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<DOCNO>PUBLICO-19940816-045</DOCNO>
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<DATE>19940816</DATE>
<CATEGORY>Local</CATEGORY>
<AUTHOR>GZ</AUTHOR>
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Um monumento natural com mais de 200 pegadas em 15 trilhos
Corridas de dinossauros na Serra d'Aire
José António Cerejo
Depois de Carenque, os adeptos da «dinomania» vão ter mais uma grande causa. Agora é preciso preservar as mais antigas pegadas de dinossauros da península e, talvez, da Europa. Foram descobertas na Serra d'Aire e a sua conservação exige o fecho de uma empresa de extracção de pedras. Os especialistas atestam a importância excepcional do achado. Falta saber quem vai indemnizar os concessionários da pedreira.
O Museu Nacional de História Natural vai requerer a classificação como monumento natural da jazida com pegadas de dinossauros recentemente descoberta numa pedreira situada na Serra d'Aire, junto à localidade de Bairro, a uma dezena de quilómetros de Fátima, na fronteira entre os concelhos de Torres Novas e Ourém. O achado foi protagonizado por membros da Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia e é considerado por Galopim de Carvalho, director daquele museu da Universidade de Lisboa, como de «excepcional valor científico, pedagógico e cultural». Nos termos de um relatório concluído já este mês por aquele cientista e pela geóloga Vanda Santos, a preservação deste geomonumento implica o encerramento definitivo da chamada Pedreira do Galinha, uma unidade industrial que emprega mais de duas dezenas de pessoas e que ali investiu muitas centenas de milhares de contos. O problema está em saber quem (e como) é que vai indemnizar os proprietários da empresa.
Vista do alto do morro, a jazida constitui um impressionante e espectacular testemunho da história da Terra e da vida no planeta. Uma gigantesca laje de pedra, praticamente plana, mas fortemente inclinada, estende-se em direcção à zona de exploração da pedreira, um talude com mais de 30 metros de altura onde os rebentamentos e os monstros mecânicos que tomaram o lugar dos dinossauros desprendem a rocha que diariamente se transforma em muitas toneladas de brita.
No seu conjunto, a laje desdobra-se como um imenso anfiteatro de 300 por 350 metros, o que soma cerca de 7 hectares e meio de superfície rochosa, onde avultam centenas de enormes pegadas, muitas das quais se organizam em trilhos que chegam a ter mais de cem metros de comprimento. Vistas ao perto, as marcas impressas na pedra chegam a ter meio metro de diâmetro, por cinco a dez centímetros de profundidade, e são identificadas pelos especialistas como pertencendo a um grupo de dinossauros quadrúpedes e herbívoros, conhecidos como saurópedes.
De acordo com um relatório preliminar subscrito por Galopim de Carvalho e Vanda Santos, os animais em causa terão por ali passado há 175 a 180 milhões de anos, o que faz com que os seus vestígios sejam considerados como «os mais antigos da Península Ibérica e, muito provavelmente da Europa».
Quem vai pagar o fecho da pedreira?
Tornada pública no passado dia 12 de Julho, a descoberta da jazida da Pedreira do Galinha levantou de imediato o problema da sua conservação e musealização. Sabendo-se desde logo, pelas primeiras observações de Vanda Santos e Galopim de Carvalho, que se estava perante um achado de importância equivalente ao das pistas de Carenque, foi possível obter a anuência do empresário Rui Galinha para suspender a exploração da pedreira no sector a preservar.
Agora que o estudo prévio está concluído, os responsáveis do Museu Nacional de História Natural não têm dúvidas em afirmar que «não se vê outra alternativa» à destruição total e irreversível daquele monumento natural, «que não seja interromper ali, definitivamente, os trabalhos de extracção da pedra».
O problema, sublinha o empresário Rui Galinha, é que a laje das pegadas constitui o verdadeiro coração da exploração. «Isto é como uma melancia, no centro é que está o melhor e o nosso plano de lavra apontava para que iniciássemos agora o desmantelamento desta laje, prevendo-se que a escavação descesse 100 metros abaixo dela.»
Daí que a preservação das marcas dos dinossauros implique necessariamente, segundo o proprietário, a cessação pura e simples de toda a actividade da pedreira. Isto porque as alternativas existentes para a extracção da pedra se encontram a uma tal distância das suas instalações de transformação que «a empresa perderia toda a rentabilidade».
E aqui é que as coisas se complicam. Embora os terrenos da pedreira pertençam quase todos às câmaras de Ourém e Torres Novas, a família Galinha detém a sua concessão há mais de três décadas e investiu ali muitas centenas de milhares de contos. E bem lhe podem falar nas reais potencialidades turísticas das pegadas, depois de tratadas e integradas num projecto museológico de nível internacional, que a proximidade de Fátima e das grutas de Santo António valorizaria ainda mais. «Isto nunca poderá ter a rentabilidade que tem agora porque esta é a maior pedreira da zona centro, está toda automatizada e respeita todas as normas ambientais», explica Rui Galinha.
A questão é portanto de cifrões. Quanto é que têm de lhe dar para fechar a pedreira? O empresário contorna a questão. Volta aos investimentos feitos, à vida que o pai consagrou à empresa até falecer, já este ano, aos postos de trabalho e conclui: «Será preciso muito dinheiro. Ainda estamos a estudar o assunto».
Por agora acredita que se encontre uma solução satisfatória para todas as partes e diz que continuará a dar a melhor colaboração aos trabalhos científicos que ali estão a ser desenvolvidos. «Fui o primeiro a disponibilizar-me para suspender a laboração nesta zona e são as minhas máquinas que andam a limpar a laje para eles estudarem.» Galopim de Carvalho confirma estas afirmações e escreve no seu relatório que deseja «enaltecer a compreensão e a invulgar consciência cívica sempre manifestada pelo sr. Rui Galinha (...)»
No fim de Setembro, porém, a questão vai-se tornar mais concreta. O empresário sublinha que tem grandes contratos de fornecimento de brita que não podem esperar e que, nessa altura, tem de saber que indemnização é que lhe propõem. «Se isto correr bem connosco ninguém destruirá nada nas outras pedreiras em que se encontrem coisas. Mas se correr mal nunca mais ninguém guardará nada», afirma, fazendo-se eco dos contactos que tem tido com outros empresários do sector.
Particularmente interessadas na conservação e musealização das pegadas, as câmaras de Torres Novas e Ourém, o Parque Natural das Serras d'Aire e Candeeiros e o Museu Nacional de História Natural estão em contacto com o Ministério da Indústria, responsável pelo licenciamento da pedreira, e desenvolvem diversos esforços para sair do impasse. Resta saber se o Estado estará na disposição de repetir o que fez em Carenque, onde acabou por desembolsar 2,4 milhões de contos para preservar as pistas de pegadas ali existentes.
Visitas aos sábados e domingos
Mas enquanto se espera o desenlace deste processo, a aldeia do Bairro (Ourém) já está a ser procurada por milhares de visitantes. «Isto ao fim-de-semana é quase uma procissão. Até já cá veio o Guterres», conta um cliente do restaurante da terra. Durante a semana, devido à laboração da pedreira e por razões de segurança, as vistas são proibidas pela empresa, mas aos sábados e domingos o acesso à laje é livre.
E quem lá chega, sobretudo se observar do alto, não sai ludibriado. Os trilhos de pegadas distinguem-se perfeitamente, alguns são em zig-zag e um deles atinge os 120 metros de extensão.
De acordo com Galopim de Carvalho e Vanda Santos, o número de marcas existentes na zona da laje que já foi limpa ultrapassa as duas centenas, identificando-se claramente quinze trilhos de dinossauros de diferentes dimensões e que seguiam em vários rumos. O seu estado de conservação é considerado bom e «às vezes explêndido», permitindo observar aspectos morfológicos das extremidades dos membros e fornecendo um «importantíssimo contributo» para «uma questão ainda em aberto sobre o modo de locomoção destes animais» Pelas medições já efectuadas o maior espécime que por ali passou tinha um comprimento total de trinta metros.
Um outro aspecto em que as pegadas do Bairro se podem revelar especialmente importantes diz respeito ao conteúdo fóssil da camada sedimentar onde elas foram impressas. O seu estudo está a ser feito pela prof. Cristina Azeredo, da Faculdade de Ciências de Lisboa, e poderá levar ao conhecimento da flora e da microfauna da paisagem local. «Devido à raridade dos sítios com pegadas de saurópedes desta idade, esta jazida também por isto se reveste de particular interesse para o conhecimento dos antigos habitats do planeta», salienta Galopim de Carvalho.
Perante os estudos efectuados e as conclusões já retiradas , o Museu da História Natural disponibilizou-se para dar toda a sua colaboração científica ao estudo e recuperação da jazida, propondo-se também a «assumir a orientação pedagógica do monumento, logo que convenientemente musealizado e aberto à comunidade».
Para corroborar «o enorme e excepcional valor científico» do achado, o museu convidou dois especialistas mundiais, os profs. Joaquín Moratalla, da Universidade Autónoma de Madrid, e Martin Lockley, da Universidade de Denver (EUA), a visitarem o local, coisa que acontecerá durante os meses de Setembro e Outubro. Na posse dos relatórios destes cientistas, o museu proporá então a classificação da jazida como monumento natural, ao abrigo da legislação em vigor.
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