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<DOCNO>PUBLICO-19941122-122</DOCNO>
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<DATE>19941122</DATE>
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Os «China», da Marinha Grande
Nuno Ferreira
Hoje em dia, famílias como a dos «China», vidreiros na Marinha Grande, só são notícia quando um de entre eles esfaqueia outro ou quando a casa onde vivem desaba no meio de uma enxurrada. O PÚBLICO foi à cidade do vidro e tirou-os propositadamente do anonimato.
São cinco e meia da manhã. Sílvia, 18 anos, abandona a pequena casa do Camarnal, arredores da Marinha Grande, para seguir de bicicleta para a fábrica Ivima, onde ocupa um dos postos de trabalho mais duros e mal pagos de toda a indústria vidreira. Trabalha no forno sete, um barracão imerso em calor em que dezenas de operários deambulam entre o ruidoso forno e as bancas onde moldam o vidro, de canas na mão. Ela tem de, vestida com roupas leves, sentar-se num banco de madeira e abrir e fechar um molde onde um colega introduz o vidro a ferver.
Casada e já com um filho, Sílvia tem de deixar o bebé de oito meses com a sogra ou com a mãe, porque o infantário da fábrica onde já trabalharam mais de mil pessoas e agora só estão pouco mais de 400 fechou, como já fecharam ou ameaçam fechar outras secções.
«O que eu faço é trabalho de homem, eu sei, mas, enquanto não tiver outro emprego, tenho de me aguentar. Eu bem queria sair, mas está difícil», explica Sílvia, um rosto entre a infância e a adolescência, corpo meio de mulher e de menina. «Então no Verão custa um bocado. Às vezes, temos de parar um quarto de hora por causa do calor.»
Mãe aos 17 anos, operária vidreira a receber 64 contos por mês, Sílvia representou um choque para a vizinhança de casas pequenas e baixas do Camarnal quando para ali se mudou. «Um dia, passou por mim e disse: `Bom dia, vizinha.' Eu nem queria acreditar que ela fosse a nova vizinha. Até disse para o meu marido: `Que c..., querem ver que aquela miúda é a nossa nova vizinha?'»
Sílvia pertence à numerosa família de vidreiros conhecida pelos «China» e, nos dias que correm, histórias como a da família «China» não interessam aos jornais. Não sendo actores nem apresentadores de televisão e não pertencendo à decadente família real britânica, pessoas como os «China» só ganham direito a cobertura mediática quando alguém, com um copo a mais, esfaqueia outro membro da família.
Foi difícil chegar aos «China». Explicou-se a um delegado sindical o interesse em falar com uma família de vidreiros, de preferência uma família extensa. «Temos cá uma, eh pá, mas essa não serve...», encolheu-se em desconforto. «Não vão falar com um homem que não dignifica os vidreiros, um faltoso e um bêbedo.» E foi precisamente com ele que que fomos falar.
Fugindo à pré-selecção sindical, feita de estereótipos e noções dogmáticas do que deve ser uma verdadeira família operária, assim se chegou aos «China», uma alcunha que o próprio patriarca sabe que veio para a Marinha Grande trazida pelo pai, que, vidreiro em Lisboa, se transferiu para a zona, embora desconheça por que lhes chamam assim.
Sempre que o nome «China» era mencionado na fábrica, qualquer que fosse a secção, um trejeito de enfado ou um torcer de nariz davam a entender que aquela família não era uma muito considerada. «Vê lá tu», disse o delegado sindical a um colega, «que eles querem ir falar com o `China'. Não é uma pessoa com habilitações para responder às perguntas que eles pretendem.»
Fomos ao forno sete à procura do «China». Ali, todos vestem roupas ligeiras, «t-shirts» ou camisas arregaçadas ou de manga curta por causa do calor. O barulho vindo das bocas do forno é ensurdecedor, mas todos parecem já habituados. «É muito raro termos aqui alguma queimadura», explica um encarregado, «e, quando há, é quase sempre por causa de alguma brincadeira.» Pega num lenço e limpa a testa. «Hoje, isto está mesmo quente, abafado por causa do tempo enevoado. Até o barulho é maior.»
Enquanto os moldadores se sentam em bancos, trabalhando a peça, homens e mulheres deambulam incessantemente, transportando as peças de um lado para o outro. Fazem-no com um tamanho à-vontade que é impressionante como não se queimam. De vez em quando, param para verter água de uma vasilha de barro para as bocas sequiosas. Muitos são jovens. O lume de uma boca de forno ilumina o rosto de um rapaz que não deve ter mais de 14, 15 anos. Usa um rabo de cavalo, «t-shirt» metálica, calções, sapatilhas e olha para nós com um ar desconfiado de quem parece dizer: «Nós aqui a trabalhar no duro e tu aí a tirares notas nesse caderno...»
Foi, pois, com indisfarçável curiosidade que, por entre o intenso barulho do forno sete e o deambular de formigas dos operários transportando peças de vidro a ferver, gritámos pelo «China». Saiu de entre o magote um homem pequeno, de bigode matreiro, camisa aberta, sandálias nos pés. Chama-se Carlos Moreira, mas para toda a gente só pode ser um «China».
Combinou-se encontro no seu café de sempre, o Café Mesquita, em frente à linha de caminho-de-ferro, à beira da estação. Enquanto esperávamos por ele, uma automotora cor de laranja largou um silvo no ar, arrastando atrás de si vagões carregados de troncos de madeira. Como acabara de chover, os rodados das viaturas faziam salpicar a água das poças. Aos poucos, reunindo-se em redor do balcão de alumínio, uma mão-cheia de operários foi-se amontoando em conversa ruidosa. «Estás bom, ó Chinês?», gritaram quando viram entrar Carlos.
Deve ser aborrecido não saber por que lhe chamam assim. «Era uma alcunha do meu pai. Ele era vidreiro, mas alfacinha. Veio para aqui trabalhar e pôs-nos a nós todos a trabalhar.» Carlos manda vir um bagaço e emborca-o num abrir e fechar de olhos. «Éramos cinco rapazes e sete raparigas. Como havia muitas dificuldades, fomos todos parar à indústria do vidro.»
Naquele tempo, ser aprendiz não era fácil. «Havia certos oficiais que nos batiam para aprendermos. Ao fechar o molde, às vezes adormecíamos. Tínhamos de levar duas bofetadas para acordar.»
Carlos, o «China», recorda que em 1964, quando começou a trabalhar, ganhava menos, mas a vida era mais barata. «O que o 25 de Abril nos deu, acima de tudo, foi a liberdade. Lembro-me de a PIDE entrar dentro da fábrica para ir buscar trabalhadores.»
Quando, em meados dos anos 80, a Ivima viveu grandes dificuldades, Carlos, tal como os outros, trabalhava todos os dias sem saber quando recebia. «Quando andamos às palhaças com os salários, vinha aqui todos os dias para chegar ao fim do mês e receber cinco ou dez contos.»
Para poder manter a família, andou a fazer serventia de pedreiro ou a trabalhar nas vindimas. «Mal ganhava, a minha esposa não trabalhava, os meus filhos eram pequenos e queriam comer.» Passou fome? «Não, a fome é que passou por mim.» Ainda hoje, o «China» pinta paredes sempre que há serviço. O ordenado da mulher, que trabalha numa empalhação de garrafões, não chega.
Naquele «anos maus», Carlos pensou em ir ao Fundo de Desemprego. «Mas o gerente pedia-nos para não sairmos. Se saíssemos, tinha de fechar o portão.» Graças a essa persistência, o «China» assistiu a todas as movimentações dos operários da fábrica. Bom, assistiu e participou.
«Da primeira vez, fomos todos a Lisboa a pé. Quando passávamos nas aldeias, os lavradores davam-nos fruta e batatas.» Da segunda vez, Carlos lembra-se de que tinham a polícia de intervenção à sua espera à entrada de Lisboa e, da terceira, foram até São Bento, com bandeiras a dizer «Trabalho sim, desemprego não». Isto até ter chegado a polícia. «Aí, levaram-nos para um pavilhão onde ficámos detidos seis horas. Quer dizer, eu não, porque escapei. Quando apareceu a ramona, fugi.»
Ir a Lisboa não valeu de muito. Por isso, em outras ocasiões, algumas bem recentes, tiveram de cortar a linha de caminho-de-ferro ou a estrada para Leiria. «Cortávamos as árvores para a estrada. Eu nunca apanhei porrada porque escapava sempre.»
Hoje, o «China» é prensa de letra B no forno sete, ganha 90 contos por mês, mas tem a mulher a trabalhar e já não sustenta os dois filhos, um dos quais, Sílvia, trabalha ao pé dele. «A Sílvia já tinha estado a servir, mas ganhava pouco... não fui eu que a pus na Ivima, eu disse-lhe sempre que não fosse para o vidro, porque é um trabalho duro e é o mais porco de língua.» Porco de língua? «Sim, já se sabe, não há classe que diga mais asneiras do que os vidreiros.»
Do Café Mesquita à Ivima são cerca de 700 metros, que Carlos nesse dia não faz de bicicleta por causa da chuva. «Carro? Um dia...» A distância é percorrida a pé entre barracões velhos e abandonados, restos do que em tempos foi uma empresa. «Neste barracão, à noite, é uma desgraça. Vem para aí a malta nova injectar-se. Mesmo lá na fábrica, a droga é uma desgraça.» Pouco antes de ir ter connosco ao Café Mesquita, Carlos acabara de saber que um sobrinho fugira de casa.
Vista de fora, a Ivima assemelha-se a uma espécie de reformatório, um comprido edifício em tons rosa. Tem um grande portão, que o homem da portaria é forçado a abrir sempre que uma viatura das chefias faz questão de entrar. Os trabalhadores, esses, entram e saem de bicicleta ou motorizada na mão. Dentro do pátio, não são autorizados a montá-las. De um lado, ficam as bicicletas, penduradas em ganchos que as assemelham a carne no matadouro. Do outro, arrumam-se as velhas Sachs e Famel-Zundapp, algumas verdadeiras peças museológicas que eles conseguem manter em funcionamento graças a muito e dedicado trabalho de manutenção.
Mesmo em frente, por detrás de uma porta branca de madeira que mal faz adivinhar o que se encontra para além dela, fica o mostruário, onde excursões de idosos se detêm perante peças de vidro de outras eras. Pegamos numa jarra de tons esverdeados ou num copo de pé azulado e perguntamo-nos a quem ainda interessará este «design» ultrapassado.
Paula, 26 anos, sobrinha de Carlos «China», está há seis meses no mostruário, um paraíso comparado com os fornos, onde esteve quase cinco anos. Pega num pano de pó e vai limpando peça a peça. «Trabalhei à hora numa fábrica de candeeiros, não ganhava quase nada. Depois, passei para um café. Trabalhava das 7h30 à meia-noite e ganhava 20 contos.»
Mal por mal, veio para o vidro, onde já trabalhava o marido e passou a colhedora de marisas (bocados de vidro) no forno sete, onde o único incidente foi uma vez que queimou um primo na cabeça. «Ah! Ah! Quem o mandou vir a correr?»
O marido de Paula, Valdemar, 24 anos, é tido como um rapaz atilado, que desde os 14 trabalha no vidro e nunca faz greves. «Se a empresa não vai para a frente, sem trabalharmos é que ela não vai de certeza», explica. Valdemar é verificador de fornos. Trabalha num gabinete mais ou menos insonorizado, mais ou menos protegido do calor, bem junto ao forno sete. «É um trabalho de grande responsabilidade», explica ele, que não se envergonha de ter apenas o primeiro ano do ciclo. «Sou eu que tomo conta dos fornos, que controlo as temperaturas, um pequeno erro meu pode lixar milhares de contos. Basta deixar descer a temperatura ou o nível do vidro...»
Valdemar sente-se satisfeito por a empresa só lhe dever meio mês de ordenado e o subsídio de férias. Com o seu ordenado de 100 contos e o de Paula, consegue manter-se a si, à esposa e ao filho de ambos à tona de água, o que não o impede de montar antenas sempre que lhe peçam. «O meu filho tem sete anos. Não gostava que ele viesse trabalhar no vidro. Quero deixá-lo estudar mais do que eu estudei. Eu tive de largar cedo os estudos porque o que o meu pai ganhava como funcionário da câmara não chegava.»
Os «China» multiplicam-se um pouco por toda a Ivima, se bem que todos sejam unânimes em afirmar que já lá estiveram mais. «Se agora existem uns dez, já houve pelo menos mais uns sete. Saíram no período mau.» Fernando e Carlos António, irmãos de Paula, trabalham no famigerado forno sete. Depois de começar por fazer o que hoje é destinado aos mais novos e às mulheres -- fechar o molde --, Fernando é actualmente colhedor-preparador. «Ando a arranjar o vidro para eles moldarem.»
Fernando tem 24 anos, mas ainda vive com os pais, reformados de outra fábrica de vidro. «Ganho 86 contos, mas dou 30 aos meus pais. Queria ver se arranjava o suficiente para comprar um carrito.»
José Pereira, tio da Paula do mostruário e cunhado do Carlos, nunca saiu da olaria, uns barracões meio em ruínas onde se fazia barro para as portas dos fornos e para barragem das portas antes de o material acabar. «Aqui», explica José, «fazíamos tapadoras, rodelas, portas, pedras para fornos. Fazíamos... as últimas portas que fizemos foi em Maio. Não há materiais, dizem sempre que chega para a semana, chega para a semana...»
Com três filhos a sustentar, uma das quais sofre de um problema cerebral que a obriga a ser atendida frequentes vezes no hospital em Coimbra, José tem a receber 230 contos em atraso da empresa. Nos períodos piores da Ivima, trabalhou num ferro-velho em «part-time», cortou madeira, sem nunca se esquecer de amanhar terra e criar porcos. Mas, para quem nasceu numa família de 11 filhos, se lembra de comer pão com bolor e de dividir uma sardinha por três, as dificuldades de agora parecem suaves e suportáveis. «É certo que ganho 85 contos, mas a minha mulher faz umas horas e traz para casa mais uns 20. E pouca comida vamos comprar fora. Amanho a terra, crio coelhos, crio galinhas...»
Nem todos são como José Pereira. «Há muita gente aqui na Marinha Grande que não tem nada e não sabe fazer mais nada do que ser vidreiro.» Alguns habituaram-se a pedir. «Tive de deixar de falar com um vizinho meu porque ele passava a vida a pedir-me coisas: ovos, manteiga, eu sei lá... Se a gente lhes der uma mão, querem levar o braço.»
Se os tempos não estão bons para a decadente indústria do vidro, é certo que tudo já esteve bem pior. Ainda há pouco menos de um ano se falava em encerrar as empresas. Hoje, fala-se numa verba de três milhões de contos para a reestruturação do sector, na redução de 40 por cento do pessoal excedentário e no fim dos acabamentos (lapidagem, pintura, gravação) dentro das fábricas.
Uma coisa é certa. Na Ivima, oito milhões de passivo, infra-estruturas decadentes, os últimos a sair serão com certeza pessoas como Carlos «China»: «A nossa arte é esta. Não sabemos fazer outra coisa. As coisas estão más? Já estiveram muito piores. O meu pai não tinha subsídio de férias nem reforma. Fomos criados sem nada. A minha escola foi a boca do forno e a água da selha. E não morri...»
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