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<DOCNO>PUBLICO-19941005-112</DOCNO>
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<DATE>19941005</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>MRMS</AUTHOR>
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LUÍSA FERREIRA (foto)
Juntamente com Freud, a quem se opôs, Melanie Klein (1882-1960) foi uma das principais psicanalistas de início de século. Ficaram célebres as suas disputas com Anne Freud e com a sua própria filha, Mellitta Schimdeberg. Não é exagero dizer que, se Freud foi o pai, Klein terá sido a mãe da psicanálise. Austríaca de nascimento, aplicou este método a crianças com dois ou três anos e usou o jogo e a brincadeira como meio de diagnóstico. A peça «A Senhora Klein» -- cuja estreia está prevista para a próxima quinta-feira, no Teatro da Comuna, em Lisboa -- quase esquece a médica, para se dedicar ao quotidiano de uma divorciada, mãe de dois filhos.
Baseada em factos reais -- apoiado na autobiografia que Klein escreveu, com ligeiras ficções pelo meio --, a peça é quase um «thriller» ou filme negro, cujas acções são desencadeadas pela morte de Hans, filho mais novo da senhora Klein, num acidente de alpinismo. Morte que Mellitta, a outra filha, julga ser um suicídio e do qual culpa a mãe.
Nicholas Wright, o autor, nunca foi encenado em Portugal. João Mota descobriu este dramaturgo sul-africano que trabalha regularmente no Royal National Theatre, em Londres, através de uma colecção francesa de livros de psiquiatria. «Gostei dele por ser um texto bem carpinteirado» -- leia-se, bem escrito --, «o que começa a ser raro», explica o encenador. João Mota, embora estivesse em França quando «A Senhora Klein» aí foi representada, preferiu não ir espreitar o espectáculo.
Em cena estão três mulheres, três psicanalistas. Além da Sra. Klein, papel interpretado pela actriz Cucha Carvalheiro -- que regressa à Comuna, depois de um passagem pela revista («Lisboa, Meu Amor», no ABC) e pela Companhia Teatral do Chiado --, surgem em cena Paula Heimann -- uma psicanalista judia, 34 anos, fugida da Alemanha e do regime nazi --, papel que cabe a Elsa Galvão, e Mellitta, em desempenho de Natália Luísa.
Apanhadas no divã
1934, Londres. Mellitta casara anos antes -- um matrimónio que a mãe não aprova -- com Walter Schimdeberg, catorze anos mais velha que ela, e tal como a mãe integra a Sociedade Britânica de Psicanálise. Depois de terem vivido na casa da Sra. Klein, o casal alugou o seu próprio apartamento, embora continuem a partilhar o automóvel -- um Sunbeam, em segunda mão, no qual dão grandes passeios pelo campo.
Melanie não reconhece a filha como a colega que é, tratando-a como um apêndice. Um caso típico de complexo de Édipo? Mellitta, que academicamente não concorda com a Sra. Klein, depende dela quase neuroticamente. A relação das duas está à beira da ruptura e precipita-se com a morte de Hans e com a chegada de Paula. A psicanalista não reage à perda do filho, oscilando entre uma calma pouco natural e a auto-análise, entre a tragédia a metro e o desespero contido, detectável apenas porque deixou de sonhar.
«Recebi uma chamada a dizer que Hans tinha sofrido um acidente, não me lembro se foi fatal. Tomei nota em qualquer lado. Vou procurar e já lhe digo», diz para Paula no início das hostilidades. Antes de começar a ensaiar, Natália Luísa bem tinha avisado: «Prontos para momentos depressivos.» Não estava a mentir. «A Senhora Klein» oscila muito entre a tensão provocada pelo estado quase de insanidade mental reinante naquela casa e a gargalhada contida perante histórias, como a do homem que passou férias dentro de uma nuvem. Ambas regadas com doses suficientes de crueldade.
João Mota não concorda com esta leitura. «Não é uma peça depressiva nem cruel, mas um espectáculo que nos obriga a ser mais transparentes no relacionamento com os outros», comenta, sugerindo que as três mulheres, não obstante psicanalistas, são peritas a camuflar sentimentos. «O homem não se assume, esconde-se, tapa-se e vive nas aparências.» O grande problema da Sra. Klein é não gostar o suficiente de si 3para poder gostar dos outros.
«Ela não é má, teve foi problemas que nunca resolveu com a mãe», diz o encenador, que prefere uma versão mais optimista. «É uma peça sobre o objecto amado. Sobre os erros que cometemos. Sobre as manipulações, por vezes inconscientes, que fazemos às pessoas de quem gostamos.»
João Mota defende a peça porque ela acaba por brincar com todos esses sentimentos, puxando pela memória do espectador que se sente ele próprio psicanalisado. Como se as cadeiras de repente se tivessem transformado em divãs e as três senhoras em palco provocassem recordações mais ou menos dolorosas. Igual efeito ocorreu nos ensaios, vários vezes interrompidos. «Demos por nós a falar das nossas famílias -- o que é bom, porque as pessoas estão a perder a memória e, quando isso acontece, não vale a pena viver.»
Cruel só o cenário, em especial as cores escolhidas pelo cenógrafo Lucien Donnat, que durante décadas trabalhou com Amélia Rey Colaço e que, entre muitos outros, assinou os cenários de «A Visita da Velha Senhora». Em vez do realístico tom da madeira, o chão é roxo, «a cor da Madame Klein», segundo Donnat, e as paredes multicores, como se tivessem sido pintadas por uma criança a quem acabaram de dar uma caixa de lápis de cor.
Subsídio da SEC
Para o início do ano, além do regresso de Carlos Paulo à Comuna, João Mota promete fazer uma comédia, de Feydeau, e a seguir Yvette Centeno. Tudo depende, evidentemente, do subsídio atribuído pela Secretaria de Estado da Cultura, que este ano já anunciou não pretender financiar alguns grupos de teatro de Lisboa. «Não acredito que isso aconteça», diz, reconhecendo que ficará «muito chocado» se assim for.
«Em vez de concorrermos, devíamos era ser convidados. Peter Brook, Andrej Serban, Peter Stein, são convidados anualmente pelos governos dos seus países para trabalhar. Porque é que um João Lourenço, um Luís Miguel Cintra, uma Céu Guerra ou um Joaquim Benite, pessoas que já não têm nada a provar, têm de se sujeitar a um concurso? O secretário de Estado deveria era mostrar que acredita nos criadores e convidar-nos e fazer concurso para as novas companhias com mais de vinte anos de currículo», desabafa.
Continua num tom entre o desiludido e o exaltado: «O teatro de descentralização não pode ser implantado obrigando os artistas a saírem dos seus habituais locais de trabalho. Seria um erro enviarem a Comuna ou a Cornucópia para Leiria, embora não tenha nada contra Leiria. Também não podemos mandar os mais novos, como a Inês Câmara Pestana ou a Mónica Calle, para Castelo Branco, só porque lá não existe um grupo de teatro. Se eles quiserem ir, se lhes apetecer, eles concorrem a essas cidades.»
João Mota aponta como alternativa a itinerância. Cada companhia deveria ser obrigada a fazer digressões de um mês ou mês e meio pelo país. «Assim, cada cidade tinha teatro uma ou duas vezes por mês.» E se a SEC não subsidiar a Comuna? «Não acredito que nos tirem o subsídio, mas nenhuma companhia sobrevive sem apoio estatal.»
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