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<DOCNO>PUBLICO-19940828-074</DOCNO>
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<DATE>19940828</DATE>
<CATEGORY>Nacional</CATEGORY>
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Xanana Gusmão ao PÚBLICO a partir da prisão de Cipinang
«Timor livre depende de Indonésia democrática»
Jill Jolliffe
Xanana Gusmão mostra-se céptico quanto a eventuais negociações entre a resistência e o Governo indonésio. A razão deste cepticismo reside na mais incontornável das questões em relação a Timor: «Um acordo negociado sobre Timor-Leste é inseparável do processo de democratização na Indonésia.» Numa entrevista exclusiva enviada clandestinamente da prisão de Cipinang, em Jacarta, onde se encontra encarcerado, mostra-se com pouca fé nos acordos feitos para possíveis negociações directas entre a resistência e as Forças Armadas indonésias.
PÚBLICO -- Pensa que Suharto está a preparar alguma forma mais ou menos honrosa de passar à história em relação a Timor?
XANANA GUSMÃO -- Se realmente Suharto prepara o terreno para passar à história, de forma honrosa, não pode separar estas duas coisas: democracia na Indonésia e solução do caso de Timor-Leste. Aparentemente calmo, o regime não será capaz de sustentar as contradições internas, as quais tornam as mudanças imprevisíveis apenas no tempo... o nosso último consolo!
P. -- O que tem a dizer sobre a notícia que alude à preparação de uma declaração para a cimeira do APEC, a organização das nações da Ásia e do Pacífico, a realizar em Novembro, em Jacarta?
R. -- Diz-se que Suharto pretende fazer uma surpresa na próxima cimeira do APEC. Será isto um sinal de `perestroika'? Com o recente banimento de três revistas e com as ameaças de encerramento sobre jornais e outras revistas, é demasiado prematuro pensar-se em `perestroika' para Novembro!
Diálogo só na ONU
P. -- A resistência poderia negociar um cessar-fogo com a Indonésia?
R. -- Penso que o acordo de cessar-fogo celebrado em 1983 e negociado pessoalmente por mim com o general Gatot Purwanto tenha sido autorizado ao mais alto nível, através do então ministro da Defesa Yusuf, mas, com essa experiência e com ofertas de conversações mais recentes que fiz ao Exército indonésio, julgo que os líderes militares não negociarão de boa fé. Como tal, é uma experiência que não desejo repetir. Para os generais indonésios, conversações significam apenas que a outra parte, nós neste caso, temos a obrigação de aceitar todos os pontos de vista deles. Por outro lado, o processo de diálogo está a decorrer no quadro das Nações Unidas e é ali que qualquer contacto, neste sentido, deve ter lugar. Contudo, estamos receptíveis a um encontro com a ABRI...
P. -- Aceitaria prazos mínimos e máximos caso se efectuassem conversações directas com os militares indonésios?
R. -- Eu não chamaria a isso negociar, diria que um encontro desse tipo seria apenas uma troca de impressões... porque, em minha opinião, é Ali Alatas quem deve conduzir esse processo, o processo de negociações na ONU, e não a ABRI.
Referendo imediato
P. -- O que diria a Butros-Ghali se pudesse falar com ele?
R. -- A melhor solução é um referendo imediato. Mas, porque estou plenamente consciente dos condicionalismos que intervêm no problema de Timor-Leste, eu diria ao secretário-geral que o plano de paz do CNRM [Conselho Nacional da Resistência Maubere] é o instrumento que oferece todas as garantias à Indonésia para uma solução justa e aceitável pela comunidade internacional. Eu apelaria também para apressar este processo de diálogo, a decorrer sob os seus auspícios, em ordem a criar-se umas condições políticas básicas no território que pudessem permitir mecanismos conducentes a parar imediatamente com a sistemática repressão do povo timorense.
P. -- Está de acordo com a maneira como Portugal tem conduzido as negociações sobre Timor com a Indonésia?
R. -- Por compreender que o problema de Timor-Leste é um processo complicado, já que está dependente, está subordinado a muitos outros factores, Portugal está-se a sair bem e espero que continue.
P. -- Interesses timorenses são sinónimo de interesses portugueses?
R. -- Bem, não no sentido exacto do termo «sinónimo». Apenas existe uma base, aliás constitucional, que permite interpretar que os interesses timorenses fundamentais são interesses de Portugal.
Caixa -- Alcatraz «made in» Indonésia
A prisão onde Gusmão partilha uma cela com outro preso político, do movimento de libertação em Aceh, Sumatra, é uma enorme estrutura, semelhante a Alcatraz, cobrindo mais de um hectar com vista para uma rua com muito movimento e para a linha de comboio, no leste de Jacarta. É protegida por um muro de cimento de três metros de altura com arame electrificado, em frente ao qual existe uma vedação mais baixa. Guardas armados patrulham a área entre estas duas barreiras em intervalos regulares, e uma torre de controlo de tráfico ferroviário do lado oposto da prisão é também utilizada como posto de vigia pelos guardas prisionais.
O edifício-fortaleza parece impenetrável, mas na realidade Xanana Gusmão coordena perfeitamente os contactos com o exterior, usando-os para declarações públicas como esta.
No início deste ano, foi-lhe restituído o cargo de supremo comandante da resistência armada, após um período de suspensão que os seus apoiantes consideraram prudente por ele estar preso. Quando se lhe perguntou se hoje ele comandava a luta a partir da prisão, respondeu ambiguamente: «Bem, você está a ver que eu até posso falar consigo agora, não é? E, se você acredita que eu possa comandar a luta, nesta situação, só tenho que agradecer-lhe a confiança... na capacidade da nossa luta.»
Na entrevista, Xanana falou sobre muitos assuntos políticos e pessoais, sobre os seus sentimentos durante o recente encontro com a família, a qual não via há 19 anos, sobre as suas actividades na prisão e como aguenta a vida ali, a sua amizade com John Edwards, um australiano preso por fraude. E respondeu num tom crítico à pergunta sobre as suas respostas emotivas no reencontro com a sua mulher, Emília:
«Eu talvez não tenha nenhuma razão para ter sentimentos ou, numa outra forma de expressão, talvez tenha razão para não ter sentimentos... a guerra influenciou muito... neste aspecto... às vezes sou duro, às vezes frágil, às vezes fácil, muitas vezes difícil... momentos em que as veias tentam pulsar, passo entretanto todo o tempo insensível às dores, à noite, à morte talvez...»
Queixou-se da «monotonia inconsolável» da prisão, à qual não se consegue adaptar, tanto no pensamento como nas relações com os outros prisioneiros, dizendo que prefere a solidão, período em que escreve, pinta ou estuda. E, lembrando-se da menção às montanhas de Timor-Leste no pedido que lhe foi feito para esta entrevista, disse sentir saudades: «Falou de montanhas, o que me fez compreender que acabava de vir de lá, e isso provocou-me... saudades.» J.J.
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