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<DOCNO>PUBLICO-19941003-064</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19941003-064</DOCID>
<DATE>19941003</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
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O dilema americano
João Carlos Espada
Destaque
Embora o Ocidente não deva abdicar do direito de intervir militarmente, sempre que considere que os interesses das democracias ocidentais estão ameaçados, esse «direito» não deve ser linearmente associado com o propósito de estabelecer democracias além-fronteiras. A democracia é um produto delicado que se deteriora quando é sujeito a exportação.
Dia após dia, aumentam os motivos para pensar que a intervenção norte-americana no Haiti pode acabar por criar mais problemas do que aqueles que terá ajudado a resolver. Em si mesma, a própria ideia de uma intervenção militar já deixava muitas dúvidas. A forma final que a intervenção acabou por assumir -- uma espécie de «invasão consentida» -- não resolveu essas dúvidas, embora talvez as tenha deixado em suspenso. Mas os acontecimentos que se seguiram à «invasão» voltaram a reatá-las.
A ideia de que os soldados americanos intervieram no Haiti para continuarem a assistir à violência sectária local -- que tinha sido citada, pelo presidente Clinton, como um dos motivos para a intervenção norte-americana -- é dificilmente aceitável para a opinião pública. Inevitavelmente, as pessoas interrogam-se sobre os reais propósitos de todo o empreendimento.
O sentimento de desconforto começa então a envolver a própria intervenção do ex-presidente Carter. Inicialmente aplaudida por diferentes quadrantes de opinião, as virtudes negociais de Carter deixam agora a desejar. O acordo a que chegou com o general Round Cedras lembra um acordo de cavalheiros... com o único senão de ter sido selado entre um cavalheiro e um déspota de décima categoria.
Os adversários de Bill Clinton e Jimmy Carter não deixaram escapar esta oportunidade. O «American Enterprise Institute«, citado pelo «The Economist» de Londres, apressou-se a recordar que Carter sempre se deixara impressionar por ditadores: Kim Il Sung, Tito e Ceausescu encabeçam a lista. Terá o fervor humanitário do ex-presidente Carter contribuído uma vez mais para embaraçar a América, em vez de simplesmente ter poupado vidas inocentes?
A pergunta faz sentido, mas as alternativas não são claras. Deveriam os Estados Unidos ter intervido para repôr a democracia, como inicialmente tinham anunciado? Ou deveriam simplesmente ter-se abstido de qualquer intervenção? Finalmente, não deveria o presidente Clinton ter seguido a experiência de Reagan no Panamá, em 1989, quando uma súbita invasão americana depôs o corrupto Noriega e repôs a ordem em poucos dias?
No âmago deste dilema americano estão duas outras perguntas que são realmente básicas: deve a América intervir para repôr a ordem fora das suas fronteiras? Em caso afirmativo, deve essa intervenção visar a implantação de democracias?
O primeiro problema foi habilmente torneado pelo presidente Clinton, quando obteve a aprovação das Nações Unidas. A partir desse momento, a iniciativa norte-americana passou a ter cobertura da lei internacional -- embora não do Congresso norte-americano, como os críticos do presidente gostam de sublinhar.
Mas o segundo problema continua por resolver: devem os Estados-Unidos, com o suporte da ONU, transformar-se numa espécie de gendarme da democracia mundial? Há uns anos atrás, quando o colapso do comunismo no Leste europeu lançara uma onda de entusiasmo democrático, a resposta talvez tendesse a ser positiva. Hoje, depois da tragédia da ex-Jugoslávia e do regresso ao poder dos ex-comunistas em várias repúblicas da antiga União Soviética, a opinião pública vacila.
Há razões para essa hesitação. Embora o Ocidente não deva abdicar do direito de intervir militarmente, sempre que considere que os interesses das democracias ocidentais estão ameaçados, esse «direito» não deve ser linearmente associado com o propósito de estabelecer democracias além-fronteiras. A democracia é um produto delicado que se deteriora quando é sujeito a exportação. A ideia democrática pode e deve ser exportada através do planeta. Mas a realidade democrática só cresce onde o solo já foi longamente cultivado -- e, mesmo aí, nunca é garantido que permaneça.
O Haiti é seguramente um caso em que a democracia tem perspectivas duvidosas. Nos últimos duzentos anos, desde que os escravos negros declararam a independência da colónia francesa, o país tem vivido em sucessiva turbulência (para não lhe chamar pior), quando não sob a bota cruel da ditadura. Isso não prova, é certo, que a democracia seja impossível. Mas parece vivamente de desaconselhar que o restabelecimento da democracia seja o tópico principal de uma intervenção norte-americana.
Pior do que isso, todavia, parece ter sido a ideia peregrina de negociar com os ditadores um acordo de cavalheiros que, inclusivamente, lhes concede o direito de residência após a intervenção. Se a paz civil já seria difícil de estabelecer com os ditadores no exílio, custa a acreditar que ela seja viável com eles no terreno.
Façamos votos, no entanto, para que os factos venham a desmentir o cepticismo crescente da opinião pública. A intervenção norte-americana ainda pode tornear os obstáculos e levar algum alívio às populações inocentes do Haiti. Tudo indica, no entanto, que o presidente Clinton vai ter de mudar de rumo.
A simpatia e o espírito de compromisso não são as únicas virtudes ao cimo da terra. Quando praticadas em excesso, ou indiscriminadamente, podem transformar-se em defeitos. Na vida política, em particular, o desejo excessivo de aprovação e aplauso pode tornar-se fatal
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