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<DOCNO>PUBLICO-19940830-059</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940830-059</DOCID>
<DATE>19940830</DATE>
<CATEGORY>Diversos</CATEGORY>
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O Dia P
Joaquim Pina Moura
1 de Setembro: depois de amanhã regressam as portagens à Ponte 25 de Abril. E regressa a tabela de preços (embora sujeita a um complexo e demagógico sistema de descontos) fixada na portaria governamental que motivou a «revolta dos utentes», em 24 de Junho.
A reincidência na fatídica portaria, assinada por Ferreira do Amaral e agora ratificada em Conselho de Ministros, gera, por si só, uma enorme expectativa.
Irão os utentes aceitar agora o que, justamente, rejeitaram com tanta veemência em Junho?
A avaliar pelos pressupostos que está a fazer, parece que nem o Governo acredita que tal vá acontecer.
Na verdade, não há melhor prova de insegurança e fraqueza de um governo em relação a uma medida política que criou do que a necessidade, que ele próprio sente, de montar um cenário de «guerra» para, supostamente, garantir a sua aplicação.
Dir-se-ia que o Governo se prepara para enfrentar uma invasão e não um vulgar fluxo de tráfico automóvel. A enorme concentração de forças policiais de choque e de meios blindados que o MAI está a fazer na zona de portagem evidencia uma indisfarçável má consciência.
É que -- ao contrário do que diz o ministro Ferreira do Amaral, com aquele ar de estudada autoflagelação -- o Governo, na prática, não reconhece o erro substancial que cometeu.
A única e real prova de boa-fé autocrítica que o Governo podia ter dado era a revogação da portaria com os novos preços; a manutenção das portagens nos valores anteriores e, quando muito, a sua eventual actualização tendo em conta os custos de manutenção e a taxa de inflação. Foi, aliás, este o «ramo de oliveira» que, a tempo, lhe foi estendido pela Junta Metropolitana de Lisboa, numa posição significativamente aprovada por unanimidade pelas câmaras da AML de maioria PCP, PS e PSD.
Em vez de tomar a sério esta proposta e de lhe responder com seriedade, que fez o Governo? Demagogia e «spots» publicitários.
A verdade é que, quando analisado em detalhe, o sistema de descontos criado pelo governo revela-se um novo logro. Nada melhor que apreciá-lo em concreto.
Para os casos mais comuns, isto é, para quem atravessa a ponte diariamente para vir trabalhar a Lisboa (22 vezes/mês), qualquer dos sistemas de desconto disponíveis -- descontos de 50% a partir da 13ª passagem; aquisição antecipada de módulos; sistema de cartão magnético -- conduz a um gasto respectivamente de 2625; 2970; 2600. Em qualquer caso, valores significativamente superiores aos 2200 que pagavam até ao início de Junho, com acréscimo variando entre 20% e 30%.
Para outro dos sectores que mais intensivamente utilizam a ponte, o dos camionistas, que fazem um número médio de travessias de 90 vezes/mês, com o novo sistema de descontos os seus custos sofrem um acréscimo de 5200 mês (++15%).
É certo que os aumentos baixaram, com a utilização dos chamados «descontos de quantidade» criados como resposta ao boicote de fins de Junho. Mas, em termos substantivos, a sua natureza aritmética mantém-se, já que não têm qualquer relação nem com os custos de manutenção da ponte nem tão-pouco com a taxa de inflação verificada em 1993 e previsível para o ano corrente. Assim se mantém a arbitrariedade nas opções para os transportes e vias de comunicação na AML, as chamadas «pontes para o futuro» da propaganda do MOPT, quando insiste em manter decisões cuja fundamentação técnica e política tem sido posta em causa por variados e qualificados pareceres e opiniões de todos os quadrantes.
Esta regra de arbitrariedade não é, porém, fruto do acaso nem tão-pouco uma componente idiossincrática do ministro Ferreira do Amaral. É uma característica insuperável da forma de estar na política dos governos de Cavaco Silva.
Para ele o «verdadeiro político» é aquele que decide primeiro e só «dialoga» sob pressão. É aquele que planeia e executa obras, não à medida das necessidades, mas ao sabor e ao ritmo dos ciclos eleitorais. É aquele que, quando é forçado a alterar decisões, tenta fazê-lo só na medida em que possa vir a dizer, mais tarde, que mudou aquilo que quis e não aquilo que a justiça e o bom senso mandavam que se mudasse.
É mais do que evidente que, a propósito das portagens, se joga, do ponto de vista do Governo, algo mais do que um aumento ou mesmo uma política de transportes para a AML.
A um ano das eleições legislativas, o Governo de Cavaco Silva tem uma necessidade vital de reafirmar a sua fragilizada autoridade política. Ele faz lembrar um daqueles treinadores de futebol que, depois de uma penosa série de maus resultados e derrotas (autárquicas, europeias, recessão e desemprego, perda de autoridade e contestação em todos os sectores sociais), precisa de uma pequena vitória para animar os «sócios» e levantar, temporariamente, a moral a equipa. Caso contrário, embora com contrato até ao fim da época, terá cada vez mais adeptos a desconfiar da derrota no campeonato. O drama de Cavaco Silva é que ele vai jogar esta partida condicionado por uma táctica politicamente defensiva. Mesmo que ganhe, já não voltará a ser como dantes no relacionamento dos cidadãos com o Governo. Se perder, ficar-se-á a saber que, no próximo ano, os ministros se transformarão, enquanto durar este Governo, em simples notários onde se irão registar, de formas mais ou menos contundentes, todos os protestos e aspirações de uma sociedade de expectativas frustradas por dez anos de «cavaquismo».
E para quê votar, então, num partido que já «nem sequer é capaz de mandar» -- perguntarão muitos dos mais fiéis e tradicionais eleitores do PSD?
Definitivamente, o 1 de Setembro não será, em qualquer caso, o Dia D do Governo -- símbolo de vitória e de ofensiva.
Esperando os utentes da ponte com polícias e blindados ligeiros, com mais propriedade se lhe poderia chamar o Dia P -- o dia das portagens na ponte, símbolo de Cavaco sitiado.
É mais do que evidente que, a propósito das portagens, se joga, do ponto de vista do Governo, algo mais do que um aumento ou mesmo uma política de transportes para a AML. A um ano das eleições legislativas, o Governo de Cavaco Silva tem uma necessidade vital de reafirmar a sua fragilizada autoridade política.
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