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<DOCNO>PUBLICO-19940720-141</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940720-141</DOCID>
<DATE>19940720</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>JAF</AUTHOR>
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Memórias da resistência
Uma tragédia alemã
William Echikson e Sarah Farmer*
A Alemanha de hoje considera o atentado falhado de 20 de Julho de 1944 um episódio fundador da República do pós-guerra. O interesse suscitado pelo atentado contra Hitler na Alemanha assemelha-se ao da comemoração do Dia D nos outros países. Para os outros europeus, é uma ocasião de introspecção: porque foram deixados tão sós os homens que então representaram a justiça na Alemanha?
Reunidos pelo World Media, dois eminentes historiadores, um inglês e outro alemão, debatem o sentido que se deve dar a esta data. Timothy Garton Ash (TGA), membro do Saint Antony's College, de Oxford, é sem dúvida o melhor observador ocidental dos movimentos anticomunistas da Europa Central. O seu último livro, «In Europe's Name: Germany and the Divided Continent», trata da política externa alemã depois da II Guerra Mundial. O professor Michael Stürmer (MS) é conhecido pelas suas crónicas regulares nos jornais em que comenta a História e a actualidade política alemãs. Stürmer acaba de publicar «The Limits to Power: The Germans Confront their History». Conselheiro governamental em política externa, escreveu, em 1984, o discurso comemorativo pronunciado pelo chanceler Helmut Kohl por ocasião do aniversário do 20 de Julho.
WORLD MEDIA -- A II Guerra Mundial teve o seu apogeu há 50 anos: é, portanto, altura de aniversários. Podemos comparar as cerimónias do Dia D às celebrações do 20 de Julho na Alemanha?
MICHAEL STÜRMER -- Enquanto que o Dia D é uma data de glória para os ingleses e americanos, o 20 de Julho é para os alemães o dia de todas as ambiguidades. De certo modo, o 20 de Julho salvou a honra da Alemanha e ajudou o Ocidente, e até, mais tarde, o Leste, a tomar um novo rumo. Se Hitler tivesse sido morto em 1944 ter-se-ia poupado o mundo, a Europa, a Alemanha, bem como centenas de milhares de pessoas que foram exterminadas nos campos. Mas de certeza absoluta que isso não teria conduzido à criação da comunidade atlântica, nem à constituição da Alemanha Ocidental em República Federal. O cenário teria sido outro.
TIMOTHY GARTON ASH -- Estou inteiramente de acordo com Michael Stürmer quando diz que o 20 de Julho de 1944 é uma data crucial para a História da Alemanha, que todos devem celebrar. Os que tentaram matar Hitler permitiram que a Alemanha se inclinasse sobre esse passado com um certo respeito por si mesma. O que é vital para o futuro da Alemanha reunificada. A diferença nítida em relação às comemorações do Dia D é que foi um fracasso e a Alemanha libertou-se do nazismo não do interior, mas do exterior. Daí a profunda ambiguidade de que fala Michael Stürmer.
Devo dizer que, numa análise fria da História, se poderia concluir que a derrota alemã face aos aliados salvou, paradoxalmente, o país. Uma derrota completa era a condição prévia para tudo o que se fez depois na República Federal. Se o 20 de Julho tivesse tido êxito, a situação teria sido mais complexa, porque os heróis da resistência não eram precisamente democratas liberais.
MS -- Eles não se arriscavam a sê-lo...
TGA -- É verdade. Porém, por uma cruel ironia do destino, acabou por ser mais fácil construir uma democracia liberal na Alemanha com base numa derrota sem recurso. Evidentemente, teríamos preferido que a resistência tivesse vencido em vez de Hitler, em 1938, quando os generais fizeram a primeira tentativa. Mas, mesmo em 20 de Julho de 1944, ter-se-iam salvo milhares de vidas e a linha de divisão da Europa teria sido fixada mais a Leste. Penso, no entanto, que é importante dizer que a derrota da Alemanha foi também uma vitória para a Alemanha.
Heróis ou traidores?
P. --ÊOs alemães ocidentais levaram muitos anos para considerar os conspiradores como heróis. Ao princípio, eram tratados como traidores. Como explicam esta mudança de atitude?
MS -- Não estou de acordo com essa afirmação. As ideias que inspiravam a Assembleia Constituinte de 1948 e 1949 tinham as suas origens mais no 20 de Julho do que na República de Weimar. Os constituintes procuravam mais não tornar a repetir os erros da Constituição de Weimar do que demarcar-se do 20 de Julho. É preciso também debruçarmo-nos sobre as motivações que prevaleceram em 1944. Pretendia-se acabar com os assassínios. Muitos estavam obcecados pelo horror da sorte reservada aos judeus da Europa. Esta foi uma motivação essencial.
TGA -- Muitos oficiais que tinham servido na frente de Leste haviam testemunhado assassínios em massa de camponeses e judeus, nas florestas, o que foi vital para lhes abrir os olhos e os levar a agir. Mas os objectivos prosseguidos pelos conspiradores eram extraordinariamente diversos. O conspirador principal, Stauffenberg, era um romântico conservador. É evidente que a República Federal não corresponde de todo à Alemanha dos seus sonhos.
Ao mesmo tempo, penso que as ideias da resistência contaram para a fundação da República Federal. Um outro exemplo é a proximidade da colaboração política entre as igrejas católica e protestante. O facto de as duas confissões serem representadas no seio de um partido único, os democratas-cristãos, é, penso eu, pelo menos em parte, um produto da sua colaboração na resistência. É por isso que concordo em dizer que o 20 de Julho deixou marcas nos anos fundadores da República Federal.
24 horas por dia durante séculos
P. -- Mas não acham que os alemães exageram, já que, apesar de tudo, não passou de uma tentativa de revolta levada a cabo por alguns oficiais dissidentes?
MS -- Penso que esperar um movimento de massas de um país que combateu em três ou quatro frentes é perfeitamente irrealista. Num país totalitário, os movimentos de massas raramente são coroados de sucesso. A Alemanha não era um país em que se pudesse telefonar livremente, exprimir as opiniões, ler a imprensa internacional ou manifestar-se: mesmo ouvir a BBC era pôr a vida em perigo.
TGA -- Reconheço que, nas circunstâncias de 1994, se alguém podia destituir Hitler era o Exército, eram os únicos que tinham meios para tal. Mas penso que existe actualmente na Alemanha a tentação de dizer, talvez por causa das desastrosas celebrações do Dia D, «vocês têm o vosso 6 de Junho, nós temos o nosso 20 de Julho». É pena que hoje haja este género de sentimento ambíguo. Acho que deveríamos fazer algo para celebrar o 20 de Julho e que a Alemanha deveria ter sido convidada para as comemorações do Dia D.
Em geral, após a reunificação, há na Alemanha uma certa tentação de dizer: «A Alemanha cumpriu a sua pena pelo nazismo, chegou a hora de falar menos de Auschwitz e mais do futuro.» Ora, nenhuma tentativa de reconstruir o patriotismo alemão pode passar pelo esquecimento de Auschwitz.
P. -- As comemorações encorajam os alemães a considerarem-se inocentes?
MS -- Não noto essa tentação de que fala Timothy Garton Ash. Não penso que as pessoas possam dizer, agora que a Alemanha está reunificada, «vamos virar a página e olhar só para o futuro». Para os alemães, o período nazi continua a ser um pesadelo que os perseguirá 24 horas por dia durante séculos. Certamente que, com o tempo, as feridas serão menos dolorosas. Algumas pessoas afirmam que o 20 de Julho é hoje mais importante do que nunca. Não poderemos mais viver sem esta data. Ela impede-nos de sentirmos total desespero da alma humana, da História alemã, do totalitarismo do século XX e da tentação totalitária.
P. -- Na ex-RDA, ensinava-se aos alemães que o Partido Comunista tinha estado à frente da resistência antifascista e que os alemães de Leste não tinham nada de que se culpar. Quais serão as consequências, para a Alemanha reunificada, de tantos anos em que o Leste e o Ocidente viveram com memórias muito diferentes?
TGA -- O antifascismo era a ideologia de Estado da RDA. É por isso que o modo como o chanceler Kohl irá evocar o papel dos comunistas e dos socialistas na resistência antinazi, no seu discurso do 20 do Julho, será importante. A história da resistência comunista sofreu tantas distorções na ex-RDA que é impossível incluí-la na tradição da Alemanha unificada. Mas um reconhecimento da contribuição da resistência comunista, mesmo que ambígua, é importante.
MS -- Os comunistas da Alemanha de Leste apresentaram-se como vencedores legítimos do nazismo. No entanto, a sua superioridade moral é muito difícil de estabelecer. Desde o fim da República de Weimar, penso que eles tiveram de enfrentar uma situação de guerra civil. Acontece que os nazis ganharam e que os comunistas perderam. Na altura da RDA, o antifascismo tornou-se o instrumento de repressão comunista. O escandaloso Muro de Berlim tinha o nome oficial de «muralha antifascista».
P. -- As comemorações do 20 de Julho correm o risco de encorajar os alemães ocidentais a comportarem-se como outrora os de Leste e a considerarem-se como vítimas do nazismo?
TGA -- Não. Até 1989, em Auschwitz, passava-se entre as fileiras de barracões dedicados a cada tipo de vítimas do nazismo e, no fim, um deles tinha o nome de RDA, como se a Alemanha de Leste fizesse parte dos mártires. Este tipo de distorção absurda da História é impensável na República Federal. Contudo, mais de 60 por cento das pessoas executadas por causa da sua oposição ao nazismo eram comunistas ou próximas do partido. Mesmo que as pessoas na Alemanha de Leste fossem alérgicas às palavras de ordem do antifascismo, eram muitos a julgar de modo positivo a «resistência de esquerda» a Hitler.
MS -- Nos últimos anos, talvez até ao começo dos anos 70, o antifascismo conferiu uma certa legitimidade a todos os regimes comunistas da Europa de Leste e Central. Tal como a imagem de uma Alemanha Ocidental «revanchista», estreitamente associada ao campo imperialista, dava o flanco às afirmações dos soviéticos de que eram obrigados a proteger esses pobres países da Europa Central contra os imperialismos americano e alemão. Mas há mais de 20 anos que eles perderam toda a credibilidade. Com a «détente» e a «Ostpolitik», esses espectros já não podem transformar-se em «slogans» poderosos.
As celebrações do 20 de Julho deveriam ser ocasião para uma pequena introspecção na Grã-Bretanha. Porque é que estes conservadores e homens de Igreja que levaram a chama da justiça à Alemanha tiveram tão pouco apoio? Foram abandonados à sua sorte por muitos dos seus potenciais aliados no estrangeiro. Não há aqui uma outra tragédia na história desta grande catástrofe?
A natureza do totalitarismo
TGA -- Os sinais de alerta recebidos pelos Aliados eram frequentemente muito difíceis de ler e ambíguos, porque os que estavam implicados, nomeadamente na resistência conservadora ao nazismo, eles próprios não eram muito claros quanto àquilo que queriam ver. Não creio que se possa dizer que a nítida falta de apoio à resistência alemã contra Hitler seja uma das grandes oportunidades falhadas da História europeia.
MS -- Mas o período que precedeu a Conferência de Munique de Setembro de 1938 assistiu à incapacidade flagrante dos países vizinhos de compreenderem a verdadeira natureza do totalitarismo. Eu vivi na Grã-Bretanha e não conheci muita gente que tivesse uma apreciação exacta do que significava agir num sistema totalitário, ser forçado a conservar a influência tentando destruir o sistema.
TGA -- Não estou de acordo. Se os britânicos e os franceses não levaram mais a sério a resistência de 1938 foi, nomeadamente, porque recebiam das respectivas embaixadas e da imprensa notícias do enorme apoio popular -- e aos seus olhos apoio voluntário -- ao regime nazi. Apoio esse tanto mais notório quanto o regime alcançava as primeiras vitórias militares. A diferença capital entre a Alemanha nazi de 1938 e a Rússia estalinista do mesmo ano é o grau de apoio popular ao regime.
MS -- Os regimes totalitários são terríveis, mas os regimes populares totalitários ainda são piores. Tal era a situação que os generais e os diplomatas tinham de gerir em 1938. Por isso é que era essencial para os poderes ocidentais resistir a Hitler em Munique. Depois, os conspiradores alemães teriam podido mostrar que este Hitler levaria não só a Alemanha, mas o mundo inteiro, para uma guerra mundial e a situação teria mudado. Mas, de facto, existia também o risco de conduzir a Alemanha para uma guerra civil.
P. -- Será que a conspiração contra Hitler dá aos alemães confiança em si e na sua capacidade de gerir a difícil situação económica e social actual?
TGA -- O elo entre os dois é bastante ténue. É verdade que o 20 de Julho é fonte de orgulho e de respeito por si próprios, mas não creio que tenha efeitos directos nos desafios da unificação. A questão é mais ampla. Trata-se do papel da Alemanha na Europa e do mundo. Por exemplo, as circunstâncias em que os soldados alemães deverão actuar fora das suas fronteiras.
MS -- Os problemas relacionados com a unificação são essencialmente de ordem civil, exigem que se trabalhe muito. O verdadeiro herói da resistência a uma ditadura deve estar preparado não só para trabalhar muito, mas também para verter sangue e lágrimas.
P. -- Que se dirá de tudo isto daqui a 50 anos?
MS -- Aconteça o que acontecer, os alemães continuarão assombrados pelo espectro dos acontecimentos de 1914 a 1945 e, sobretudo, pelo pesadelo nazi. O 20 de Julho levantará sempre questões existenciais sobre o homem e a moral, e não só por parte dos alemães: como é que os indivíduos podem resistir às pressões da ditadura, do totalitarismo? Como é que a consciência se pode erguer contra o sistema do mal?
TGA -- Quando perguntaram ao Presidente Mao o que é que ele pensava da Revolução Francesa, ele respondeu: «Ainda é um pouco cedo para me pronunciar.» Havia algo de verdadeiro nesta resposta. Tal como nos provaram todos os acontecimentos de 1989, a imagem que nós temos do passado pode ser modificada pelo presente. Eu imagino que, daqui a 50 anos, os grandes episódios e dramas do período nazi e da II Guerra Mundial permanecerão, nas memórias, entre as grandes experiências históricas que viram misturar-se o pior e o melhor da humanidade.
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