outras vezes com outros, conforme as circunstâncias. Não haverá fusão do Partido Democrático com nenhuma outra força.
P. -- O seu partido está mais próximo do ANC ou do Partido Nacional?
R. -- Depende das circunstâncias. No campo económico, estamos mais próximo dos «nacionais», por exemplo, e na política dos direitos humanos mais próximos do ANC.
P. -- Que espera do novo Governo?
R. -- Se a violência realmente abrandar, teremos um influxo de capital estrangeiro e será possível melhorar os padrões de vida. Havendo investimento, cria-se postos de trabalho. Mas, se o Governo for gastar muito dinheiro em casas e outras obras sociais, então teremos uma inflação elevada. Com um governo que saiba restringir as despesas, aumenta a prosperidade.
Economia
P. -- Crê que se manterá o actual ministro das Finanças?
R. -- Derek Keys é muito mais um técnico do que um político. Seria muito generoso da parte de Mandela mantê-lo no lugar que actualmente desempenha, pois que o ANC até nem tem ninguém realmente preparado para o lugar. Trevor Manuel não está em condições de arcar com tal responsabilidade.
P. -- E o dr. Zach de Beer, que pasta poderia ter, se o Partido Democrático entrasse no Governo? A Indústria?
R. -- Não me oferecem nada como isso. Quando muito, o Turismo, as Águas ou o Meio Ambiente...
P. -- Tem ido muito dinheiro para fora do país?
R. -- Sim, tem ido, se bem que eu não disponha de números sobre isso. Está a ser mau para a balança de pagamentos.
P. -- Crê que a situação vai ser má para as companhias de grande envergadura, designadamente para multinacionais como a Anglo-American ou a De Beers.
R. -- Julgo que se poderão aguentar muito bem. Tenho a experiência, dos tempos em que trabalhei na Zâmbia como administrador da Anglo-American, que uma coisa é a retórica utilizada e outra o que na realidade se passa. E aqui até nem se deverá avançar muito no campo das nacionalizações.
P. -- Está hoje mais optimista, ou não, do que há uns anos, quanto ao futuro da África do Sul?
R. -- Estou muito mais, pois que com o «apartheid» não havia futuro possível. Claro que a transição é extremamente difícil, mas estamos a avançar.
P. -- A extrema-direita está particularmente preocupada com a presença comunista nas listas do ANC?
R. -- Detesto o comunismo. Porém, neste momento, não creio que os comunistas controlem o ANC.
Sociedade civil forte
P. -- Não vão ter nenhum regime que se assemelhe aos que foram criados em Angola e Moçambique após a descolonização?
R. -- Nada do género. Aqui, a sociedade civil é muito mais forte. Temos infra-estruturas financeiras, companhias de seguros, um mundo empresarial em pleno funcionamento, estradas, caminhos de ferro, Ordem dos Advogados, Ordem dos Médico e uma série de outras associações profissionais. Estamos muito mais perto do Primeiro Mundo do que o resto de África. Temos mais de cinco milhões de brancos.
P. -- Em Portugal receia-se um grande afluxo de retornados.
R. -- Não há grande motivo para que uma parte significativa da comunidade branca tenha de deixar a África do Sul. Temos aqui jovens empresários portugueses a fazerem uma boa carreira. Há razões para acreditar que as coisas corram razoavelmente bem.
P. -- O que pensa do presidente De Klerk?
R. -- Fez uma coisa muito boa, provavelmente a mais importante da África do Sul: acabar com o «apartheid». Mas é uma pessoa de truques, que não tem querido desmascarar muitos militares e polícias implicados em acções sujas.
P. -- E de Mandela?
R. -- Um homem maravilhoso, com muito carisma. Muito bom político, em óptima forma para a sua idade; chega a telefonar-me quando ainda estou a dormir. Mas tem poucos conhecimentos de Economia.
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