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<DOCNO>PUBLICO-19940704-083</DOCNO>
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<DATE>19940704</DATE>
<CATEGORY>Diversos</CATEGORY>
<AUTHOR>LP</AUTHOR>
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João Peste
«O casal Rui Reininho e Io Appoloni»
Qual é a melhor recordação de Verão da sua infância?
Ter-me apaixonado profundamente numa escaldante noite de Agosto de 1989. Inspirado nessa paixão, que eu creio que ainda arde dentro de mim, fiz uma canção a que chamei «Cocaine, Amigo» e que dediquei a essa mesma história de amor. Acho que nunca me apaixonarei por alguém de uma forma tão intensa e alucinada. Foi um shakespeareano «sonho de uma noite de Verão»; um sonho que eu não sei dizer se ainda persiste ou se já terminou, mas que eu não esquecerei nunca.
Durante 1994, a quem é que teve vontade de pregar uma grande estalada?
No principal responsável pelas brutais e desnecessárias cargas policiais sobre os estudantes portugueses. Tendo em conta que a principal responsabilidade recai sobre uma senhora -- a senhora ministra da Educação --, creio que não me ficaria bem recorrer a uma grande estalada. Tratando-se de uma senhora eu não lhe tocaria sequer com uma flor... agora, politicamente, obviamente que a demitia. Um ministro -- ou ministra -- da Educação deveria ser mais bem-educado(a) e tratar os estudantes com respeito e não com a violência que caracteriza a bestialidade e a irracionalidade dos fascismos e da repressão em geral. Não, senhora ministra! Assim não...
Conte-nos os seus planos para o Verão de 1994?
Preparar o terreno para a saída do novo álbum dos Pop Dell'Arte, chamado «Sex Symbol», e de uma colectânea sobre a história da Ama Romanta, com capa de Nuno Leonel, que terá temas de vários grupos desde os Mler Ife Dada aos Mão Morta, passando, entre outros, pelos Cães Vadios, Essa Entente, Croix Sainte e obviamente pelos Pop Dell'Arte e os Acidoxi Bordel. Tenciono ainda continuar a escrever o argumento para um filme que gostaria de fazer com o Joaquim Pinto e efectuar, sem compromisso, algumas experiências musicais -- essencialmente com vozes -- com o meu amigo Pedro D'Orey, o vocalista inicial dos Mler Ife Dada.
Toma Prozac? Se não toma, toma o quê?
Nunca tomei Prozac. Tomo várias coisas, principalmente café, que é o meu vício mais antigo, não sendo no entanto o pior. Qual é o pior? Isso já é querer saber de mais.
O que é para si o final de tarde perfeito de um dia muito quente?
Estar no terraço da casa da minha tia Né, em Faro, a tomar um campari laranja na companhia da pessoa por quem estou apaixonado e se possível -- o que duvido que seja -- ter o Bryan Ferry em pessoa sentado ao piano a tocar e a cantar o seu tema «Sunset», especial e exclusivamente para nós.
A artista brasileira Cristiane Torloni, depois de regressar ao Brasil, afirmou ao jornal «Globo»: «Santana Lopes faz política barata (...), em Portugal não se pode sonhar e agora entendo o índice de viciados em heroína.» Quer comentar?
Creio que a afirmação da Cristiane Torloni se divide em três partes: a política de Santana Lopes, o direito ao sonho e o consumo de heroína.
Em relação à política de Santana Lopes, não creio que se trate de uma política barata, mas pelo contrário de uma política até bastante cara (pelo menos a julgar pelo subsídio que ele atribui à sra. Torloni); o problema da actual política cultural em Portugal não é ser barata ou cara, mas ser restrita -- tanto em termos de produção como em termos de consumo -- a uma pequena minoria. Se ela fosse mais abrangente, o estado da cultura em Portugal, principalmente das artes (do teatro à música passando pelo cinema e a pintura e por todas as novas tecnologias «multimedia»), seria bem mais interessante.
Em relação ao direito ao sonho, creio que sonhar ainda é das poucas coisas que podemos fazer com alguma tranquilidade neste país. O problema da senhora Torloni foi, possivelmente, ter sonhado de mais com Santana Lopes e sonhos desses facilmente se transformam em pesadelos. O índice cada vez maior de viciados em heroína em Portugal é indiscutivelmente preocupante, mas duvido que o do Brasil o seja menos. Preocupante, também, tanto em Portugal como no Brasil, é o número (também cada vez maior) de viciados em futebol, gladiadores americanos, telenovelas, programas de televisão tipo 1,2,3 e Perdoa-me e, no pior vício de todos, o vício do vazio, o estar viciado em não fazer nada a não ser marcar o ponto e ir para casa dormir após a dose diária de televisão. Como dizia Fernando Pessoa: «Raios partam a vida e quem lá anda!» Neste caso, raios partam a senhora Torloni.
O que é para si um totalmente detestável dia de férias?
Um dia em que não se passe nada e durante o qual eu me sinta completamente só.
Foi de alguma maneira sensível à novela mediático-melodramática Toni-Artur Jorge?
Gosto de futebol, mas evito deixar-me alienar pelo negócio e pelas tricas que se erguem em seu redor. Não leio a imprensa desportiva e talvez por isso ignore por completo o que se terá passado entre Artur Jorge e Toni.
Consegue mergulhar numa piscina sem pensar em todo o tipo de doenças a que está sujeito?
Claro. Senão não só não mergulharia em piscina alguma, como não faria mais de metade das coisas que faço.
Há uma geração rasca em Portugal? E, se existe, como se comporta essa geração quando o calor aperta?
Não acredito na existência de gerações rascas. Lembro-me de ter visto, num dos festivais de teatro de Avignon, uma peça do chinês Lu Xun chamada «Tempestade numa chávena de chá», em que uma personagem, que simbolizava o conservadorismo, dizia várias vezes ao longo da peça que «cada geração é pior do que a anterior». Eu penso exactamente o contrário, creio que cada geração é melhor do que a anterior ou, pelo menos, tem obrigação de o ser. Assim, para aceitar que existe em Portugal uma geração rasca, teria de aceitar também a ideia de que as gerações que a precederam foram ainda mais rascas... rasquíssimas, se calhar.
Confesso que tenho um carinho especial pelo pessoal que tem agora entre quinze e vinte anos, até porque o meu público se situa maioritariamente nessa faixa etária, o que me faz não só respeitá-los como gostar deles ao ponto de poder dizer que é essencialmente para eles que eu escrevo e produzo música. Devo-lhes o pouco que ainda me resta de esperança.
Do Minho ao Algarve, escolha a praia que privatizaria só para si, para a sua família e para os seus amigos.
Nunca me passou pela cabeça privatizar uma praia. Se o fizesse, acho que escolheria uma praia que fica no território nacional mas não propriamente entre o Minho e o Algarve. Refiro-me à praia do Porto Santo, na ilha do mesmo nome, no arquipélago da Madeira.
O que é que pagava para ver acontecer?
Pagava o dinheiro que tivesse para me ver na posse do dinheiro suficiente para fazer tudo o que quisesse.
Quais são os jornais que não dispensa na praia ou no campo?
Nenhum. Tanto na praia como no campo e mesmo na cidade não vivo de jornais, logo, posso dispensá-los a todos.
Conhece o Alentejo profundo? E o Pulo do Lobo? E então?
Não. Também não. E então nada.
O que é que o irrita profundamente?
Nada me irrita mais profundamente do que encontrar sistematicamente a mediocridade no poder. Ver Portugal, desde que tenho memória, transformado num país em que quanto mais medíocre se é, mais alto se sobe. Isto não significa que se trate de um país de medíocres, mas de um país onde, salvo raras e honrosas excepções, as estruturas políticas e sociais perpetuam e legitimam a mediocridade. Portugal não precisa de uma revolução, mas de dez ou vinte. Está praticamente tudo mal. Já me disseram que eu pertencia à «link melancholie» e eu respondi que antes isso do que ter sangue cor de laranja.
Descreva-nos o seu dia ideal de férias? Praia ou campo? Ou cidade?
Um lugar distante onde pudesse estar tranquilamente na companhia das pessoas que amo. Praia, ou campo ou cidade em Saturno, Marte ou Vénus por mim estão bem.
Quem é que espera não encontrar nestas férias?
O casal Rui Reininho e Io Apolloni.
Na costa portuguesa, recomende-nos um restaurante à beira-mar para um jantar de arromba. Recomende e justifique.
Quando era puto costumava ir com os meus pais e a minha irmã a um restaurante na Costa da Caparica com vista para o mar que se chamava O Bento. Se ainda existir, é esse que eu recomendo. Perto da minha casa, em Campo de Ourique, existem no entanto dois dos meus restaurantes preferidos, que eu recomendo para qualquer altura do ano: um pequenino, com excelente comida caseira, chamado O Bitoque e outro, de comida indiana, chamado Velha Goa, que tem um inesquecível «amotic de camarão». São ambos óptimos.
O que é que o incomoda mais: as melgas de Verão ou as melgas do ano inteiro?
Os melgas e as melgas do ano inteiro.
O seu local de férias tem muito «jet-set»?
Eis uma pergunta a que me é difícil responder. Primeiro, porque há vários anos que não tenho um local de férias fixo; segundo, porque me estou completamente a cagar para todo e qualquer tipo de «jet-set».
Há 20 anos, vivia-se o primeiro Verão pós-25 de Abril. Lembra-se como e onde o passou? E com quem? E quais eram as suas preocupações?
Quando se deu o 25 de Abril, eu tinha apenas onze anos e passei as férias desse ano num apartamento que os meus pais alugaram na Costa da Caparica. Politicamente, não foi um Verão muito quente -- pelo menos em comparação com o do ano seguinte. Que me lembre, eu não tinha quaisquer preocupações especiais. Ouvia-se por todo o lado o «hit-single» dos Rubettes «Sugar Baby Love» e eu não sei porquê associo sempre a esse Verão uma canção dos T. Rex chamada «Teenage Dream», que eu então costumava ouvir e na qual o Marc Bolan (já em 1974) se interrogava «Whatever happenned to the teenage dreams?». Não sabia, nem sei ainda a resposta.
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