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<DOCNO>PUBLICO-19940505-061</DOCNO>
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<DATE>19940505</DATE>
<CATEGORY>Local</CATEGORY>
<AUTHOR>AL</AUTHOR>
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Sacrifício pode ser em vão, se continuarem a existir lixeiras na costa
Os prós e contras da morte das gaivotas
Ricardo Garcia
As vinte mil gaivotas que a partir de amanhã começam a morrer nas Berlengas podem ser sacrificadas em vão. Enquanto não se resolver o problema das lixeiras no litoral, elas voltarão a multiplicar-se. Os pescadores de Peniche acham que era melhor voltar a apanhar os ovos, enquanto a Liga dos Direitos do Animal defende que a culpa é dos homens. Mas a medida recolhe mais apoios do que críticas.
Quando começarem, amanhã, a ser recolhidos os primeiros cadáveres das gaivotas-argênteas abatidas na Reserva Natural da Berlenga, a ilha estará longe ainda de uma solução satisfatória para o seu desequilíbrio ecológico. Até à próxima semana, prevê-se que sejam mortas, por envenenamento, cerca de 20 mil gaivotas, ou seja, praticamente metade da sua população actual. Em um ano, no entanto, o número de gaivotas voltará a subir e uma campanha semelhante de abate será necessária para novamente o reduzir a metade. Este procedimento será efectuado ao longo de três anos consecutivos -- de acordo com o director da Reserva da Berlenga, o biólogo Luís Vicente -- ao fim dos quais o número de aves estará reduzido a níveis aceitáveis.
Espera-se, com isso, recuperar em parte a biodiversidade da ilha, ameaçada pela competição agressiva do que já é conhecido como a «monocultura da gaivota». Na prática, a gaivota-argêntea está a interferir com espécies como o airo (ou arau-comum), cuja população está a diminuir na mesma proporção em que aumenta o número de gaivotas (ver gráfico). Calcula-se que existam apenas 25 airos em todo o arquipélago da Berlenga, que é o limite sul da ocorrência desta espécie no Hemisfério Norte. A vegetação endémica da Reserva também está a ser gradualmente substituída por espécies nitrófilas -- como a urtiga e a papoila branca -- que se dão melhor sobre o solo excessivamente nitrificado pelos dejectos das gaivotas. A perturbação causada pelas gaivotas-argênteas não poupou nem as sua irmãs, as gaivotas tridáctilas, que virtualmente despareceram da Berlenga.
Mas nada garante que, depois de três abates consecutivos, as gaivotas não voltem a crescer exponencialmente. Pelo contrário, a manutenção do excesso de alimento na costa -- especialmente nas lixeiras -- continua a ser um maná inesgotável para a multiplicação da espécie. «Fala-se disso há anos e até agora não se fez absolutamente nada», lamenta a presidente da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal, Maria do Céu Sampaio.
Esta associação, por sua própria natureza, é a única a contestar publicamente o abate das gaivotas. «Sempre é mais barato do que fazer saneamento básico», diz Maria do Céu Sampaio. Na verdade, a Liga dos Direitos do Animal entende que é uma medida necessária, dada a situação de quase ruptura ecológica da Berlenga. Mas esclarece que a culpa não é das aves. «As outras espécies não estão a sofrer as consequências de haver muitas gaivotas, mas sim as consequências do desleixo dos homens», diz a sua presidente. «A senhora ministra do Ambiente tem de ter em consideração não só a preservação da Berlenga, mas também a vida dos animais».
Medida corajosa mas tardia
A matança das gaivotas não seria necessária se a sua população não tivesse atingido o estatuto de praga -- ou seja, sujeita a um crescimento fora de controlo e interferindo negativamente com outras espécies. Acresce a isto o facto das gaivotas serem potencialmente transmissoras de uma série de doenças ao homem. Neste quadro, matar gaivotas é quase o mesmo que eliminar ratos ou baratas, com a evidente diferença das primeiras serem animais simpáticos, quase míticos, geralmente associados ao mar através de uma simbologia positiva.
«É um acto normal de gestão de populações naturais, numa situação de crise como esta», resume um dirigente da Associação Portuguesa de Biólogos, Humberto Rosa. «É uma medida corajosa por parte da Reserva Natural da Berlenga, mas peca por ser tardia», ressalva o biólogo, salientando, ainda, que está por demonstrar que, em termos genéricos, o excesso de gaivotas seja mau para a biodiversidade.
A recém-criada Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) também apoia o controlo de gaivotas através do abate de adultos, não só pela sua necessidade, como pelo facto deste procedimento já ser empregue, com sucesso, em vários países.
O veneno que matará as gaivotas da Berlenga -- o DRC 1339 -- é utilizado nos Estados Unidos desde 1967, também no controlo de pragas de estorninhos. A sua actuação não causa sofrimento ao animal, de acordo com os responsáveis da operação Larus 94, como foi designada esta campanha de controlo de gaivotas na Berlenga. «Eu não acredito que alguém goste de matar gaivotas, mas posso dizer que [este tipo de controlo] funciona», afirma o biólogo Tom Goettel, do Departamento de Pescas e Vida Selvagem dos Estados Unidos, que está a trabalhar na campanha na Berlenga. «Vale a pena», acrescenta.
Ovos perdidos
Entre os pescadores de Peniche, porém, há uma natural sensação de perda com a matança das gaivotas. Alguns lembram que a apanha de ovos para utilização culinária -- uma prática outrora habitual, mas proibida há alguns anos -- tinha um efeito controlador sobre a população de gaivotas. Mas o director da Reserva da Berlenga, Luís Vicente, mantém que a proibição é necessária para diminuir a perturbação na ilha e evitar o pisoteio de espécies importantes de plantas. Além disso, uma vez usurpada dos seus ovos, as gaivotas voltam a fazer novas posturas e o efeito controlador acaba por ser limitado. Luís Vicente considera mais eficiente a esterilização dos ovos, através da injecção de água, que já vem sendo efectuado na ilha desde há alguns anos.
Durante todo o dia de ontem, as cerca de 30 pessoas envolvidas na operação Larus 94 dedicaram-se à colocação de iscos -- pedaços de pão com margarina misturada com o DRC 1339 -- no maior número possível de ninhos de gaivotas na Berlenga. O veneno tem uma vida útil de apenas seis horas, depois degrada-se. Uma vez ingerido o isco, o animal perde parte da sua agilidade e já não se afasta tanto do ninho. Em 24 a 48 horas, a gaivota morre. Hoje, praticamente ninguém circulará pela ilha, para não perturbar as gaivotas, evitando que elas se afastem e venham a cair, mortas, no mar.
A ideia é recolhê-las amanhã nos próprios ninhos, onde, na próxima semana, serão colocados novos iscos, para se apanhar o outro membro do casal, que tenderá a ocupar o lugar deixado pelo ave morta. Os cadáveres das gaivotas serão colocados em sacos plásticos biodegradáveis e enviados para o aterro sanitário de Óbidos, onde há uma célula já aberta para o efeito. Ou seja, o lixo, que antes era alimento das gaivotas, vai ser agora seu companheiro na morte.
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