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<DOCNO>PUBLICO-19940509-099</DOCNO>
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<DATE>19940509</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
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Polémica
Quem tem medo do Canto IX?
O meu prazer de percorrer, ao sábado, o suplemento «Leituras» foi perturbado por um surpreendente comentário de Torcato Sepúlveda que me diz respeito e a que passo a responder.
É verdade que penso que os alunos do secundário deviam ser obrigados a dividir as orações n' «Os Lusíadas». Também deviam conhecer razoavelmente bem algumas dezenas de obras literárias portuguesas do passado. Deviam tirar significados desde a instrução primária. E deviam ainda ser obrigados a estudar Latim.
Também penso que os médicos devem ter estudado anatomia, que os matemáticos devem ter aprendido a tabuada, que os engenheiros não podem ter prescindido de resolver equações e que os músicos não devem ter podido dispensar o solfejo. E assim por diante. A aquisição de um certo tipo de competência implica uma longa e penosa aprendizagem, com grandes doses de esforço, sacrifício e disciplina. Nunca nenhuma obra ou monumento da cultura se fez sem eles. Nunca nenhum país soube defender os seus valores e a sua própria dignidade, pondo-os de lado. Nunca se viu a facilidade irresponsável erigida em valor nacional ou promovida a traço característico da identidade de um país.
Portugal não pode invocar a necessidade de salvar o seu património e, ao mesmo tempo, destruir, por prazenteira omissão de exigência escolar, a sua própria língua. Portugal não pode basear-se nela como a arma essencial da sua geo-estratégia e tratá-la como se fosse uma fisga de ir aos pardais. Portugal não pode proclamar a afectação de avultadíssimos recursos próprios e comunitários à política de educação, como prioridade das prioridades, e deixar degradar-se a principal ferramenta de que dispõe para um resultado minimamente satisfatório. Portugal não pode agarrar-se a uma esperança de fundo na sua juventude e, ao mesmo tempo, transformá-la alegremente numa geração de ineptos, que nem falar Português sabem. Por muito que alunos, professores, jornalistas, partidos políticos e «tutti quanti» sejam coniventes nas baldas, na lei do menor esforço, nas manifestações de rua, nas vociferações contra o Governo e nas palavras de ordem delirantes.
Noutros países, há sistemas idiotas e opressivos que continuam a obrigar tenras crianças indefesas a suarem as estopinhas com Shakespeare e Dickens, Dante e Petrarca, Ronsard e Montaigne, Goethe e Hölderlin, Cervantes e Góngora. Esses países e as suas línguas, amanhã, continuarão a liderar a Europa das grandes competitividades. Sobretudo se nós respondermos à questão «Portugal, que futuro?» propondo como alternativa a singela, conquanto edificante, leitura do Tio Patinhas. Bem sei que no melhor pano cai nódoa. Ainda há poucos meses, o «Público» inventava o termo «literacia» (???), com honras de primeira página, para designar exactamente o seu contrário, se, porventura, «iliteracia» fosse Português razoável e corrente.
É enquanto excepcional monumento literário, português e europeu, que «Os Lusíadas» me interessam e não como bíblia de um qualquer patriotismo saudosista. E porque faço a Torcato Sepúlveda a justiça de não acreditar que ele seja dos que puxam logo de revólver quando ouvem falar d' «Os Lusíadas», sou levado a deplorar que ele veja na obra maior de Camões apenas este último aspecto e não tenha aprendido a nossa língua investindo um mínimo de trabalho sobre ela. Ter-se-ia apercebido da sua magnificência e de como, por isso mesmo, é importante um contacto mais fundo com o texto épico.
É talvez por isso que ele não terá compreendido, nem o sentido do que eu disse a tal respeito, nem as posições que tomei sobre outros assuntos, noutras ocasiões, que são chamados à colação em termos inexactos e muito discutíveis, mas que não vou aqui discutir. É talvez por isso que ele avança uma discreta forma de censura condicionante, que já foi, em tempos, exactamente a do nacional-zdanovismo, que só sabia ver n' «Os Lusíadas» o canto da expansão «imperialista» e não era sensível ao seu esplendoroso maneirismo: tratava-se de «encaminhar», «mais prudentemente», os alunos do secundário para lírica camoniana. A verdade é que uma coisa não deveria excluir a outra. A lírica também serve. Aliás, a divisão das orações não passa de uma força de expressão que toma a parte pelo todo e não constitui, está bem dever, o único exercício a que os estudantes deviam ser obrigados em tal matéria.
Enfim, e como não costumo misturar alhos com bugalhos, limito-me a expressar a minha surpresa pela utilização de tais processos por um jornalista que respeito e que costuma tomar posições que, em geral, considero judiciosas e equilibradas. Afinal quem tem medo do Canto IX?
Vasco Graça Moura
N. R.: Nunca puxo do revólver, artefacto que, aliás, não possuo. Nunca fui nacional-zdanovista. Não retiro uma linha ao que escrevi no «Livro de Reclamações», porque continuo convencido da justeza do que escrevi. Mas não tenho dúvidas em declarar a minha admiração pela frontalidade e boa educação de Vasco Graça Moura. Virtudes cada vez mais raras... T.S.
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