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<DOCNO>PUBLICO-19941024-043</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19941024-043</DOCID>
<DATE>19941024</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>AG</AUTHOR>
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Principais aliados do Presidente Aristide falam ao PÚBLICO
Ti Leglise E Lavalas, o mesmo combate
Do nosso enviado Adelino Gomes, em Port-au-Prince
Ti Leglise e Lavalas. Um emana da ordem espiritual, outro da temporal. Mas na hora das opções políticas é de ambos os movimentos que se alimenta a fortíssima torrente popular de apoio a Jean-Bertrand Aristide. Por causa de Duvalier, e mais tarde de Aristide, entrou a TKL (sigla em crioulo das comunidades eclesiais de base, a igreja popular) em conflito com os bispos haitianos.
Fenómeno tipicamente latino-americano, a Ti Leglise haitiana chegou a ter registados 100 mil «militantes», que a violência da ditadura militar levou à dispersão, à clandestinidade, ao exílio, às prisões e em alguns casos -- de que o padre monfortinho Jean Marie Vincent, colaborador próximo de Aristide foi o último exemplo, em 28 de Agosto passado -- à morte.
Quanto ao Lavalas, o simples pronunciar do seu nome provoca reacções excessivas nos dois campos, desiguais em número, em que se divide a sociedade haitiana. Para os camponeses, os habitantes dos bairros de lata, para muitos padres e religiosos, «lavalas» é sinónimo do povo em marcha para uma sociedade mais justa; para Cédras e os seus aliados das classes possidentes significa a populaça no poder, no que a expressão tem de mais pejorativo e preocupante.
O PÚBLICO falou com os mais destacados líderes de cada um destes movimentos: o padre Yves Voltaire, 38 anos, da TKL, e o professor universitário Gérard Pierre-Charles, 59 anos, coordenador da Organização Popular Lavalas (OPL).
PÚBLICO -- O Presidente Aristide é a figura dominante da política haitiana, mas os partidos que se reclamam do seu programa, e em particular o OPL, são minoritários no parlamento. Como é isso possível?
GÉRARD PIERRE-CHARLES -- Aristide apresentou-se como candidato presidencial em 18 de Outubro de 1990. O registo eleitoral fechava a 20 e as eleições realizavam-se a 16 de Dezembro. A queda de Duvalier em 1986 abrira diques na sociedade haitiana, como aconteceu no 25 de Abril em Portugal. Desde esse momento registavam-se dois níveis de participação política no campo oposicionista: o popular, que reivindicava uma mudança total; e o dos políticos-candidatos, gente que tinha combatido os Duvalier mas que pretendia simplesmente uma mudança de pessoas...
P. -- ... O povo votou nos segundos...
R. -- Sim, mas é preciso analisar em que circunstâncias. O povo não queria participar nas eleições. Só mudou de opinião quando viu Aristide.
P. -- Mas nas legislativas preferiu outros, que não o Lavalas.
R. -- Por um erro de previsão nosso. Por tradição, o regime é presidencial no Haiti. A Constituição de 1987 tornou-o, contudo, semi-parlamentar mas nós na altura não nos encontrávamos conscientes disso.
Os objectivos do Lavalas
P. -- A situação parece repetir-se. Estamos a dois meses das legislativas e o OPL só agora aparece...
R. -- O OPL foi fundado em 4 de Fevereiro de 1991, dois dias antes da tomada de posse (de Aristide). Não queríamos ser um partido tradicional e por isso organizámo-nos a partir da base, em sessões com pequenas comunidades, silenciosamente. Como a coligação FNCD foi a bandeira eleitoral de Aristide, quando houve o golpe de Estado os militares viraram-se para ela, enquanto nós entrávamos em semi-clandestinidade. Voltamos à luz do dia, neste momento. Mas ainda somos apenas o esqueleto do Lavalas.
P. -- Só essa palavra, «lavalas», provoca terror em alguns haitianos...
R. -- Há dois níveis: o fenómeno social de transformação da sociedade e as expressões extremistas de que se pode revestir, como foi o caso do «Père Lebrun» (negociante haitiano de pneus cujo nome passou a designar as mortes de colaboradores de Duvalier pelo sistema do pneu a arder, usado na África do Sul).
P. -- O «Père Lebrun» regressa com Aristide?
R. -- Essa associação costuma fazer-se mas não tem qualquer fundamento histórico. Nos sete meses de Governo Aristide registou-se apenas um caso, na Artibonite (região do centro do país). Tudo se passou a seguir à queda de Duvalier, quando não havia autoridades instituídas e as pessoas começaram a fazer justiça radical pelas suas próprias mãos.
P. -- O que pretende o OPL? Ganhar as próximas eleições legislativas? Vão apresentar-se em todas as circunscrições?
R. -- Não tenhamos ilusões. O Lavalas não pretende de resto hegemonizar, mas sim estruturar o movimento popular, tornando-o num instrumento de luta do povo para a construção de um novo Haiti.
P. -- Há alguma relação orgânica entre o movimento e Aristide?
R. -- Não somos o partido de Aristide. Partilhamos com ele a escolha do povo, mas não há nenhuma relação de subordinação.
P. -- O Aristide que regressou ao Haiti é o mesmo que partiu daqui há três anos?
R. -- Teve uma oportunidade única de aprendizagem política, e naturalmente enriqueceu no plano político.
P. -- E não perdeu também?
R. -- Quando pensamos no que o Haiti era, compreendemos que Aristide tenha tido um discurso radical. O extremismo do poder suscitava extremismo em gente generosa. Um amigo norte-americano disse-me uma vez que era de direita mas que quando vinha ao Haiti e falava com a elite local se sentia um homem de esquerda. (O antigo Presidente fantoche de Cédras) Jonassaint é um homem do século XIX. Para homens como ele, o sufrágio universal, a participação do povo na vida política são vistos como perigosas reivindicações de esquerda. Do que se trata hoje, no Haiti, é de promover a passagem do país do arcaísmo à modernidade, do absolutismo a democracia, do apartheid à participação do povo. Respondendo à sua pergunta: não sei se Aristide mudou, mas certamente enriqueceu a sua maneira de ver as coisas. Não esqueça que um homem depois dos 25 anos não muda muito.
«Não podemos descer mais baixo...»
P. -- Os políticos apoiantes de Aristide (como ele próprio, no passado) têm um discurso anti-imperialista. Ora o povo não cessa de aplaudir a intervenção dos EUA no seu país. Não há aqui um desfasamento entre o vosso discurso e os sentimentos do povo com o qual se dizem identificados?
R. -- É que a realidade mudou. Lembre-se de Bush e do apoio da embaixada dos EUA aos golpistas. O povo compreendeu que os nossos aliados são os estrangeiros. Bush é diferente de Clinton. Os EUA também têm interesse em mudar.
P. -- No plano interno uma das questões essenciais para esta fase de implantação da democracia reside na participação dos empreendedores. Acredita que isso vá acontecer?
R. -- Aristide tem de negociar, mais do que reconciliar, que é uma palavra próxima da teologia.
P. -- Que concessões aconselharia, em concreto?
R. -- A entrada de representantes da burguesia no Governo. É preciso por outro lado educar a elite moralmente repugnante, levando-a a ver que o desenvolvimento democrático implica que pessoas não podem continuar a morrer de fome. Precisamos de mudar as relações de conflito com essa classe em relações de concordância. Defendo por outro lado que acabemos com o Exército.
P. -- Os EUA pensam o contrário...
R. -- O povo diz que as Forças Armadas do Haiti têm Sida. Gangsterizaram-se. Os oficiais do Exército nem o liceu tinham. Eram escolhidos com base na lealdade política. Já que o FMI vai aparecer aí com a receita dos cortes brutais, eis um bom sector onde a pode aplicar. Não temos inimigos externos. Basta a este país uma Polícia eficaz.
P. -- Reconhece ou não que o Haiti, pela mão do Presidente Aristide, tem hoje a sua soberania limitada?
R. -- O momento chegará em que os EUA se retiraram. Eles intervieram no quadro da resolução 940 (do Conselho de Segurança). Não me preocupo excessivamente. Há um travo amargo nesta reconquista da democracia através de uma intervenção estrangeira, mas é preciso vermos que ela resulta de uma aliança de várias forças internacionais. Não podemos descer mais baixo do que já descemos.
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