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<DOCNO>PUBLICO-19940510-068</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940510-068</DOCID>
<DATE>19940510</DATE>
<CATEGORY>Nacional</CATEGORY>
<AUTHOR>ASLV</AUTHOR>
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Congresso «Portugal: que futuro?» acaba hoje, na FIL...
O congresso soarista acaba hoje e, embora das conclusões não deva constar nenhuma directiva estratégica para a esquerda, a mobilização da «tribo» ao longo destes três dias não deixa de ser um dado a ter em conta, quer para o PS, quer para o PCP. Gomes Mota, o amigo do Presidente, afirma mesmo que está lançado um desafio aos socialistas: «inflectir o namoro ao centro», quer dizer, virar à esquerda. Os guterristas tornaram-se ontem mais visíveis na FIL, preocupados em já não minimizar a importância da iniciativa. Irritante para os soaristas foi a desvalorização com que Cavaco reagiu aos ataques de Soares. Num momento em que o Presidente está num pico de popularidade, a dramatização não seria mal vista por Belém. Seria a garantia de que os efeitos do congresso não terminariam hoje, como alguns temem.
Ao fim da manhã foi o balde de água fria. O «silêncio» de Cavaco Silva sobre o ataque de Soares defraudou as expectativas dos organizadores, que chegaram a admitir uma dramatização que parecia desejada. «Está visto que o Presidente vai ter que fazer mais uma», desabafava um soarista estrutural, desanimado com as notícias que desmentiam os rumores de um possível conselho de ministros extraordinário para responder ao Presidente.
Acalmados os ânimos, ninguém parecia de facto acreditar que Soares possa entrar numa imparável escalada anti-Governo, substituindo-se aos partidos da oposição, e numa altura em que o comportamento do PS continua a ser a grande incógnita.
Gomes Mota, o coordenador do congresso, afastou desde logo a hipótese desse cenário, ao afirmar ao PÚBLICO que «só se empurra o comandante do barco se o imediato já for capaz de o comandar». Fica o recado implícito para Guterres, o líder do PS, neste caso comparado ao imediato do navio, que, ao primar pela ausência, se distanciou da iniciativa, tal como Cavaco o fez, ao afirmar, em declarações à RTP, que nem sequer tinha lido ou ouvido o discurso de Soares por se encontrar de passeio pelo Alentejo com a família.
«Cavaco não quer dramatizar porque sabe que neste momento não lhe é propício enfrentar Mário Soares», espicaça Gomes Mota, logo enfatizando o actual momento soarista, «com o Presidente num novo pico de popularidade, depois duma Presidência Aberta e das comemorações do 25 de Abril, em que foi o protagonista único». Para o comandante, «Cavaco tem medo político», e o desafio não deixa de traduzir bem uma certa irritação que pairou na FIL, pela forma como o líder do PSD desvalorizou aquele que alguns consideraram «o segundo melhor discurso de Soares».
Como reagirá o Presidente, era a questão que pairava, estimulando os mais diversos cenários, alguns tão radicais que quase recuperavam a tese aparentemente arrumada da dissolução. Mas a convicção dominante entre os amigos do Presidente é que, se por um lado Soares «não irá parar até ao final do mandato, tendendo a reencontrar-se com a sua família política», também não se irá desgastar numa guerra desenfreada que tenha como alvo o derrube do Governo, correndo o risco de ser responsabilizado por uma situação de ruptura sem alternativa à vista.
O comportamento de Cavaco -- que em vez de reagir prefere ignorar -- não ajuda, já que há sempre o risco de explorar a imagem dum presidente que coloca o primeiro-ministro no papel de vítima. Mas a grande condicionante do que Soares poderá fazer ou de até onde poderá ir é, em última linha, a capacidade do Partido Socialista protagonizar uma oposição forte e prestigiada, o que, na opinião dos soaristas, é um dos principais desafios lançados neste congresso.
Soaristas puxam orelhas a Guterres
«Todos os partidos vão ter que reagir e o PS é um deles», assegura Gomes Mota, que não esconde a desilusão pela ausência do líder socialista. «Se algum pecado Guterres cometeu ultimamente, foi não ter percebido a importância deste congresso. Quando um congresso destes é anunciado, não se pode ir para Tóquio ou dizer que se responde nos estados gerais», acrescenta o comandante, esperançado em que as relações entre o líder socialista e o Presidente «possam mudar». Porque Guterres «ainda vem muito a tempo de perceber e assumir as conclusões» do «Portugal: que futuro».
Deste modo, para Gomes Mota, os socialistas «estão perante o desafio de perceber que as coisas não podem ser levadas com um namoro tão ao centro». Ou, como resumem alguns dos mais próximos conselheiros do Presidente, «o PS tem que deixar de se comportar como a ala liberal do regime», aprendendo a lição de Soares. Uma posição abertamente partilhada por alguns socialistas, nomeadamente por Lopes Cardoso, que na sua intervenção numa das sessões de ontem apontava claramente como um erro estratégico da esquerda a tentação de «conquistar um centro que ideologicamente não existe».
Derrubar não, condicionar sim
Subjacente está uma nova postura socialista face à esquerda no seu todo. E não terá sido ingénua a declaração de Gomes Mota ao «Expresso», nas vésperas do congresso, quando reafirmou a actualidade duma aproximação PS-PCP. Uma ideia cara a Soares que este «meeting» da FIL ajudou a avivar, com os comunistas a saberem gerir com mestria uma presença discreta mas marcante.
E os homens do Presidente vão avisando que Soares «não quer derrubar Guterres» (os calendários, recheados de eleições, também não ajudam), mas não escondem que o Presidente quer «condicionar a actuação do PS». De tal forma isto é evidente que chegam a dizer que «há independências que se pagam caro, e a direcção do PS levou aqui um grande puxão de orelhas».
O recado foi percebido por alguns dirigentes socialistas, que afirmaram ao PÚBLICO, de forma indisfarçadamente crispada, que o «PS não é uma caixa de ressonância do Presidente» , sublinhando que, pelo contrário, o partido «tem uma estratégia própria que, no entanto, não prejudica a convergência de opiniões» com Soares.
Essa ideia foi reforçada por Guterres em Tóquio, o qual, em declarações à Lusa, afirmava a sua concordância com o diagnóstico do Presidente, recordando mesmo tê-lo feito em termos idênticos na sua intervenção na Assembleia da República na sessão comemorativa do 25 de Abril. Mas, ao mesmo tempo, recusava reconhecer ser o destinatário de algumas críticas de Soares, declarando competir apenas ao Presidente esclarecer se as palavras sobre a crise dos partidos englobavam ou não o PS.
Do que Guterres não se livra é das críticas que surgem no interior do seu partido à desvalorização do congresso, constatando o facto de que o PS «não soube aproveitar a oportunidade». Por isso, também alguns ansiavam que o PSD viesse a reagir às palavras de Soares no Parlamento, pois aí, «como o Presidente não tem um grupo parlamentar, caberia ao PS responder, apanhando assim o comboio».
PS corre ao congresso
Outros eram mais frontais quando interpelados sobre o que pensavam da atitude do seu partido. «O PS existe?», era a resposta. E, ao contrário dos que no Largo do Rato consideram que os socialistas podem no futuro aproveitar as críticas do Presidente e de muitos congressistas para terem força no seu combate ao Governo, previam antes que «as pessoas depois do congresso vão perceber que o PS não faz oposição».
Essa previsão é rejeitada liminarmente por Jorge Coelho, membro do secretariado e um dos mais próximos do líder socialista. Diz categoricamente que a prova é o facto do PS «estar à frente nas sondagens para as próximas eleições europeias». Mas não deixa de reconhecer, numa clara inflexão de posições relativamente às assumidas pela direcção do seu partido, que o PS «tem a obrigação de dar voz e corpo na luta política ao que se passou no congresso».
Uma ideia que alguns dirigentes socialistas se apressavam ontem em fazer passar, chegando ao ponto de considerar que as palavras de Soares, ao ter agitado alguns temas, vêm ao encontro das preocupações do PS. Todavia, alertam para a necessidade do partido se manter distante de um eventual conflito institucional que as repercussões do congresso, caso existam, possam vir a provocar, ao precipitarem uma reacção que o PSD ainda não quis dar. E, nesse cenário, um dirigente socialista justificava a prudência do seu partido, afirmando «estar à espera do próximo recuo do dr. Soares».
Quanto às consequências para o futuro da esquerda que o congresso poderá ditar, as opiniões dividem-se. Partindo do princípio globalmente aceite de que o que se passou na FIL foi algo de novo, enquanto reencontro da «tribo de esquerda», que só por isso traduz uma mobilização invulgar nos últimos anos, há quem aposte muito ou pouco no que se seguirá. Para uns, «isto vai ter implicações, basta ver a sucessão de gente que ali apareceu a falar em nome de uma convergência de esquerda»; para outros, tudo pode acabar já hoje, numa nostalgia embalada pelo concerto de Maria João Pires.
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