<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19940626-083</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940626-083</DOCID>
<DATE>19940626</DATE>
<CATEGORY>Sociedade</CATEGORY>
<AUTHOR>BB</AUTHOR>
<TEXT>
Interpol preocupada com a situação na Europa Central
A arte está a saque na República Checa
Depois de terem sobrevivido às perseguições dos comunistas, muitos padres checos são hoje atormentados por centenas de roubos que esvaziam as igrejas do seu património. Na Boémia ocidental, não há praticamente um templo que não tenha sido pilhado. Situada no coração da Europa, a República Checa é muito rica em arte gótica, renascentista e barroca. A abertura das fronteiras e a segurança inadequada nos castelos, nos museus e nos 6500 mosteiros, igrejas e capelas do país têm-se conjugado para originar uma praga de furtos de obras de arte.
Burton Bollag, em Praga
13 de Maio de 1994
O padre Jan Strumfa, sacerdote católico de 72 anos, cabeleira branca e sorriso expressivo, não tem ninguém que o auxilie. Por isso, é ele que colhe as peónias vermelhas com que ornamenta a sua pequena igreja rural. É aí que, seis vezes por semana, celebra missa acompanhado por três mulheres idosas, os únicos fiéis que restam nesta aldeia de Strenice, 50 quilómetros a norte de Praga. Mas não se queixa. «Para um padre, é sempre uma alegria celebrar a missa», afirma com simplicidade.
Após ter sobrevivido a anos de perseguição por parte dos comunistas, e não sofrendo já de miséria nem de solidão, o padre Strumfa é hoje atormentado por um novo problema: os roubos. Desde a queda do regime comunista, há menos de cinco anos, S. Bartolomeu, a sua igreja, que data do século XIV, já foi assaltada cinco vezes.
A belíssima colecção de estátuas barrocas, cálices e candelabros que, durante dois séculos, adornaram o seu interior de tons claros, tem sido levada peça a peça. Recentemente, foi aí instalado um sistema de alarme. «Mas as coisas mais valiosas já desapareceram todas», diz o padre Strumfa. «Além do mais, o alarme só nos tem causado problemas. Dispara sozinho vezes sem conta...»
Devido à grande escassez de sacerdotes na República Checa, o padre Strumfa é igualmente responsável por outras sete igrejas rurais. Todas elas foram já saqueadas por ladrões, que arrombaram quer portas quer janelas para nelas entrarem pela calada da noite -- a igreja da vizinha aldeia de Krnsko já foi oito vezes assaltada.
Situadas no coração da Europa, as terras checas são extremamente ricas em obras de arte góticas, renascentistas e barrocas. Contudo, nos últimos quatro anos, os checos têm assistido impotentes à dizimação da sua valiosa herança artística. Fronteiras recentemente abertas e medidas de segurança inadequadas nas centenas de castelos e museus do país e, ainda, nas 6500 igrejas, mosteiros e capelas têm-se conjugado para originar uma epidemia, que cresce a olhos vistos, de furtos de obras de arte.
Embora quaisquer comparações com outros países da Europa de Leste se revelem imprecisas, a Interpol afirma que a República Checa é um dos mais afectados -- se não o mais afectado -- por este problema. Aquilo que se verifica, para além de qualquer dúvida, é uma explosão dos roubos de obras de arte nesta república. Em 1989, o último ano do regime comunista, haviam sido comunicadas 79 ocorrências. No ano passado, esse número elevava-se a 1700.
«Isto é pior do que a Guerra dos Trinta Anos, quando fomos pilhados pelos suecos», declara Frantisek Lobkowicz, arcebispo de Praga, puxando de uma pequena calculadora do bolso das calças para discriminar os prejuízos. Noventa por cento dos roubos de obras de arte ocorrem em igrejas. Aquelas que se encontram nas regiões fronteiriças são particularmente vulneráveis. «Na Boémia ocidental, não há praticamente uma igreja que não tenha sido pilhada», acrescenta o bispo.
Bélgica é a Meca
Segundo as autoridades, na maioria dos casos, as peças furtadas desaparecem para fora do país em poucas horas. A maior parte vai parar às mãos de negociantes pouco escrupulosos nas vizinhas Alemanha e Áustria, antes de serem vendidas a ricos coleccionadores de arte um pouco por todo o mundo. «Diz-se que a Bélgica é a Meca das obras de arte checas roubadas», comenta o bispo Lobkowicz.
Acontece, por vezes, que os assaltantes amadores revelam uma espantosa insensibilidade quanto aos tesouros que pilham. A Igreja de S. Killian, na aldeia de Davle, situada nas margens do rio Vitava (Moldau), 20 quilómetros a sul de Praga, foi assaltada cinco vezes no ano passado. Foram levadas estatuetas barrocas de madeira, cálices revestidos a ouro e prata e candelabros de estanho.
Mas o que mais afligiu Petr Bubenicek, jovem padre de barbas responsável por esta igreja e ainda por duas outras nas imediações, foi o destino dado a um anjo de madeira com 300 anos. «Partiram-lhe as pernas quando o arrancaram violentamente do altar e, por isso, deixaram-no caído no chão», conta com imenso desgosto.
Quatro Picassos
Roubos espectaculares, como o furto, em 1991, de quatro quadros de Picasso estimados em 35 milhões de dólares da Galeria Nacional de Praga, poderão tornar-se raros à medida que vai sendo reforçada a segurança em torno das colecções mais valiosas. Neste caso, a polícia recuperou as telas três meses mais tarde, e o chefe do bando, identificado apenas como dr. Frantisek, foi condenado a oito anos de prisão.
Porém, no ano seguinte, 14 valiosas telas, num valor de aproximadamente dez milhões de dólares, foram furtadas do Castelo de Námest, na Morávia. Estes quadros, entre os quais se contavam obras de Canaletto, Veronese e Tintoretto, nunca foram recuperados.
O Ministério da Cultura checo tem vindo a despender verbas elevadas com a instalação de dispositivos de segurança em museus, castelos e catedrais, destinados a proteger as colecções mais importantes. As autoridades têm envidado esforços no sentido de fotografar e gravar em vídeo as obras de arte para auxiliar a polícia a recuperá-las, caso venham a ser roubadas.
E a Igreja enviou a todos os párocos uma folha com dez directivas sobre como proteger os seus tesouros, alertando-os para a necessidade de suspeitarem de pessoas desconhecidas que entrem nos seus templos e recomendando-lhes que ponham a salvo os objectos de maior valor.
Todavia, depois de quatro décadas durante as quais nenhuma obra de arte saiu virtualmente do país, a arte sacra barroca checa, em particular, continua a atrair compradores ávidos e a atingir elevados preços em todo o mundo. Não obstante todas as medidas de segurança adoptadas até à data, a onda de assaltos mantém-se.
60 mil peças
O Ministério da Cultura calcula que cerca de 60 mil peças artísticas foram furtadas desde a Revolução de Veludo, de Novembro de 1989, num valor de pelo menos cinquenta milhões de dólares. Mas como atribuir um valor a uma estátua gótica da Virgem com 600 anos que não tem preço? «Estamos a perder a nossa herança cultural», afirma Pavel Jirásek, um antigo perito de informática que chefia as diligências do ministério em aumentar a segurança. «Esta é a face mais sombria da democracia.»
Operários que, numa manhã de Julho de 1990, entravam na Igreja de Nossa Senhora das Dores, situada na Rua Na Slupi, perto do centro de Praga, depararam com o padre Jaroslaw Kadlec, de 66 anos, caído no chão da igreja. Sacerdote muito popular, que fora anteriormente secretário particular do falecido arcebispo de Praga, o cardeal Frantisek Tomásek, Kadlec havia sido vítima de tentativa de estrangulamento nessa noite, vindo a sucumbir uma semana mais tarde no hospital sem recobrar os sentidos.
Junto ao padre Kadlec, a polícia descobriu vários sacos de plástico contendo tanto preciosos cálices revestidos a outro, como objectos destituídos de qualquer valor -- artigos de higiene masculina, canetas esferográficas e peças de roupa velhas -- furtados da igreja. A polícia chegou à conclusão de que o sacerdote tinha surpreendido um ou vários ladrões amadores, que por isso o agrediram. Os assassinos nunca foram descobertos.
Kadlec foi um dos doze sacerdotes da República Checa pós-comunista a serem atacados nas suas igrejas por assaltantes. Morreram, além dele, outros dois.
Nas paredes do estreito gabinete do oficial da polícia checa Zaroslav Závadsky, situado num quinto andar, encontram-se reproduções de quadros roubados de valor incalculável. Na sua sala, acham-se ainda os quatro volumes da obra «Tesouros Artísticos da Boémia». O major Závadsky é o responsável máximo da polícia da República Checa pelo combate aos criminosos que estão a delapidar o património artístico do país.
Nessa manhã tinha já sobre a secretária oito novas comunicações de furtos de obras de arte, declara sem revelar qualquer emoção. A média é de quatro por dia. «Fizemos uma análise dos quatro últimos anos e chegámos à conclusão de que, no início, se tratava de indivíduos que cometiam estes crimes sozinhos», afirma. «Actualmente, trata-se mais de grupos organizados. São frequentemente pessoas instruídas, por vezes mesmo historiadores de arte, que sabem o que levar. Calculamos que 30 por cento dos roubos são executados por encomenda; seja como for, 90 por cento dos objectos furtados saem imediatamente do país.»
As fronteiras da UE
A maior parte deles é levada para as vizinhas Alemanha e Áustria. Uma vez chegada à Alemanha, a obra de arte furtada pode viajar, sem ser sujeita a qualquer controlo aduaneiro, pelos 12 Estados da União Europeia. Mas as autoridades afirmam que coleccionadores até de países tão distantes como a América do Sul e o Japão pagam somas astronómicas por tesouros como manuscritos medievais e anjos barrocos em talha, mostrando-se caracteristicamente pouco preocupados sobre o modo como esses objectos, pertença de algum mosteiro ou arquivo checo, vão parar às suas mãos.
Desde o ano passado que o major Závadsky e os seus oito subordinados estão a organizar um arquivo central num sistema informático Macintosh, duas portas a seguir ao seu gabinete. Já introduziram os dados e, sempre que possível, também a fotografia digitalizada em computador, de seis mil dos mais valiosos objectos furtados. Este sistema permite-lhes comunicar instantaneamente com sectores das polícias estrangeiras -- enviando alertas sobre novos roubos ou tentando identificar objectos furtados que são recuperados pelos seus colegas ocidentais.
Acontece, por vezes, que os culpados são os próprios funcionários estrangeiros. No Outono passado, um tribunal alemão condenou a penas de prisão sete pessoas, entre as quais um motorista e vários funcionários da embaixada alemã em Praga. Foram dados como culpados de, entre 1989 e 1991, terem contrabandeado para fora da República Checa cerca de 20 milhões de marcos alemães em obras de arte roubadas. Foi a estreita colaboração entre as polícias checa e alemã que levou à sua detenção.
Peças nos antiquários
Mas a culpa não é só dos estrangeiros. As autoridades afirmam que se podem encontrar objectos roubados em metade dos cerca de 250 antiquários de Praga, quase todos eles fundados de 1989 para cá. «Não creio que lhes seja dito abertamente: `estes objectos são roubados'», reconhece Závadsky. «Mas os negociantes de arte possuem uma larga experiência e deveriam, por isso, ficar minimamente desconfiados.»
Uma nova lei exige uma licença para exportação de obras de arte com mais de 50 anos ou com um valor superior a dois mil dólares. Ainda é, no entanto, demasiado cedo para dizer se esta lei terá algum efeito nos assaltos. A maioria dos objectos roubados é levada para fora do país sem ter em conta tais formalidades.
Uma das razões que podem explicar a amplitude deste problema na República Checa é, como os dirigentes da Igreja são os primeiros a reconhecer e a deplorar, o facto de os checos serem um dos povos menos religiosos da Europa. A maior parte das 6500 igrejas e capelas raramente é utilizada. «Se comparamos com a Polónia ou a Áustria, a República Checa não possui muitas comunidades religiosas» que zelem pelos edifícios das igrejas, afirma o ministro da Cultura, M. Jurasek.
Além disso, quarenta anos de um regime comunista de linha dura, que apenas permitia a formação de alguns padres, veio diminuir um já decadente interesse pelo sacerdócio. Actualmente, existem apenas 1100 padres no país, um quinto dos que havia nas vésperas da invasão comunista de Fevereiro de 1940.
"Era de esperar"
O padre Vaclav Maly, um dos mais jovens heróis da Revolução de Veludo, partilhou uma cela com Vaclav Havel em 1979, durante parte do seu encarceramento de sete meses devido a actividades dissidentes. Após a queda do comunismo, ficou responsável pela Igreja de Santo António, uma ampla igreja neogótica construída perto do centro de Praga no início do século.
Cinco das estátuas da igreja foram roubadas ao longo de vários assaltos. Num autêntico golpe de sorte, a polícia recuperou duas delas depois de um paroquiano as ter reconhecido num antiquário de Praga, onde se encontravam à venda. No ano passado, o padre Maly conseguiu a verba necessária para instalar um sofisticado sistema de alarme no interior da igreja. Mas, roubos ou não roubos, não sente qualquer nostalgia do passado.
«Tenho sorte porque a liberdade chegou», afirma. «Não me sinto desapontado. Era de esperar que surgissem estes problemas económicos e sociais.»
Na opinião de Maly, os assaltos revelam mais do que a vulnerabilidade das igrejas num país em que relativamente pouca gente pratica o culto. Eles são, também, sinal de uma alienação mais profunda dos checos relativamente ao seu passado.
«Numa aldeia, as pessoas não encaram a igreja como um tesouro», diz. «Mas a igreja não é apenas um elemento decorativo dessa aldeia. É também um sinal de que os nossos antepassados ali viveram, um indício da nossa História nacional, que é tão rica. Por favor, não me interpretem mal. Não sou um nacionalista. Mas, na minha opinião, é necessário termos consciência das nossas raízes. É algo que nos pode ajudar a ser mais tolerantes para com outras culturas.»
Voltando aos escritórios apalaçados do arcebispo de Praga, o bispo Lobkowicz, cuja família, outrora poderosa, recebeu recentemente de volta vários castelos que as autoridades comunistas lhe haviam confiscado, explica que a Igreja começou a tomar medidas extraordinárias para salvar os seus tesouros. As peças mais valiosas, como virgens barrocas, cálices revestidos a ouro e candelabros de prata, foram retiradas das igrejas onde, ao longo de séculos, haviam desempenhado o papel de símbolos da beleza e do esplendor do catolicismo romano. Actualmente, encontram-se em cofres escuros e silenciosos.
«É uma pena, mas tivemos que o fazer», declara o bispo, quase apologeticamente. «Quando tivermos hipótese de instalar bons sistemas de segurança nas nossas igrejas, então voltaremos a colocar os tesouros nelas. Até lá, temos que os salvar.»
Fronteiras abertas, um apetite insaciável por moedas fortes e igrejas e museus deficientemente protegidos levaram a uma erupção de roubos de obras de arte por toda a Europa de Leste ex-comunista. Segundo a Interpol, tanto a Rússia e a Polónia como a República Checa têm comunicado números cada vez mais elevados de ocorrências. Alarmado pela vaga de assaltos nas numerosas igrejas católicas da Polónia, o Vaticano deu ordens, no ano passado, para que as paróquias polacas fizessem um inventário dos seus tesouros.
De acordo com a polícia, a Hungria sofreu um prejuízo devastador em Dezembro, quando 200 objectos raros foram furtados do Museu Judeu de Budapeste por uma quadrilha profissional. Os artefactos, entre os quais se encontravam inestimáveis decorações de prata da Tora datando do séc. XVII, estão avaliados em vários milhões de dólares.
Vender o fruto desta pilhagem, bem como outras obras de arte altamente valiosas e facilmente reconhecíveis, pode vir a tornar-se mais difícil do que furtá-las. Em Maio, auxiliada pela Scotland Yard, a polícia norueguesa recuperou «O Grito», talvez o quadro mais famoso da Noruega, que fora roubado em Fevereiro.
«É óbvio que eles não o conseguiriam vender», assegura René, um perito em roubos de obras de arte da Interpol sediada em Lyon. «Encontrámos importantes obras de arte abandonadas no metropolitano de Paris e em garagens por ladrões após se terem apercebido de que não as poderiam vender.»
Acrescenta, contudo, que também pode acontecer que um rico coleccionador encomende o roubo de uma famosa obra de arte apenas porque a deseja possuir e não porque espera vendê-la. Quadrilhas profissionais também adquirem valiosos artefactos furtados como meio de branquear o dinheiro oriundo de operações ilícitas.
Condições económicas miseráveis em alguns dos países ex-comunistas vieram criar um clima que leva a que não possa depositar-se confiança em todos aqueles que têm à sua guarda os tesouros culturais nacionais. Em Fevereiro, Mayslim Islami, director do Museu de História Nacional da Albânia, em Tirana, foi condenado a 12 anos de prisão por se ter apoderado de uma pedra tumular datando de 1373 -- «uma perda irreparável», segundo os peritos albaneses.
</TEXT>
</DOC>