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<DOCNO>PUBLICO-19940721-129</DOCNO>
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<DATE>19940721</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>FCOL</AUTHOR>
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Rei morto, rei posto
Fernando Correia de Oliveira
Terminou a grande encenação. A Praça Kim Il Sung, em Pyongyang, albergou ontem o último acto da peça levada à cena, desde há 12 dias, pelo regime da Coreia do Norte. O drama político-religioso iniciado com a morte do «Grande Líder», teve o seu epílogo perante a corte e centenas de milhares de figurantes, com o filho e herdeiro designado, Kim Jong Il, a corporizar a primeira dinastia comunista da História.
A Coreia do Norte realizou ontem aquela que deverá ser a derradeira cerimónia em memória do Presidente Kim Il Sung, falecido há 12 dias, mostrando claramente que o filho, Kim Jong Il, passa a governar o país, no primeiro sistema dinástico comunista do mundo.
Centenas de milhares de norte-coreanos juntaram-se na gigantesca Praça Kim Il Sung, em Pyongyang, comportando-se desta vez de forma muito mais discreta do que nos últimos dias, sem cenas de choro ou histeria, para ver a «nomenklatura» do regime prestar homenagem ao «Grande Líder», falecido aos 82 anos, de ataque cardíaco.
A televisão estatal transmitiu ao vivo toda a cerimónia, que durou uma hora e um quarto, e a cadeia norte-americana CNN retransmitiu as imagens para todo o mundo, em mais uma bem sucedida operação de propaganda dos norte-coreanos.
A espécie de comício começou com a leitura de elegias fúnebres por cinco oradores, incluindo o vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros, Kim Yong Nam, e o vice-ministro da Defesa, vice-marechal Kim Gwang Jin do Exército Popular norte-coreano. Todos os oradores recordaram «a luta revolucionária» de Kim Il Sung «contra o imperialismo e pela ideia Juche (auto-suficiência) e unificação nacional», apelando ao mesmo tempo para a unidade firme em torno do «nosso novo líder, camarada Kim Jong Il».
O filho mais velho de Kim Il Sung, de 52 anos, apareceu mais uma vez como figura central da encenação, ao centro do pódio onde se encontravam os restantes dirigentes, mas não falou.
«Na liderança da nossa revolução encontra-se hoje o camarada Kim Jong Il, supremo comandante das Forças Armadas revolucionárias», disse Kim Yon Nam. «Com ele no centro, o nosso partido seguirá a sua liderança», referiu o vice-primeiro-ministro, que é também membro do poderoso «bureau» político do Comité Central do partido.
O vice-ministro da Defesa foi mais longe: «Os nossos soldados seguirão a vontade do `Grande Líder' e apoiarão Kim Jong Il como o chefe da nação, do partido e do povo», referiu Kim Kwang Jin.
A cerimónia de ontem contrastou com o funeral de terça-feira, quando o corpo de Kim Il Sung, em cima de um carro e protegido por uma redoma de vidro, deu a volta a Pyongyang, no meio de cenas indescritíveis de choro, convulsão e desespero dos dois milhões de norte-coreanos que se alinhavam nos passeios. Teatro ou manifestação de profunda dor? Fé ou lobotomia colectiva? Fingimento ou pura sobrevivência num regime que não admite a esfera privada e controla totalmente a esfera pública? «Ridículo, demasiado ridículo» ou «humano, demasiado humano»? De tudo um pouco. Mas o rígido comportamento, em filas ordenadas militarmente, das centenas de milhares que ontem encheram a Praça Kim Il Sung deixa antever que a encenação ganha aos sentimentos.
Menos choro
Kim Jong Il apareceu ontem, mais uma vez, de «fato à Mao», preto, ladeado pelos números dois e três do regime, o ministro da Defesa, O Jin U, e o primeiro-ministro Kang Song San.
Kim Il Sung era Presidente da República, secretário-geral do partido e chefe da comissão militar junto do Comité Central, o organismo que controla politicamente o gigantesco exército do Norte, um corpo disciplinado com um milhão de efectivos. Embora tudo indique a sucessão, formalmente ainda nada foi anunciado.
O tom mais discreto da cerimónia de ontem foi visto como «um sinal encorajador» dado pelo regime em relação à maneira como um dos países mais fechados do mundo se vai relacionar a partir de agora com o resto do mundo, referiram em Seul alguns observadores, citados pela agência britânica Reuter.
«Correu tudo como previsto. Politicamente, a Coreia do Norte não perdeu o rumo com a morte do `Grande Líder'», disse o analista Michael Breen, de uma empresa de consultoria na capital sul-coreana. «A emoção e a dor do povo estão a ser recanalizadas para uma nova personalidade (a de Kim Jong Il). Mas a direcção continua a mesma. É isso que eles querem que o resto do mundo veja.»
Desejos e realidades
Os habituais ataques ao «imperialismo americano» ou aos «traidores da Coreia do Sul» estiveram ausentes dos discursos fúnebres e os meios diplomáticos querem crer que isso seja o sinal de que a era «kimjongilista» prosseguirá, sem sobressaltos, os últimos esforços diplomáticos do país em relação a Washington e Seul.
Ontem, o secretário de Estado-adjunto norte-americano para os assuntos da Ásia do Leste e do Pacífico, Winston Lord, antigo embaixador em Pequim, disse ter já recebido de Pyongyang a garantia de que a sua política não se vai alterar e que conversações bilaterais sobre a questão nuclear recomeçarão dentro em breve, em Genebra.
Quanto à histórica cimeira presidencial intercoreana, que deveria começar a 25 deste mês, em Pyongyang, por iniciativa do Norte, não há ainda notícia de um encontro Kim Jong Il-Kim Young Sam. Mas os analistas já citados referem que os desejos do pai Kim deverão ser respeitados e que a cimeira, mesmo que apenas por questões simbólicas, deverá realizar-se, mais cedo ou mais tarde.
«A filosofia base deles é como uma religião», desabafou o antigo Presidente americano Jimmy Carter, depois de uma controversa visita de quatro dias à Coreia do Norte, no mês passado, no auge da crise na península. Carter conseguiu o desanuviamento rápido da tensão, com o próprio Kim Il Sung a assegurar-lhe que o programa nuclear norte-coreano seria congelado.
Na biografia oficial de Kim Jong Il, que teria nascido em Khabarovsk, na Sibéria, onde os pais estavam exilados, o local do evento é na Coreia do Norte, com camponeses a relatarem o aparecimento de uma estrela a assinalá-lo. Numa mimetização da tradição cristã, o monte Paekdu é o Belém do regime e torna o jovem Kim, literalmente, o «filho de deus».
Na cerimónia de ontem, tudo terminou com três minutos de silêncio, o apitar de barcos, comboios e fábricas. Uma salva de tiros e o hino «A Internacional». Todos os cânones da liturgia comunista. Esgotados adjectivos, ditirambos, panegíricos, lágrimas, os 20 milhões de norte-coreanos regressam ao trabalho. Órfãos? Talvez... Para já, a encenação acabou.
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