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<DOCNO>PUBLICO-19940705-114</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940705-114</DOCID>
<DATE>19940705</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>MS</AUTHOR>
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António Manso Pinheiro, editor da Estampa
«Não me sinto prisioneiro dos hipermercados»
Como é que a Estampa se tem dado com a «crise»?
A Estampa não está mal, mas a crise do livro é tão real quanto isto: há cerca de 25 anos a tiragem mínima que admitíamos fazer era de 3 mil exemplares e hoje só em casos extraordinários vamos além dos 1500. Esta diminuição das tiragens acentuou-se durante a década de 80, paradoxalmente quando as pessoas, a partir de 1985, tiveram mais meios de compra. Isto está ligado a uma grande multidão de factores e desde logo a este: há cerca de 20 anos Lisboa representava cerca de 60 por cento do consumo nacional de livros e o Porto cerca de 25 por cento; hoje, ao menos para nós, essa percentagem reduziu-se para cerca de metade.
Também adoptaram o princípio de baixar tiragens multiplicando o número de títulos editados?
Se se vendem menos exemplares de um certo número de livros, é indispensável que se diversifiquem o número e o tipo de títulos para conseguir o mesmo nível de facturação.Temos aumentado significativamente a nossa produção e este ano estamos a editar 10 títulos por mês.
Colecções como a «Livro B» e a «Novas Direcções» fizeram a «imagem de marca» da Estampa. O que é que o levou a acabar com elas?
O consumo! Hoje as pessoas consomem significativamente menos literatura e a Estampa é, evidentemente, uma editora comercial que procura diversificar o mais possível o seu catálogo para satisfazer o mais possível o cada vez menor número de consumidores de livros...
É isso que explica que se tenha virado para os saberes «ocultos» e «alternativos», mudando substancialmente o perfil do catálogo?
Eu não diria tanto! Sou editor há 25 anos e, com toda a franqueza, cada vez me reconheço mais no catálogo da Estampa. Acho que ele corresponde cada vez mais àquilo que eu penso que deve ser a função social e cultural do editor. Pareceu-me que seria de tentar algumas áreas que poderão ser consideradas um pouco excêntricas no quadro geral daquilo que era a nossa vocação editorial. Refiro-me, sobretudo, às medicinas alternativas. Porque a crise do livro não é única! Hoje, facilmente se detectam sérias insatisfações, por exemplo, na área da prestação dos serviços de saúde que têm a ver com a medicina dita alopática. E eu acho que essas insatisfações são muito razoáveis. Então, pareceu-me que seria importante dar um contributo, ainda que pequeno, para a procura de soluções alternativas, que até são mais económicas...
Além do mercado, também há, portanto, a convicção...
Mas eu edito sempre livros com alguma convicção pessoal! Para mim, a edição não é um mero negócio e o meu catálogo espelha aquilo que penso que deve ser a função social do editor...
Que passa, neste momento, pela edição de manuais de astrologia, por exemplo...
Certamente, é verdade! Isto é, eu também acho que isso corresponde às necessidades das pessoas. Porque uma crise nunca é só económica. O desemprego apenas acorda outras insatisfações, porventura adormecidas... Digamos que essas colecções têm muito a ver com a insatisfação religiosa das pessoas.
Que percentagem têm essas colecções no volume global de vendas?
Neste momento não lhe posso dar uma resposta exacta, mas digamos que estamos muito satisfeitos com os resultados. Isto é: não vimos ainda motivos para baixar as tiragens, que são superiores à média, e muito menos para suspender as colecções.
Isso significa que vão investir mais nessa área?
Imediatamente não, mas estamos empenhados noutras áreas. O nosso catálogo tem sido até aqui francamente insuficiente na área do livro infanto-juvenil e esta é seguramente uma área que nos vai preocupar seriamente nos próximos anos. Não tanto, talvez, quanto ao livro infantil propriamente dito, mas mais quanto ao juvenil. E quero dizer-lhe que isso corresponde à minha convicção de que as pessoas têm cada vez menos tempo para ler e que, portanto, os livros juvenis se destinam sobretudo a adultos sem hábitos de leitura. Essa atenção especial à área infanto-juvenil é aquilo que será verdadeiramente novo no nosso catálogo nos próximos tempos. Temos já -- pensadas, programadas ou em andamento -- dez colecções nessa área. Julgo que ela corresponde ao tipo de leitura que é possível exigir ou esperar hoje do consumidor.
A ficção tende, portanto, a desaparecer...
É verdade e tende a desaparecer também dos hábitos de consumo das pessoas! E por isso, só por isso, é que ela tende a desaparecer do catálogo da Estampa. Não posso publicar para o armazém. Seria uma actividade inútil e suicida, além de muito cara!
As colecções «alternativas» vendem bem nos hipermercados?
Vendemos razoavelmente, mas não é ainda uma percentagem muito significativa. Admito que rondará talvez os 15 por cento da facturação. Isto é: fazemos parte daquela quinzena de editores que vendem habitualmente na maioria dos grandes espaços comerciais. Não estamos presos aos hipermercados, mas é uma área de comercialização que não podemos, não queremos, nem devemos ignorar.
O que pensa do preço fixo?
Se o problema é realmente importante e altera significativamente os termos da concorrência no mercado do livro, acho que o Governo tem obrigação de intervir para regularizar a situação. Se o Governo não o entender assim é porque certamente não está convencido de que este seja um assunto sério e, neste caso, acho muito difícil que as partes cheguem a um entendimento.
E não admite a hipótese de o Governo se enganar no diagnóstico?
Admito, mas não creio que, em termos de comercialização, o mercado do livro seja substancialmente diferente dos outros mercados. A questão dos preços especiais que os hipermercados praticam põe-se em relação a todos os outros produtos que eles comercializam. Não creio que esta seja a questão essencial, porque não só o tipo de pessoas que adquirem livros em hipermercados é substancialmente diferente do tipo de pessoas que ainda frequentam livrarias, como o tipo de livros vendidos nas grandes superfícies é substancialmente diferente daquele que se vende nas livrarias. Por exemplo, se eu não trabalhasse regularmente com hipermercados, não encararia hoje a hipótese de editar seriamente livros infanto-juvenis, porque eles se vendem muito mais nos hipermercados do que nas livrarias...
Mas isso confirma, justamente, a «perversão» do mercado de que falam alguns editores!
É verdade, mas esse é o problema que os editores vão ter que resolver: por mim, não me sinto especialmente prisioneiro dos hipermercados. Mas permita-me que ponha a questão de outra forma: a Estampa é uma empresa particular, não é subsidiada por fundos públicos e portanto tem que prestar uma atenção muito séria à economia da sua produção. É claro que não podemos editar livros que julgamos serem inviáveis no mercado comercial! Por exemplo, a área das medicinas alternativas tem um mercado significativo no Brasil, para onde exportamos cerca de 7 por cento da nossa facturação. Estes 7 por cento são um grave condicionamento? É claro que não, mas também é claro que é uma coisa que não podemos ignorar, porque são muitos milhares de contos! O facto de existir esse mercado, permite-nos publicar coisas que antes não tínhamos condições para publicar. Digo o mesmo em relação aos hipermercados: se eles não existissem, não poderia considerar, como considero agora, a possibilidade de editar seriamente livros que considero excelentes na área do livro infanto-juvenil; porque o mercado livreiro não é tão receptivo a esse tipo de livros como o hipermercado. Só que isso não constitui para nós um condicionamento, mas uma condição da edição.
Não defende, portanto, o preço fixo. E quanto à actuação da APEL, qual é a sua opinião?
Francamente, gostava de ter uma opinião mais clara sobre o preço fixo, mas não tenho. Tendo a pensar que a crise do mercado livreiro tem outros motivos fundamentais, que passam muito ao lado da questão da comercialização nos hipermercados. Nos anos 80, houve uma verdadeira mutação nos hábitos de consumo de bens culturais. Isto é: há outras coisas que se tornaram prioritárias para as pessoas. É claro, também, que a alteração dos currículos escolares e a forma desastrada como o ensino do português tem sido ministrado contribuíram para a não formação de hábitos de leitura. Quanto à direcção da APEL, acredito que tenha tantas dúvidas quanto eu quanto aos reais prejuízos que a forma de comercialização adoptada nos hipermercados provoca no sector livreiro.
Mas se os editores não têm ideias claras sobre a sua actividade, quem é que pode tê-las?
Bem, há uma Secretaria de Estado da Cultura! Há um Instituto do Livro! Suponho que é ao Governo que cabe defender os interesses públicos! Se ele entender, ouvidas as partes, que os termos da concorrência estão a afectar gravemente os interesses gerais da população -- não os deste «lobby» ou daquele --, é claro que ele tem obrigação de intervir. Se não acha, não tem! Mas eu gostava de saber se o comércio foi feito para servir a população ou se foi a população que foi feita para servir o comércio. Depois de respondida esta questão, podemos continuar... Porque gostaria também, por exemplo, de ver os livreiros investirem na valorização dos seus espaços e do seu pessoal! Isto é, gostaria que os livreiros fossem -- permita-me a crueza com que falo -- francamente mais competentes do que são...
Mário Santos
António Manso Pinheiro nasceu em Coimbra em 1942. Fez um curso de Gestão e Administração e trabalhou numa agência de publicidade. Em 1969 adquiriu a Editorial Estampa, que tinha sido fundada em 1960 por Paradela de Abreu.
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