<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19940728-130</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940728-130</DOCID>
<DATE>19940728</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>LMAI</AUTHOR>
<TEXT>
Gil Scott-Heron faz balanço de 25 anos de intervenção
«As pessoas procuram respostas fáceis para perguntas difíceis»
Luís Maio
Foi o porta-voz musical da revolta negra, o grande pioneiro do rap político, na América dos anos 70. Um quarto século depois, no entanto, diz que o seu maior contributo para a humanidade são os seus três filhos e conclui esta entrevista aconselhando o jornalista do PÚBLICO a criar descendência.
Em 1970, contava então 21 anos de idade, Gil Scott-Heron entrou nos estúdios da Flying Dutchman para fazer história. Era um jovem negro universitário (que já antes tinha lançado um romance e um livro de poemas), declamando textos radicais em defesa da minoria negra norte-americana, contra a chamada «civilização» branca e os seus bastiões de poder, nomeadamente a cultura televisiva. Um discurso de protesto numa voz eloquente e crua, iluminada pela ira e pela fé revolucionárias, contra um arsenal de congas e percussões acústicas. Era, como esta descrição já deixa entrever, o rap dez anos antes de ser oficialmente inventado.
Esta visão, primeiro substancializada na estreia de «Small Talk at 125th & Lenox», foi depois desenvolvida em «Pieces of A Man» (71) e «Free Will» (72), álbuns em que Gil alternou o formato de declamação e percussão com canções onde a sua poesia interventiva se articulava com jazz, soul e blues. Depois, em 1975, foi o primeiro artista assinado pela companhia Arista, onde fez carreira durante dez anos, fase em que a sua atenção aos problemas sociais e políticos ultrapassou as fronteiras dos Estados Unidos, concentrando-se em particular no Terceiro Mundo, enquanto a sua música se tornou mais serena e refinada. A Arista acabou, porém, por dispensar os seus serviços, de onde resultou um jejum discográfico agora ultrapassado com «Secrets», o novo registo na Mother Records.
É, porém, um Scott-Heron diferente que se reencontra aqui, 25 anos depois daqueles manifestos bombásticos. «Secrets» é o disco de um homem ainda politicamente empenhado, mas desconfiado dos «slogans» e das soluções de força, mergulhado em dúvidas onde antes só havia certezas, atormentado pela eventualidade de ser mal interpretado. Com quem falámos por telefone, inevitavelmente, sobre a dialéctica entre o passado e o presente desta lenda viva da música negra.
PÚBLICO -- Há vinte anos disse que a revolução deveria ser procurada não na televisão, mas no mundo verdadeiro. Hoje, porém, a realidade é cada vez mais a televisiva. A revolução é ainda possível?
GIL SCOTT-HERON -- Viu os resultados da revolução na África do Sul? Deu-se conta, nos últimos 15 anos, da quantidade de nações africanas que se tornaram independentes. Não acredita, portanto, que houve uma revolução, que se repetiu e voltou a repetir? Teve aí múltiplos exemplos de que a revolução é um processo em movimento.
P. -- E nos Estados Unidos?
R. -- Os Estados Unidos são apenas uma pequena parte do mundo e muitas mudanças têm acontecido mesmo lá. Essas mudanças, mesmo que não tenham sido violentas, também são uma realidade revolucionária. A revolução passa pela mente -- é preciso que se mudem primeiro as mentalidades e então as coisas começam a mudar.
P. -- É classificado como um pioneiro do rap. Que afinidade existe entre si e o rap ultrapolitizado, praticado por bandas actuais como os Public Enemy?
R. -- Não penso que tenhamos muito em comum. É verdade que eles fazem poesia de tempos a tempos. Mas eu sou um poeta e para além disso sou um compositor e também um romancista. É muito difícil comparar uma pessoa que faz uma pluralidade de coisas com gente que faz uma só.
P. -- Começa o seu novo álbum condenando o rap que glorifica a violência. É contra a linha «hardcore» representada por artistas como Ice T e Dr. Dre?
R. -- Isso não é rap «hardcore», isso é ficção. É precisamente o mesmo tipo de coisa que filmes como «Exterminador Implacável» -- não existe mais realidade vivencial numa do que na outra. Se Ice T esteve no meio de tanta violência, porque é que não acabou com ela?
P. -- Neste álbum exprime também algum arrependimento por coisas que fez no passado, ou pelo menos que receia terem sido mal compreendidas e originado equívocos...
R. -- Preferia não ser incompreendido, mas isso acontece para além da minha vontade. Acontece porque as pessoas procuram respostas fáceis para perguntas difíceis. Assumem a atitude de escolherem as canções que preferem e decidem que são a coisa mais importante, a essência da minha música, quando na verdade cada canção é uma entidade singular e autónoma.
P. -- Mas seria capaz de gravar de novo manifestos do tipo de ««The revolution will not be televised» e «Whitey on the moon»?
R. -- Não, porque já o fiz e, de resto, fi-lo bem. Por que razão deveria voltar a fazê-lo, se o fiz correctamente da primeira vez? Gravei essas canções de uma forma que permite às pessoas ainda hoje tomarem-nas como ponto de referência. Porque, de facto, quantos poemas musicais é que você se lembra dessa época?
P. -- Nessa altura, no princípio dos anos 70, a ira iluminava as suas canções. Hoje, porém, «Secrets» é mais sereno e reflexivo. É o destino inevitável do passar dos anos, para um cantor de mensagem como você?
R. -- É como quando se está a falar com alguém pelo telefone: tem-se forçosamente uma atitude diferente de quando se fala com esse alguém pessoalmente. De qualquer modo, você já alguma vez esteve extremamente irado?
P. -- Claro, sobretudo quando era mais jovem.
R. -- Sim, mas isso agora ainda lhe acontece. Ora qual é a diferença entre antes e agora? A verdade é que você se irrita na mesma, a diferença é que depois tem respostas que talvez não tivesse há uns anos.
P. -- Agora, como no princípio, os seus álbuns integram blues, soul e jazz. Os discos de rap também, a diferença é que neles são as máquinas [«samplers»] e não os músicos quem toca. Irá dar ao mesmo?
R. -- Não tenho bem a certeza de saber o que eles fazem no rap. Espero que estejam a fazer o que sentem ser mais criativo e apropriado para a mensagem que querem transmitir. Mas nunca entrei num estúdio para saber precisamente como é que operam. Porém, pessoalmente, não vejo qual é o lado criativo dos «samplers».
P. -- Quando iniciou carreira a recitar poesia sobre música popular, não havia nada de semelhante na música negra norte-americana. O que o levou a adoptar essa metodologia? E porque é que depois preferiu regressar a formas musicais mais convencionais?
R. -- Cada canção tem a sua própria orientação. Eu sempre me limitei a fazer aquilo que a canção já de si exigia. Os elementos da minha música são hoje os mesmos que quando comecei a justapor música e poesia -- as conjugações podem ser diferentes, mas os elementos são idênticos.
P. -- Essa fórmula de cruzamento de música e poesia fez de si uma lenda vida, em certos círculos...
R. -- Lamento estar a ouvir isso, simplesmente porque não há fórmula.
P. -- De qualquer modo, só em duas faixas de «Secrets» se verifica a tal conexão poesia-música. Porquê, se é justamente isso que as pessoas querem ouvir?
R. -- Então eu digo que essas pessoas têm disponíveis e devem comprar os discos antigos.
P. -- É um pioneiro do rap, mas hoje não goza da fama e da fortuna dos jovens rappers que lhe seguiram os passos. Não os inveja?
R. -- Absolutamente nada. Não acredito que eles sejam capazes de fazer aquilo que eu fiz, se os encarar do ponto de vista a partir do qual agora me vejo, isto é, no de continuar a ser importante para as pessoas. Não se pode comparar aquilo que eu fiz durante 25 anos com pessoas que o fazem durante 25 minutos.
P. -- E como é que faz o balanço desses 25 anos de carreira?
R. -- Tenho-os usufruído imenso...
P. -- Mas o que acha que fez de mais importante?
R. -- Sobreviver... Depois tenho três filhos, que são o que fiz de mais importante. Você já tem filhos? Não, então trabalhe nisso.
Discografia disponível em Portugal -- Há uma compilação feita a partir dos três primeiros álbuns e intitulada «The Revolution Will Not Be Televised», com selo BMG, importada do Brasil pelo Euroclube. O novo álbum, «Secrets», já existe em importação directa na Contraverso e vai ser lançado dentro de semanas na Polygram.
</TEXT>
</DOC>