<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19940919-088</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19940919-088</DOCID>
<DATE>19940919</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<TEXT>
O universalismo plural da cultura
A realização em Lisboa do primeiro encontro promovido pelo Parlamento Internacional de Escritores constitui um importante acontecimento que Lisboa 94 ajudou a concretizar. Sublinho, porém, que não existe nada de menos oficial do que este encontro de escritores e intelectuais de todo o mundo. Afirmando como objectivo fundamental a defesa da autonomia dos criadores face a todos os poderes e manipulações, a reunião situa-se à margem de qualquer programa.
Os escritores impõem-se hoje como figuras líderes da sociedade. Apesar da desconfiança platónica que os condenaria a semear «jardins de Adónis» ou a «escrever na água», nada sobreleva a importância da palavra escrita, na sua precariedade ameaçada, como veículo da cultura reflexiva e crítica que é o nosso mais precioso património. Perdidas as certezas nas grandes metanarrativas, num mundo de pensamento débil, ganharam maior relevo os narradores que nos interpelam e falam da existência sob a forma de conscientes jogos da escrita. É nesse sentido que pôde afirmar-se, com alguma hipérbole, «...que o romance, o filme, têm vindo progressivamente a substituir o sermão e o tratado como instrumentos principais do progresso e da evolução moral» (Rorty). Numa perspectiva habermasiana, podemos pôr reservas a esta afirmação da superioridade das narrativas sobre a teoria, que recusa qualquer ponto racional e exterior em que se pudesse fundar o pensamento crítico e que procura defender-se com a impossibilidade de qualquer metalinguagem, estabelecedora de normas, que nos permitisse sair dos vários vocabulários locais que usamos. Não creio, porém, que se possa confundir essa atitude acrítica com a posição dos organizadores do Encontro de Lisboa, ao insistirem na defesa dos particularismos culturais contra o que designam como «o imperialismo do universal» ou a lógica «das hegemonias culturais» (Breyten Breytenbach), ou ainda, «o universal decretado em benefício daqueles que sempre impõem as normas» (Pascale Casanova). O que está aqui em causa é a defesa do direito do escritor «viver na sua terra e na sua língua», com todos os meios de protecção da sua liberdade criadora. Livre de todos os poderes persecutórios ou fiscalizadores, incluindo os exercidos pelo «complexo mediático-intelectual».
Não creio que se possa ver neste posicionamento mais do que a justa recusa de um universal abstracto e nivelador, que procurasse impor normas ou regras a partir de um centro com pretensões de hegemonia. A verdade é que a protecção das condições da criação autónoma implica que não se possa ignorar a realidade nacional, linguística e cultural onde o homem primordialmente se socializa e que constitui uma matriz essencial do exercício dos seus direitos. Mas se não podemos abstrair do que somos, não podemos também abandonar a ideia do universal. A única atitude defensável é a de um universalismo plural que melhor salvaguarde a comunicação sem dominação e os direitos das diferentes expressões culturais. Trata-se de uma perspectiva bem diferente da adoptada por um internacionalismo superficial e cosmopolita ou da universalidade niveladora da ordem mercantil imposta pela globalização dos mercados.
A procura de acções concretas em detrimento das belas declarações apaziguadoras da má consciência, constitui mesmo um dos pontos programáticos essenciais do Encontro de Lisboa. É também por isso que vejo no projecto do Parlamento Internacional de Escritores, apesar das qualificações e prevenções de que se faz eco neste ponto (ou talvez por causa delas...), uma defesa dos verdadeiros valores universais tão próprios da cultura do nosso continente. Não existe, seguramente, melhor justificação para termos associado a esta iniciativa Lisboa como Capital Europeia da Cultura.
Vítor Constâncio, presidente da Sociedade Lisboa 94
</TEXT>
</DOC>