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<DOCNO>PUBLICO-19940620-007</DOCNO>
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<DATE>19940620</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>NC</AUTHOR>
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Magia à solta com os Uakti no Porto
O verdadeiro nirvana
Nuno Corvacho
Três mágicos do Brasil hipnotizaram com o seu sortilégio os portuenses que acorreram ao Auditório Carlos Alberto, no Porto, na noite de sábado. Os endiabrados Uakti apresentaram instrumentos musicais nunca vistos, jogaram à cabra-cega com os géneros musicais e transformaram a sala numa floresta cheia de aves e feras lendárias. A imaginação esteve no poder por uma noite.
Um dos efeitos mais perversos da chamada música «new-age» é a redução do som a um mero «bibelot» auditivo, condenado a ilustrar elevadores ou salas de espera visando anestesiar as mentes entre dois assuntos sérios. Outras músicas, pelo contrário, entronizam a imaginação e fazem-na correr numa vertigem louca de quem tenta testar os seus limites. Inscreve-se sem dúvida nesta última categoria a música dos brasileiros Uakti, que anteontem contagiaram o Auditório Carlos Alberto, no Porto, com a sua sonoridade inebriante e sugestiva.
Ao contrário do que o ambiente sonoro poderia fazer crer, o palco não fora tomado de assalto por xamãs pré-colombianos ou por insólitos encantadores de serpentes. Eram apenas três excelentes músicos, tímidos por sinal, que espalhavam com os seus instrumentos inacreditáveis uma atmosfera irreal, quente e húmida. Artur Andres, Paulo Sérgio Santos e Décio de Souza Ramos, apesar de se terem desdobrado por vários instrumentos, revelaram uma impressionante coesão e poder expressivo. Há 15 anos que tocam juntos, desde que se conheceram na Orquestra Sinfónica de Minas Gerais. Agora que gravam para a nova-iorquina Point Music, são apadrinhados pelo compositor americano Philip Glass (director da editora), que em tempos os considerou «a música clássica do século XXI». De facto, se o próximo século instalar o primado da busca intuitiva do som primordial em detrimento de algumas estéticas puramente cerebralistas e gramaticais que caracterizaram o século actual, não custa a crer que assim seja.
Voar, sobretudo
Apesar de os Uakti sugerirem uma certa ancestralidade, alguns dos seus instrumentos, construídos por Marco António Guimarães (director musical do grupo), parecem vir do futuro ou de alguma Utopia onde a música nasça sem dor dos ruídos da Natureza. Cilindros de plástico donde emergem percussões temperadas; um gigantesco tubo que evoca vozes de aves feridas numa qualquer floresta virgem; chilreares inauditos sobre uma base rítmica de uma profundidade tentacular; xilofones dotados de um caleidoscópio sonoro quase orquestral; um arco de violoncelo roçando sobre as cordas de um cilindro giratório (dos mais belos e profundos sons da noite, que fariam corar de vergonha qualquer mago dos sintetizadores). Objectos mutantes e belos na sua estranheza. O perfil absolutamente invulgar de alguns deles chegou a arrancar gargalhadas na plateia; parecia impossível que dali pudesse sair música, e ainda para mais com semelhante efeito hipnótico.
Grande parte do espectáculo foi preenchida com a interpretação integral do último álbum dos Uakti, intitulado «I Ching» e baseado no «Livro Chinês das Mutações». Também aqui os «leit-motiv» do minimalismo marcaram presença. Os Uakti procederam à leitura rítmica dos hexagramas chineses de um modo encantador; espirais sonoras em sucessão aritmética temperadas com flautas transversais de timbres expandidos em várias direcções criaram uma ideia de viagem que os psicadelismos mais arrojados não desdenhariam subscrever. Os Uakti revelaram-se exemplares escultores da intensidade do som; igualmente exímios nas explosões telúricas de vários tambores preparados e nos murmúrios ou brisas que o endemoninhado Artur Andres produzia nas suas inúmeras flautas instantaneamente convertidas em varinhas mágicas. As percussões foram também um manancial de surpresas; os Uakti provaram que neste capítulo muita coisa está por inventar e que as velhas e ortodoxas baterias são uma moldura já gasta que está mesmo a pedir que a quebrem. Tocar, sim, mas voar sobretudo -- é este o lema dos Uakti, para quem a música é visivelmente um gesto de liberdade. O verdadeiro nirvana está aqui.
Foto: Alexandre Carvalho
Legenda: Os músicos brasileiros encheram o palco de estranhos instrumentos mutantes.
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