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<DOCNO>PUBLICO-19940601-086</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940601-086</DOCID>
<DATE>19940601</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>MAG</AUTHOR>
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Perdão, somos todos culpados
Para quem é produzido um programa como Perdoa-me? «Para as classes C e D», responder-se-á de imediato; «para os escalões etários mais elevados, mais conservadores, de formação católica arreigada, que habitam no interior», pormenorizar-se-á; «para aqueles a quem é dirigida a publicidade de produtos de grande consumo», aqueles a que ninguém pode fugir -- detergentes, lixívias, massas alimentares... Perdoa-me, diz-se, é o espectáculo fácil, o programa que sensibiliza «o `povão' que enche os hipermercados aos fins-de-semana e se passeia de fato de treino verde e roxo pelas Amoreiras».
Ideias feitas. Nada mais do que respostas assentes nos preconceitos de séculos e nos estereótipos que o próprio consumo impõe. Nada mais do que o comportamento habitual nas situações inesperadas, tão inesperadas como um programa do tipo de Perdoa-me: ir procurar apoio ao que já é conhecido, ao lugar-comum que evita o esforço de pensar. Afinal, quem, senão «os outros», pode aderir a Perdoa-me? Um programa onde se violam os mais elementares direitos à privacidade (a câmara entra em casa de qualquer um com um simples toque de campainha); um programa onde, numa primeira fase, se ignora a frontalidade (é a SIC que pede perdão em nome de outro), se cede à facilidade do espectáculo (a câmara capta e expõe, sem qualquer pudor, a reacção da vítima, aquele a quem se comete a afronta de se lhe pedir perdão); um programa onde se explora a vontade de, por uns minutos, se ser célebre, aparecer na televisão.
Perdoa-me pode ser tudo isto, pode ser para os «outros». Mas «os outros» somos todos nós. É por isso que Perdoa-me é um fenómeno. Um fenómeno pela quantidade de público que reúne à sua volta -- foi o terceiro programa mais visto na semana passada, levando a SIC à liderança do «share». E um fenómeno pelo tipo de público que reúne. Porque os resultados que apresenta desmontam por completo as ideias feitas que se podem construir em redor destes programas. Por exemplo: pensar que são os casais de Cenas de Um Casamento que, mais tarde ou mais cedo, ali se apresentarão para se reconciliarem.
Não. Perdoa-me é visto essencialmente pelas classes A e B (alta e média alta), onde atinge uma penetração de mais de 45 por cento (perto dos 46), tanto como nas classes C1 e C2; é visto por pessoas entre os 25 e os 34 anos (49,2 por cento), residentes em Lisboa, Porto e noutros grandes centros urbanos do litoral (quase 60 por cento), mais no Sul do que no Norte do país. E são os homens que o preferem, em relação às mulheres (44,6 por cento). Na verdade, pode mesmo pensar-se num quadro superior de uma qualquer grande empresa, que ganha por mês várias vezes o ordenado médio nacional, como o «espectador tipo» do programa. Era esse o seu alvo? Não. Aliás, a própria SIC parece surpreendida com os resultados.
Ao longo de todas as semanas, Perdoa-me tem batido em «share» a programação da mesma hora do Canal 1 (Fera Ferida e Lotação Esgotada). É o que se pode ver pelos dados da AGB Portugal. Na noite de estreia, Perdoa-me obteve um «share» de 46,3 por cento, contra os 44 do Canal 1; uma semana depois, 44,2 contra os 37,3 da RTP; a 18 de Maio, cedeu a liderança à final da taça dos Campeões Europeus. No entanto, há uma semana, quando o filme de David Mamet, "Brigada de Homicídios", corria no primeiro, Perdoa-me atingia os 56,8 por cento de «share», contra os 24 pontos percentuais do canal mais visto da televisão do Estado.
É evidente que os números não dizem tudo. E nada garante que Perdoa-me não seja um programa visto uma e outra vez, até ao limite, única e simplesmente porque não se consegue acreditar que ele exista. Mas ainda ninguém se queixou. E, semana a semana, Perdoa-me tem consolidado a sua audiência. Interessante. Porque a televisão que se tem também depende de quem a vê.
Maria Augusta Gonçalves
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