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<DOCNO>PUBLICO-19940502-088</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940502-088</DOCID>
<DATE>19940502</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
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Pré-publicação de «Geração X», de Douglas Coupland
Não sou um consumidor modelo
As pessoas ficam de pé a trás com Dag quando o conhecem, do mesmo modo visceral que leva as pessoas do campo a desconfiarem da água do mar quando a provam pela primeira vez numa praia oceânica.
-- Carrega o sobrolho --, diz Claire para o descrever, ao telefone com uma das suas muitas irmãs.
Dag, antes, trabalhava em publicidade (marketing, melhor dizendo) e quando chegou à Califórnia vinha de Toronto, Canadá, uma cidade que, quando uma vez a visitei, me deu a sensação de eficiência e ordem de umas Páginas Amarelas animadas para a vida a três dimensões, temperadas com árvores e com água fria nas veias.
-- Não creio que eu fosse pessoa de quem se goste. Na verdade, era um desses carolas que se vêem a guiar carros de desporto, todas as manhãs, em direcção aos quarteirões da finança, de capota baixada e boné de baseball na cabeça, convencido e todo contente por se sentir tão vivaço e «completo». Andava todo emocionado e orgulhoso e dava-me um considerável arrepio poder pensar que a maior parte dos fabricantes dos acessórios do estilo de vida no mundo ocidental me consideravam o seu mais desejável consumidor modelo. Só que, à mínima provocação, estava pronto para pedir desculpa pela minha vida de trabalho -- por trabalhar das oito às cinco em frente a um VDT solvente de esperma a desempenhar tarefas abstractas que indirectamente escravizam o Terceiro Mundo. Mas depois, ora!, Chegavam as cinco, dava em doido! Fazia a risca no cabelo e ia beber cerveja feita no Quénia. Usava laço e ouvia rock alternativo, passeava-me pelo lado artístico da cidade.
Não sei como, a maneira como Dag veio para Palm Springs passou-me pela cabeça neste momento, de forma que vou prosseguir com uma reconstituição feita de palavras do próprio Dag, respigada nestes últimos anos de longas noites a atender no bar. Começo no ponto em que ele me contou estar a trabalhar e a sofrer de um caso de «Síndroma dos Prédios Doentes», dizendo:
-- As janelas do prédio de escritórios onde eu trabalhava não abriram nessa manhã e eu estava sentado no meu cubículo, afectuosamente designado aido de engorda. Sentia-me minuto a minuto mais doente e com mais dores de cabeça quando a mistura aérea de toxinas e vírus de escritório andava a circular -- sempre às voltas -- nos ventiladores.
«Claro que esses ventos venenosos sopravam particularmente na `minha' secção, apoiados pela moedeira da máquina de ruído branco e pela cintilação dos ecrãs de VDT. Eu não estava a fazer grande coisa, a olhar para o meu clone IBM rodeado por um mar de recados Post-it, cartazes de grupos de rock arrancados aos tapumes de um estaleiro de construção mais uma pequena fotografia sépia de um baleeiro de madeira encalhado no gelo da Antárctida, que encontrara uma vez numa National Geographic velha. Tinha metido a fotografia numa pequena moldura dourada comprada em Chinatown. Era capaz de estar constantemente a olhar para essa imagem sem nunca conseguir imaginar bem o desespero frio e solitário que devem sentir as pessoas verdadeiramente presas -- e de, enquanto isso, ir pensando nas minhas próprias dificuldades de vida.
«Em qualquer dos casos, não iria produzir muito e, para ser franco, decidira naquela manhã que era muito difícil ver-me no mesmo emprego dois anos a fio. Só a ideia dava vontade de rir. `Deprimente'. Por isso andava a comportar-me de modo um pouco mais negligente do que o normal. Sabia bem. Era júbilo pré- despedimento. Já o tinha sentido várias vezes.
«Karen e Jamie, as `bruxas do VDT' que trabalhavam nos aidos de engorda a seguir ao meu (chamávamos à nossa zona curral das crias ou então ghetto das crias) também não andavam a sentir-se bem ou a produzir muito. Se bem me lembro, Karen estava mais assustada com aquilo do Prédio Doente do que qualquer um de nós. Pediu à irmã, que trabalhava como técnica de raios-X em Montreal, que lhe arranjasse um avental de chumbo, e usava-o para proteger os ovários enquanto trabalhava no teclado. Ia despedir-se em breve para aceitar trabalho de gancheira: -- Tem-se mais liberdade, assim... É mais fácil namorar com mensageiros em bicicleta.
-- Mas lembro-me de estar a trabalhar numa campanha de hamburguers por franchise cujo grande objectivo, segundo o meu amargo patrão ex-hippie, Martin, era «despertar nos monstrinhos tal vontade de comer um hamburguer que lhes apetece vomitar de entusiasmo.» Quem dizia isto era um «homem» de quarenta anos. Pesavam no meu espírito as dúvidas que durante meses tivera quanto ao meu trabalho.
«Como por sorte, foi nessa manhã que o inspector de sanidade veio, em resposta a uma chamada anteriormente feita por mim, nessa mesma semana, pondo em questão a qualidade do ambiente de trabalho.
«O Martin ficou horrorizado por um empregado chamar os inspectores, quero dizer `mesmo' desvairado. Em Toronto, pode-se ser obrigado a realizar alterações na arquitectura, e as alterações são ferozmente caras -- condutas de ar livre e coisas no género --, e que se lixe a saúde dos trabalhadores de escritório, dançavam cifrões nos olhos de Martin, dezenas de milhares de dólares deles. Chamou-me ao seu gabinete e começou a berrar comigo, com o rabinho-de-cavalo grisalho a saltar para cima e para baixo.
-- Não compreendo os jovens. Não há local de trabalho que lhes sirva. E lastimam-se e queixam-se por o trabalho não ser criativo e por não chegarem a lado nenhum, mas quando finalmente vos damos uma promoção vão-se embora apanhar uvas em Queensland ou outro disparate do género.
«Ora o Martin, tal como a maior parte dos ex-hippies azedados, é um yuppie, e eu não faço ideia como pode um gajo relacionar-se com essa gente. E antes que alguém se arme em esperto e comece a dizer que os yuppies não existem, enfrentemos os factos: `existem'. Cretinóides como o Martin, que se atiram ao speed como lobas quando não conseguem arranjar uma mesa de janela com guardanapos de pano no lado não fumadores do restaurante. Andróides que nunca encaixam uma piada e têm qualquer coisa de assustado e de mesquinho no âmago da sua existência, como um Chihuahua subalimentado a mostrar os dentinhos à espera que lhe dêem um pontapé no focinho ou como um copo de leite entornado por cima dos filamentos violeta de um assador de moscas: um estranho abuso da natureza. Os yuppies nunca jogam, calculam. Não têm aura: já foram a uma festa de yuppies? É como estar numa sala vazia: as pessoas são hologramas vazios que se passeiam e se espreitam a si próprias nos espelhos, humedecendo subrepticiamente as amígdalas com spray Binaca para o caso de terem que beijar outro fantasma igual a eles. Não há `lá' nada.
«Portanto, -- Ó Martin-- perguntei eu quando fui ao gabinete dele, um número à James Bond, cheio de peluches e com vista para o coração da cidade, onde ele se senta com uma camisola roxa gerada em computador e feita na Coreia, uma camisola com montes de `tex'tura. O Martin gosta de `tex'tura. -- Põe-te no meu lugar. Tu acreditas que nós gostamos de trabalhar naquela lixeira tóxica de lá de dentro?
«Dominavam-me necessidades incontroláveis.
«... e depois vermos-te todo o dia com os teus colegas yuppies a falar de lipossucção intestinal enquanto segregas geleia real artificialmente açucarada aqui em Xanadu?
«De repente entrei no assunto `très ` profundamente. Pois, como de qualquer modo, me vou despedir, bem posso tirar do peito um peso ou dois.
«-- Desculpa... ?-- diz o Martin, já sem vento nas velas.
«-- Ou, já agora, pensas mesmo que nos con'gratu'lamos por saber que tens uma casa nova de um milhão de dólares quando mal podemos comer sandwiches Kraft Dinner nas nossas caixinhas de sapatos apertadas e estamos a caminho dos `trinta'? Casa essa que ganhaste numa lotaria genética, devo acrescentar, por obra e graça de teres nascido no momento certo da história? Se tivesses hoje a minha idade, duravas uns dez minutos, Martin. E tenho que aguentar cabeças de alfinete como tu a enferrujar em cima de mim pelo resto da minha vida, sempre a agarrarem primeiro a melhor fatia do bolo para depois porem uma barreira de arame farpado à volta do resto. Metes-me cá um nojo.
«Infelizmente, o telefone tocou nesse momento, por isso fiquei sem o que deveria ter sido uma débil repreensão... qualquer outro Martin mais acima estava em plena campanha para lhe lamberem o cu e não podia ser despejado da linha. Fui-me até ao bar do pessoal, onde um vendedor da empresa que fornecia as copiadoras estava a despejar um copo de Esferovite cheio de café escaldante para a terra de uma vaso de ficus que ainda não tinha conseguido recuperar da alimentação à base de cocktails e beatas da festa de Natal. Lá fora mijava chuva, a água borrifava as vidraças, mas lá dentro o ar estava seco como no Sahara, por causa de não ser renovado. O pessoal estava todo na putice, a trocar turnos e a dizer piadas da SIDA, a catalogar as vítimas da moda do escritório, a espirrar, a discutir os respectivos horóscopos, a planear os time-shares em Santo Domingo, a cascar nos ricos-e-famosos. Sentia-me cínico e a sala condizia comigo. Na máquina de café a seguir à pia, agarrei numa chávena, enquanto a Margaret, que trabalhava no outro extremo do escritório, esperava que o seu chá de ervas abrisse e me informava das ramificações da minha largada de vapor, uns minutos antes.
«-- `Exactamente' o que é que disseste ao Martin, Dag? -- perguntou- me ela. -- Ele está a `trepar pelas paredes' lá no gabinete, amaldiçoa o teu nome a torto e a direito. Foi o inspector de saúde que declarou isto um Bhopal, ou coisa assim?
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