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<DOCNO>PUBLICO-19940507-032</DOCNO>
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<DATE>19940507</DATE>
<CATEGORY>Economia</CATEGORY>
<AUTHOR>JSBR</AUTHOR>
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Peter Sutherland, em entrevista ao PÚBLICO
«Ninguém perdeu com o GATT»
João Seabra
O término das negociações do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), foram benéficas para todos os países. A sua não conclusão pressuporia a vitória da «lei da selva» no comércio mundial, na opinião do director-geral do GATT, Peter Sutherland, que crê que doravante os conflitos comerciais serão mais facilmente superados.
Com 48 anos, completados a 25 de Abril, Peter Sutherland é apontando como um dos mais sérios candidatos à sucessão de Jacques Delors, na presidência da Comissão Europeia. O ex-comissário europeu, onde deteve a pasta da concorrência, não confirma, nem desmente essa hipótese, limitando-se a dizer que não anunciou a sua candidatura. Ao invés, é peremptório a afirmar que não pretende continuar ligado ao comércio multilateral, apesar de ter conseguido levar até ao fim uma ronda negocial que durou sete anos, e que no último dia de vigência do GATT, 31 de Dezembro, regressará ao seu país.
Sutherland confia no futuro do comércio, sob a égide da futura Organização Mundial do Comércio, mas não acredita num «comércio totalmente livre», conforme afirmou numa intervenção, ontem, em Oeiras, no Instituto Nacional de Administração. Crê ainda que os «dossiers» que ficaram por solucionar o serão no futuro e considera que só por ingenuidade se poderá pensar que com a conclusão do "Uruguay Round" nunca mais surgirão conflitos comerciais.
PÚBLICO -- A Comissão Europeia acusou, quinta-feira passada, os Estados Unidos de praticarem uma política comercial proteccionista. Outros países fazem as mesmas acusações. O acordo comercial multilateral não afastou as política proteccionistas?
Peter Sutherland -- Não posso fazer comentários sobre alegações particulares, mas não há, nem nunca houve razão para para acreditar que por termos concluído um acordo global no "Uruguay Round" essas alegações parariam. É evidente que elas continuarão a surgir. É precisamente por isso que necessitamos da Organização Mundial do Comércio (OMC), porque criará uma rede dentro da qual se poderão resolver conflitos.
P. -- Mas assiste-se a um crescendo da tensão comercial entre os principais blocos...
R. -- Imediatamente após o 15 de Dezembro [de 1993, data em que se concluíram as negociações do "Uruguay Round" do GATT], houve, de facto, um considerável aumento da tensão entre os Estados Unidos e o Japão, e muita gente achou estranho que logo após a obtenção do acordo continuassem a surgir acusações. Isso não é nada estranho. O comércio é a actividade de maior peso no mundo e, naturalmente, criará tensões e dificuldades. O que nós temos que fazer é integrar isso numa rede que funcione.
P. -- Como funcionará a OMC. Será ela própria a fiscalizar por sua própria iniciativa o comércio entre os países, ou trabalhará com base em queixas que os países façam?
R. -- A OMC será uma organização intergovernamental. Orientará, gerirá e procurará resolver as disputas entre as partes, que nos serão participadas pelos países. Por isso, as relações com os governos serão as relações com as suas queixas. A diferença face ao GATT é que este é um secretariado e a OMC será uma organização autónoma, o que quer dizer que haverá algum poder para tomar iniciativas. Mas será às partes contratantes que competirá decidir o que querem fazer.
Os mecanismos de resolução de conflitos serão muito diferentes. Até agora, se houvesse uma disputa, ela seria analisada num painel e se este decidisse contra um país a decisão só poderia ser aplicada se todos, incluindo o país visado -- que podia vetar -- concordassem. Com a OMC, a decisão do painel será como um tribunal de apelação, ela será final, a não ser que haja unanimidade ou consenso contra ela. Assim, o processo de tomada de decisão tornar-se-á muito mais eficiente e será impossível o seu bloqueio.
Áreas problemáticas
P. -- Quais são os sectores que pensa que possam vir a gerar mais controvérsia no comércio?
R. -- Virtualmente todos os sectores têm potencialidades para serem controversos no comércio. A agricultura tornou-se numa questão muito complicada, os têxteis, a propriedade intelectual, não há fim para a potenciais dificuldades...
P. -- A OMC fiscalizará de muito perto estas questões?
R. -- Sim..
P. -- Para tentar resolver rapidamente uma disputa em emergência?
R. -- Sim. Será preciso uma análise específica em cada área.
P. -- Falou nos têxteis, mas as telecomunicações, a aeronáutica, o audiovisual são áreas para as quais não existe um acordo global...
R. -- Penso que em todas essas áreas já houve progressos e haverá mais. Quanto mais não seja porque automaticamente todos os países reconhecem que simples disputas bilaterais são prejudiciais para todos, por isso há um sentimento de que é preciso encontrar soluções, o que, por vezes demora algum tempo.
P. -- Na questão da aeronáutica, há o problema do comércio dirigido, quando os Estados Unidos vendem seis mil milhões de dólares de aviões à Arábia Saudita, e os europeus protestam, os norte-americanos falam em subsídios ao consórcio europeu Airbus. Acha que este conflito poder ser resolvido brevemente?
R. -- Acho que a questão dos aviões é «sui generis», é uma situação única, em que o debate se trava apenas entre um grande bloco e um grande país. Num outro sentido, o debate em torno do audiovisual é também maioritariamente entre a Europa e os Estados Unidos. A questão da aviação civil é diferente porque se trava entre a Airbus Industries e a Boeing e é evidente que há alegações e contra alegações, mas houve progressos, e penso que os progressos continuarão.
Mundo mais pequeno
P. -- E o audiovisual?
R. -- O audiovisual tem duas componentes nos estádios finais do "Round". De um lado, estão os direitos de autor e as taxas sobre a venda de produtos audiovisuais e do outro a questão da excepção cultural. A posição europeia foi tentar negociar excepções, a Directiva Televisão sem Fronteiras [que impõe quotas], no que respeita às transmissões de filmes, etc.
P. -- Com o desenvolvimento da TV por cabo, o espectador pode escolher o que quer ver. Como se coloca aqui a questão das quotas?
R. -- Essa dúvida é correcta e a questão poderá tornar-se irrelevante. O desenvolvimento das tecnologias, dos satélites, cabo, tornaram automaticamente o mundo muito mais pequeno. Isso é verdade e não penso que alguém tenha ilusões quanto a isso. Posso compreender os pontos de vista, as suas evidências e os argumentos, sobre as distinções que há entre a cultura e o comércio vulgar.
P. -- E as telecomunicações?
R. -- As telecomunicações sempre foram um sector complicado porque num sentido são um serviço público e os argumentos sempre foram de que as telecomunicações não devem ser consideradas, como outras áreas de controlo público porque, por exemplo, os serviços praticados pelas telecomunicações, servem áreas que não são economicamente viáveis. Por outro lado, a União Europeia, em certos aspectos, liberalizou as telecomunicações e os Estados Unidos argumentaram que queriam ter acesso a esse mercado. Este é um dos aspectos que não foi concluído no "Uruguay Round". As negociações prosseguem.
P. -- Uma área que interessa muito a Portugal são os têxteis...
R. -- Quanto aos têxteis, a questão geral faz parte das conclusões do "Uruguay Round". Em Marraquexe houve negociações entre a UE, a India e o Paquistão, e a aplicação do acordo final far-se-á gradualmente durante 10 anos e isso acautela os interesses portugueses. A liberalização será feita de forma muito gradual.
GATT sem perdedores
P. -- Há vencedores e perdedores no acordo alcançado. Quem são, na sua opinião?
R. -- Não concordo consigo. Não acredito que haja perdedores, o que se passa é que alguns países ganham mais do que outros...
P. -- Mas os estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico e do Banco Mundial dizem que há perdedores.
R. -- Não, eles não dizem que alguém perdeu. Dizem o que a generalidade dos países ganharam e que uns ganharam mais do que outros. Esses estudos concordam que a conclusão do "Uruguay Round" era altamente desejável e positiva para os países em desenvolvimento. Muitos desses estudos foram feitos numa base económica muito simplista. Concluía-se que o país com maior produção ganhava automaticamente, mas a realidade é diferente. Os vencedores do "Uruguay Round" são aqueles países cujas perspectivas de comércio são elevadas. Estas perspectivas são comuns a todos, o comércio é uma estrada com duas vias, por isso não acredito em perdedores.
Por outro lado, é muito difícil definir quem ganhou ou perdeu apenas na base da extrapolação daquilo que um determinado país faz hoje, porque não se assume que haverá mudanças, que haverá desenvolvimento das tecnologias. O que eu quero dizer é que uma análise de vencedores e perdedores é extremamente difícil mas é claro que se não houvesse o sistema multilateral teríamos a lei da selva, não haveria equidade nem amigos e cada um tinha que sobreviver por si. Neste contexto, os grandes blocos económicos imporiam as suas condições.
P. -- Acha que o Japão abrirá os seus mercados?
R. -- No contexto do "Uruguay Round", o Japão foi uma força muito positiva, a redução média das suas tarifas alfandegárias é de 57 por cento, o que é significativamente alto, quando comparadas com as dos Estados Unidos ou da Europa. Por isso, temos que dar crédito a ao Japão. Eu apreciei muitas queixas feitas em relação ao Japão e sobre o modo de funcionamento da sua economia. Mas muitas das queixas são acerca de assuntos que estão fora da responsabilidade do GATT. A amplitude dessas queixas, que não são só dos Estados Unidos, mas também da Europa e de outros estados, são causa de alguma preocupação e de alta tensão, o que é indesejável.
Reformas japonesas
P. -- Tsutomu Hata [actual primeiro-ministro do Japão] esteve em Marraquexe. Acredita que ele prossiga as reformas internas tendentes a abrir o mercado japonês?
R. -- Acredito que o senhor Hata, que eu conheço bem, está muito ansioso para encontrar uma via para resolver os conflitos. Também acredito que nos Estados Unidos, Mickey Kantor [representante comercial da Casa Branca] tem o mesmo empenho.
P. -- Crê que Tsutomu Hata desenvolverá as reformas que o ex-primeiro-ministro, Morihiro Hosokawa, estava a tentar levar por diante?
R. -- Não posso fazer comentários sobre as políticas internas dos países, mas penso que Tsutomu Hata já deixou claro que não relaxará as hipóteses de solucionar os persistentes conflitos comerciais com os Estados Unidos e o resto do mundo. Os japoneses estão altamente ansiosos por encontrarem soluções e por desenvolver o sistema multilateral.
P. -- Arthur Dunkel, seu antecessor como director-geral do GATT, disse uma vez que queria que o "Uruguay Round" fosse uma «refeição completa». Acha que foi isso mesmo?
R. -- Obviamente que há questões que ficaram por resolver, mesmo assim foi o maior acordo alguma vez feito. Convém também dizer que foram surgindo questões novas, como o comércio e o ambiente, o comércio e os direitos dos trabalhadores. Estas questões deverão ser desenvolvidas e serão envolvidos num «pacote» para o futuro. Uma das questões mais complicadas é a dos direitos dos trabalhadores, que cria preocupações consideráveis nos países em desenvolvimento, porque vêem nisso uma tentativa de ataque às vantagens comparativas que têm. Os americanos e os europeus dizem que não é esse o caso...
Negociações com a China
P. -- Para a resolução desta questão os países desenvolvidos poderão financiar os menos desenvolvidos em troca de melhores legislações laborais, de forma a evitar perdas?
R. -- Não vejo qualquer sinal para uma resolução fácil desta questão. O mundo desenvolvido não consegue chegar a acordo quanto a esse problema. Até agora há um envolvimento diferenciado deles, isso deve-se, parece-me, ao facto de eles nem terem a certeza de qual é a questão. Não temos nenhum documento da União Europeia ou dos Estados Unidos a explicar o que é que pretendem. O que sei é que eles deram sinais para que no futuro a questão seja colocada e que sejam reconhecidos internacionalmente os padrões laborais. Neste debate sou neutral e assim continuarei.
P. -- É conhecido como «apolítico»...
R. -- Sim, eu tenho que ser neutro, nesse aspecto sou «apolítico». Posso reconhecer que a avançar-se para o reconhecimento dos padrões laborais, terá que se ser sensível, porque os países em desenvolvimento vêem isso como um veículo que pode ser usado para fomentar o proteccionismo.
P. -- Em que ponto estão as negociações para o regresso da China ao GATT?
R. -- Na próxima semana estarei na China. As negociações já vêm desde 1987 e o Governo chinês já tornou claro que quer ser membro desde o início da OMC, e como a criação desta foi antecipada para um de Janeiro próximo, há muito pouco tempo para concluir as negociações e ainda há muito trabalho para fazer. Farei o que puder para que a China reentre, até porque seria indesejável que um grande parceiro comercial como a China ficasse de fora. Da parte chinesa exige-se uma grande responsabilidade para mostrar uma transparência total dos processos internos em curso e é necessário assegurar que o sistema de mercado será reforçado, como pode ser, para que o país se integre no sistema multilateral.
P. -- Qual será a estrutura da OMC. Será idêntica à do GATT? E onde ficará a sua sede?
R. -- A nova organização será uma continuação do GATT, a sua extensão, mas haverá novos assuntos e precisaremos de mais gente e de mais vantagens. Também há os novos candidatos, 24 ao todo, incluindo o Vietname, a China e a Rússia. Quanto à sede [Bona e Genebra são as candidatas até agora, sendo que a segunda acolhe já a sede do GATT] teremos que analisar as ofertas que nos fizeram. Relativamente à Suíça, há alguns meses que dialogamos com as suas autoridades que estão em situação de nos fazer uma oferta quanto à sede, que terá que ser uma boa oferta.
P. -- Fica como director-geral do GATT até ao fim deste ano...
R. -- Assim é. Eu disse que não queria ser um candidato à liderança da nova organização...
P. -- Mas ainda não decidiu?
R. -- Decidi, decidi... Sairei.
P. -- E regressa à Irlanda?
R. -- Sim.
P. - Há quem diga que é um bom candidato para suceder a Jacques Delors, na presidência da Comissão Europeia. Encara essa hipótese?
R. -- Bem [risos]... Ainda não anunciei a minha candidatura...
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