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<DOCNO>PUBLICO-19940610-064</DOCNO>
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<DATE>19940610</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
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Áden ainda resiste aos ataques do Norte
Mais um cessar-fogo no Iémen
Margarida Santos Lopes
O Norte do Iémen voltou a declarar um cessar-fogo na guerra civil que dura há mais de um mês. O Sul, que proclamou a independência, desconfia de mais um truque do Presidente Saleh para conquistar Áden. A cidade que fascinou os viajantes continua a resistir.
O Presidente do Iémen do Norte, Ali Abdullah Saleh, anunciou ontem um novo cessar-fogo na guerra civil, mas os seus rivais na autoproclamada república do Sul não acreditam nele e pediram ao emissário da ONU que visite Áden, para testemunhar a destruição causada pelos ataques de Sanaa.
Um primeiro-cessar-fogo, declarado por Saleh no passado dia 6, só durou seis horas, e os beligerantes logo se acusaram mutuamente de o ter violado. A guerra começou no dia 4 de Maio.
Ontem, num encontro com o enviado das Nações Unidas, o argelino Lakhdar Brahimi, que tenta convencer o Norte a parar com os combates e a iniciar negociações com o Sul, Saleh voltou a prometer tréguas, que entrariam em vigor às 18h00 locais de ontem (17h00 em Lisboa). Quanto ao diálogo com os sulistas, exige que, previamente, eles revoguem a proclamação da independência e que a unidade do país seja assegurada, condições que os responsáveis de Áden recusam.
Saleh sabe que a secessão e o regresso às antigas fronteiras deixaria o Norte, mais populoso e menos vasto do que o Sul, numa situação de isolamento político e crise económica. Com os recursos petrolíferos e a profundidade estratégica do Sul, um Iémen unificado poderia recuperar e enfrentar os seus vizinhos mais poderosos.
Um Sul independente, com 2,4 milhões de habitantes, teria metade do petróleo do país, o lucrativo porto de Áden e provavelmente acesso a fundos dos Estados árabes do Golfo, que agora simpatizam com a sua causa. Um Norte independente, com 10 milhões de habitantes, ficaria encravado entre dois vizinhos hostis, o Sul e a Arábia Saudita. Se Saleh não conseguir os seus objectivos, salientaram diplomatas em Sanaa, «o Norte poderá tornar-se uma ditadura militar-religiosa, como a que existe no Sudão».
As pressões de Saleh estão a tornar insustentável a situação em Áden, de tal modo que Abdul-Rahman Ali al-Jifri, vice-Presidente da república secessionista, solicitou a presença na capital do Sul do representante da ONU. «Pedimos-lhe que venha e veja a guerra. As vítimas têm sido dez vezes mais civis do que soldados», disse, calculando entre 120 e 250 o número de mortos e feridos desde que as forças nortistas começaram a bombardear, no domingo, os subúrbios a norte da cidade.
Al-Jifri não acredita que Saleh respeite as tréguas e disse que ele aproveitou o primeiro cessar-fogo para infiltrar as linhas de defesa do Sul. «Ele continua a dizer às suas tropas: `Têm 14 horas para conquistar Áden; têm 12 horas para conquistar Áden.' Todos os dias, dá novos prazos.»
Jóia da coroa
Antes de Saleh anunciar o seu segundo cessar-fogo, Áden continuou a ser bombardeada pela artilharia e aviação do Norte. Os responsáveis da cidade tentam desesperadamente garantir os abastecimentos de água e electricidade aos 500 mil habitantes, mas os cortes são cada vez mais frequentes. Ontem, um dos alvos dos nortistas foi o aeroporto, principal base da Força Aérea do Sul, que tentam neutralizar.
Áden é uma cidade que tem fascinado os viajantes, como Claude Feyen («Yemen», Petite Planète, Éditions Seuil, 1979): «Durante mais de um século, e sobretudo depois da abertura do Canal do Suez, Áden conheceu a prosperidade das colónias inglesas. Os grandes navios desembarcavam em Steamer Point, no centro de um enorme parque, o Crescente. Bordejado por ricos balcões e armazéns geridos por indianos, na sua extremidade erguia-se o Crescent Hotel, lugar das mais elegantes reuniões. [...] Depois da partida dos ingleses e da revolução de 1967, depois do encerramento do Canal do Suez, o Parque do Crescente ficou deserto, as lojas fecharam, o hotel foi nacionalizado.»
Muitos anos depois, de visita à cidade que os ingleses chamavam «Eye of the Yemen» (Olho do Iémen), por ser uma espécie de janela para o mundo, de um país agreste e montanhoso, o enviado do diário francês «Libération», Jean-Pierre Perrin, ficou também impressionado: «Steamer Point foi um bairro orgulhoso, com as suas `boutiques' chiques que eram visitadas pelos rudes oficiais britânicos e suas distintas damas, enquanto [...], em frente do mar, de um azul cobalto, o ponteiro do quadrante Big Ben, réplica colonial da célebre torre londrina, indicava a hora. Assim que os britânicos partiram, a independência conquistada -- em 1967 --, o lugar deteriorou-se e a imundície, a ruína, abriram caminho.»
Desde que começou a guerra, observou Perrin, «as ruas de Steamer Point estão ainda mais desoladas. Muitas lojas fecharam. E nalgumas delas, uma cruz vingativa, pintada a negro sobre as portas fechadas, indica às milícias e, desde logo, aos larápios, aquelas cujos proprietários, vindos do Norte após a reunificação, regressaram a Sanaa e aquelas cujos comerciantes fugiram, com medo de ser recrutados para a frente» de batalha.
«A história de Áden terminou há muito tempo. Desde 13 de Janeiro de 1986, às 10h20 da manhã. Como continua a mostrar o ponteiro do Big Ben, em Steamer Point. Foi precisamente nessa hora que os massacres começaram. Dez dias de guerra civil -- mais uma. Um balanço desconhecido, mas sem dúvida superior a dez mil mortos. Por causa de uma revolução palaciana no seio da direcção comunista.»
Dia de azar
O dia 13 de Janeiro que Perrin recorda ficou efectivamente na história de Áden. Nessa manhã, o ex-Presidente Ali Nasser Mohamed tentou dar um significado inteiramente novo à expressão «remodelação governamental», quando marcou uma reunião dos 15 membros do «politburo», às 10h00, no seu palácio verde pastel.
À medida que os ministros ocupavam os seus lugares à volta da mesa, esperando pela chegada de Ali Nasser, um dos guarda-costas presidenciais começou a servir chá de um termo, enquanto outro foi para uma extremidade da mesa e abriu a mala Samsonite do Presidente. No entanto, em vez de retirar os documentos, como habitualmente fazia, puxou de uma pistola metralhadora Skorpion e começou por alvejar o vice-Presidente, Ali Antar. Momentos depois, outros guardas entraram na sala para eliminar os restantes ministros, com espingardas AK-47. Mas, como este não era um «politburo» vulgar, os colegas do Presidente Nasser e os seus guarda-costas serviram-se também das suas pistolas e ripostaram.
Alguns dias depois, John Kifner, do «New York Times», visitou a sala do «politburo» e descreveu-a como um «monumento horrível à política tribal», com o sangue ainda visível nas carpetes e buracos de balas nas paredes e cadeiras.
A esta «remodelação» sobreviveu apenas um ministro: Ali Salem al-Baidh, que se escondeu debaixo da mesa e rastejou até à porta de saída, aproveitando a confusão dos tiros. Ficou para contar o que viu e para ser Presidente do Sul do Iémen, depois vice-Presidente do Iémen reunificado e agora de novo Presidente da autoproclamada República Democrática do Iémen.
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