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<DOCNO>PUBLICO-19941201-145</DOCNO>
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<DATE>19941201</DATE>
<CATEGORY>Diversos</CATEGORY>
<AUTHOR>TC</AUTHOR>
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Os Agentes Duplos
O que é a fidelidade, além de uma obrigação que se tem no casamento? É um valor moral, resta saber se grande ou pequeno. É uma ideia sustentada a partir de uma concepção de sociedade em que a família tem o seu lugar, e a continuidade da família deve ser assegurada. Mas, além disso, o que é a fidelidade?
Texto Tereza Coelho
Ilustrações Cristina Sampaio
O que é a fidelidade agora? Um grande valor, um pequeno valor? Neste nosso mundo, a maior parte das pessoas escolhe a monogamia. Objectivamente, seria muito difícil outra escolha: falta de condições, falta de tempo, falta de contexto. Mas, ao longo de uma vida de monogamia, as pessoas mantêm «segundas relações», mais ou menos clandestinas, pontuais ou paralelas. Se forem pessoas casadas, chama-se adultério, e, se for repetido, reiterado, entre nós é um motivo para um divórcio litigioso.
Uma antropóloga, Helen Fisher (o seu livro, «Anatomia do Amor», foi agora traduzido pela Dom Quixote) estudou 42 culturas diferentes. Encontrou adultério em todas.
Mas não é por ser banal que é «normal». Um casamento é um contrato regido por normas estritas. A fidelidade corresponde a uma ideia sustentada a partir de uma concepção de sociedade em que a família ocupa um lugar central, e a continuidade da família deve ser preservada. Ou seja, é uma necessidade social. O que não implica forçosamente uma necessidade «pessoal». Somos, ou não somos, «naturalmente» fiéis?
A produção artística, cultural, seria consideravelmente mais pobre sem as figuras do amante e da amante, do marido enganado, da mulher enganada, aqueles que, normalmente, se sentem traídos, «o que se calhar é pouco científico», diz Júlio Machado Vaz, psiquiatra, sexólogo. «Depois há os problemas de auto-estima, as paranóias sobre porque é que aconteceu, a competição com a terceira pessoa, a tentativa de saber se a infidelidade é pontual ou tem relevância... Há pessoas que mantêm duas relações e ao fim de anos como é que se decide qual é A Relação? Às vezes já existem dois agregados familiares, estruturados e estabilizados».
Allen Gomes, psiquiatra, sexólogo, pensa que se devia substituir a questão de saber se somos, ou não, «naturalmente» fiéis, por outra: «as pessoas sem compromissos estão teoricamente sempre disponíveis, a nível afectivo, a nível erótico. Não têm constrangimentos nenhuns, mas não vão todos os dias para a cama com uma pessoa diferente.» Por falta de oportunidade? «Por amor de Deus. Uma mulher que quisesse ir todos os dias para a cama com um homem diferente não ia? Não vai porque não lhe apetece. Ou porque para ir põe condições. E mesmo havendo condições, pode não ir, e no entanto não há constrangimento social, nem pessoal. Pode ser que a verdadeira questão seja a oposição entre um comportamento sexual mediado pela afectividade e um comportamento sexual mediado pelo hedonismo. As pessoas são infiéis porque a certa altura encontraram alguém suficientemente importante para terem uma relação? Ou porque isso é uma massagem ao ego? Ou porque a natureza intrínseca é ser infiel? Não penso que seja, mas não sei. A fidelidade implica sacrifício».
As pessoas seriam ainda menos fiéis, se fosse outro o contexto, se fossem outras as possibilidades? Semanas atrás, Robin Wright publicou, nos EUA, um «best-seller» sobre esta matéria -- «The Moral Animal» (Pantheon Books); o seu argumento é que os homens são levados a disseminar genes, para assegurar a reprodução; as mulheres procuram homens porque querem seleccionar para encontrar o «melhor». Um argumento contido dentro dos limites daquilo a que se chamava sociobiologia. Para Robin Wright, a monogamia simplesmente não é «natural».
António Bracinha Vieira, psiquiatra, etólogo, diz que as pessoas procuram ter vários parceiros: «Em termos biológicos, para melhorarem o seu sucesso genético. Em termos psicológicos porque a nossa vida rege-se por factores com conteúdos psicológicos complexos... Pode dar satisfações narcísicas. E há muitas culturas em que ter muitos parceiros pode aumentar o prestígio». Sendo assim, qual é a explicação para a fidelidade ser uma das coordenadas da estrutura social? «As crias humanas estão longo tempo dependentes dos progenitores. São muito imaturas, têm um tempo de maturação muito longo. Beneficiam se se puderem desenvolver com uma assistência estável. São vantagens para a cria».
A cria humana é tão imatura, tão incapaz de prover às suas necessidades básicas, que necessita de muitos cuidados. Sim, mas os tempos mudam, há famílias biológicas, famílias de adopção, há a inseminação artificial... «A imaturidade da cria humana não mudará com isso. Os avanços da cultura são muito mais rápidos que os da biologia mas são muito mais lábeis... nós bocejamos da mesma maneira mas podemos comer de mil maneiras. As regras da cultura são muito artificiais. Tem de ser criada uma tradição», acrescenta.
A nossa tradição, quando, em sentido genérico, pensamos em «fidelidade» num casal, é pensarmos numa fidelidade sexual. «Só conseguimos pensar na fidelidade se houver uma tradução num comportamento. Empobrecemos muito o conceito. Fidelidade ou infidelidade, para nós, significa fidelidade sexual: ter ou não ter relações sexuais com. No entanto, uma prostituta pode ser completamente fiel ao seu companheiro e tem relações sexuais com outros constantemente. Se um homem tiver uma determinada noção de sexualidade, e não fizer sexo oral com a mulher, porque não acha isso concebível, para isso recorre a uma prostituta, ele está a ser infiel? Está, mas se nos reportarmos às suas próprias representações, não está. Seria infiel se arranjasse outra mulher com quem mantivesse relações sexuais do mesmo tipo das que mantém com a mulher, porque nesse caso haveria duplicação de papéis», diz Isabel Leal, psicóloga, psicoterapeuta.
Sexo & Cª. Segundo António Bracinha Vieira, «O sexo, actualmente, tem menos a ver com a procriação do que com o vínculo. Nós somos muito solicitados não para nos reproduzirmos muito, mas para nos vincularmos muito. Para desenvolvermos uma relação duradoura fortemente enraizada no afecto».
Portanto, uma «relação que é só sexo» é, ainda, uma «relação», passível de estabelecer um vínculo? Júlio Machado Vaz cita «salvo erro, de Céline»: «esses contactos que ingenuamente apelidamos de apenas físicos...». Acrescenta: «Em princípio, o outro tem que ter qualquer coisa que nos atraia e agrade. Pode ser ingénuo da minha parte, mas eu não penso que o sexo possa ser encarado como um contacto de epidermes, toma-se um duche e não houve consequências nenhumas. Acreditar nisso pode estragar boas amizades». Mas há vínculos que não são afectivos. «Podem ser eminentemente da atracção sexual, ponto. Há pessoas que sentem uma fortíssima atracção sexual uma pela outra, e depois descobrem, muitas vezes com desagrado, que o resto não lhes interessa nada».
Allen Gomes acaba por dizer a mesma coisa. «Claro que há pessoas que recusam o esquema do sexo que é só sexo terminantemente. Mas, se uma pessoa se sentir atraída por alguém e fizer sexo com essa outra pessoa, o que é que isso envolve?». Está a dizer que é igual a ir jantar fora? «Pergunta isso porque está a falar como uma mulher. O que está a dizer é que tem de haver outra coisa. Uma identificação qualquer, em relação ao nosso mapa erótico, ao nosso esquema erótico. Identificamos alguém com isso, o que já implicou uma escolha. É aquela pessoa, não é qualquer uma, é aquela, nem que não tenha aberto a boca. Não foi ouvida nisso, literalmente... se abre a boca pode ser uma decepção».
O sexo não é simplesmente «sexo». No caso da nossa cultura, a sexualidade serve o afecto. Que pode ser um afecto negativo. Isabel Leal, a partir da experiência clínica: «Por exemplo, uma pessoa para se «vingar» do seu parceiro pode ter uma relação sexual com outro... a dimensão do sexo actuado, aqui, é menos importante». Então nesse caso o sexo não é o sexo, é o sexo ao serviço de qualquer coisa... «Sim, mas nesse caso, enquanto comportamento específico, deixa de ter sentido... o problema que se coloca é então: qual é o sentido da sexualidade».
Dois amores. Se tivermos uma «segunda ligação», ela pode estar exactamente no mesmo plano que a primeira? «Não creio que isso seja fácil num estado de paixão, eventualmente é possível numa relação amorosa. No amor o outro vai sendo mais o que é, e menos o que nós representámos. Por isso talvez seja bastante mais duvidosa a fidelidade no amor que na paixão. A paixão tem a fama, e arrisco-me a dizer, o proveito, de ser mais monogâmica que o amor. Quase por razões económicas, psiquicamente. É difícil estar violentamente apaixonado por duas pessoas ao mesmo tempo. Um aluno meu já me jurou a pés juntos que estava, por isso não digo impossível. Mas julgo que o que pode existir é paixão por uma e amor por outra...», diz Júlio Machado Vaz. «O ideal é quando aquilo que sentimos por uma pessoa torna desnecessária a hipótese de estar com uma terceira.... Mas o ideal não anda aí aos pontapés», acrescenta. «Há alturas em que não custa nada ser fiel», diz Allen Gomes. «O termo paixão é muito discutível, cada um tem a sua leitura, mas é verdade é que há alturas em que não custa nada... São fases».
Acontece regularmente aquilo que António Bracinha Vieira caracteriza como «os afectos num partenaire e o desejo noutro: é um drama. Sente-se ternura, solidariedade por uma pessoa e desejo por outra». Quando éramos crianças talvez soubéssemos se gostávamos mais do pai ou da mãe. E talvez o pai e a mãe não saibam dizer, mas como é que temos a certeza que não gostam mais de uns filhos do que dos outros?
A importância dos contratos. A nossa ideia de casamento parece um pouco megalómana, como se tivéssemos estabelecido um compromisso pesadíssimo. O casamento implica um só amor, uma só sexualidade, uma só relação, um só contrato. «E se for a uma Igreja a um domingo, vê que toda a gente acredita nisso», comenta Allen Gomes.
«É excessivo juntar tudo numa única circunstância. É provavelmente o nosso único momento de uma exigência tão grande... E, actualmente, a família tem uma função mais restrita. Foi perdendo funções naquilo que diz respeito aos desempenhos sociais e tem mais funções ligadas ao investimento afectivo. Digamos que é um mecanismo substitutivo», diz Isabel Leal. O valor que se deu ao amor ao longo da história variou.
Os tempos mudaram, as regras mudaram ao longo dos tempos. Resume Júlio Machado Vaz: «Agora exigimos do casamento também a felicidade -- o que não é bem a mesma coisa que um casamento `réussi'. A geração dos meus pais, e talvez a minha também, de uma maneira explícita ou implícita, foi educada para pensar que o mais importante da vida era construir algo de estável no plano afectivo. Se converso com uma pessoa de 30 anos, ela diz-me que muitos daqueles com quem priva têm ligações estáveis, mas esvaziadas de outros pressupostos. Aquilo a que alguns autores chamam o amor-camaradagem. Há comunhão de interesses, os feitios coadunam-se, mas o plano afectivo não está claramente acima de outros. Daí que um falhanço afectivo não tenha consequências muito catastróficas».
A modalidade intelectual. Mas, num casal, pode haver outros modelos de fidelidade. Um grande clássico é o modelo Sartre-Simone de Beauvoir. Traduziram o pacto que estabeleceram na célebre expressão que mencionava o «amor fundamental», o deles, e os outros, os amantes e as amantes, os «amores contingentes».
Segundo Eduardo Prado Coelho, ensaísta, «Nós, e isto é o `nós' geracional, vivemos no culto e na exaltação da transparência. Os existencialistas e afins tinham esse modelo absoluto, o casal Beauvoir-Sartre. Sabemos hoje como Sartre era metódico, dividia o seu quotidiano entre um horário de trabalho e um horário amoroso, no qual tinha horas reservadas para cada uma das amantes. E tivemos o testemunho recente de uma que chegou tarde ao período das «inscrições», mas que, dotada de atributos e qualidades que justificavam um tratamento de excepção, conseguiu obter vaga no horário de trabalho. Outro testemunho foi de uma rapariga que, tendo sido aluna de Simone, apaixonou-se por ela, mas Simone fartou-se, e resolveu passá-la a Sartre, com quem ela veio a desenvolver também uma história amorosa-sexual. Só pela leitura muito posterior de diários e de correspondências viu que tinha sido transaccionada. Indignou-se, de uma maneira algo póstuma... Os enredos da transparência eram complexos e não isentos de burocracia. A minha geração viveu nos bons e maus hábitos «franceses», do culto da autenticidade. E, se não era Sartre e Simone, era Aragon e Elsa».
Isto antes da morte de Elsa -- porque depois, «Aragon encenou a sua velhice numa deambulação homossexual». Porque é que essa geração recorreu preferencialmente a modelos assim? «Precisávamos de ser autênticos, sinceros, e, como nada é simples neste pobre mundo, dizíamos a verdade até magoar e mentíamos para não magoar, e magoávamos porque mentíamos, e alguns corriam ao psicanalista, nunca foi o meu caso, para poderem dizer o que quer que fosse e ter em frente alguém que tomasse tudo por verdade».
E qual foi o modelo intelectual da geração seguinte? «Suponho que a geração seguinte operou um retorno homeopático às virtudes da não-sinceridade, e descobriu, sem convicções excessivas, que uma dose moderada, e mais `britânica', das virtudes institucionais da reserva, da dignidade e das dissimulações, das convenções sabiamente administradas, poderia corresponder, com alguma poupança libidinal, a uma certa sageza capaz de proporcionar fragmentos discretos de beatitude. Enveredou-se assim por uma amoralidade apática. Para alguns, é um conformismo apático».
Fidelidade: Masculina, feminina? Penélope, a rainha solitária que esperou por Ulisses, é um ícone da fidelidade. Não somos capazes de conceber o contrário, um Ulisses à espera de uma Penélope. Ou seríamos? «A minha convicção é que, do ponto de vista da fidelidade aos seus próprios valores, os homens podem ser mais fiéis que as mulheres. Há uma dimensão de representação social mais forte nos homens. Em termos de instâncias psíquicas, é como se os homens tivessem um super-ego mais forte que as mulheres... Chorar em público, por exemplo. Os homens têm mais preocupações com a imagem externa do que as mulheres. Do ponto de vista de fidelidade a valores, eu acho que os homens são mais fiéis do que as mulheres», diz Isabel Leal. «O que eu acho, e isto são 18 anos a ouvir pessoas, é que os homens aumentam sempre um bocadinho e as mulheres diminuem sempre um bocadinho. Tenho a certeza absoluta. Quando um homem me diz que já dormiu com 20 mulheres eu penso sim, está bem, 10. As mulheres dizem `tive uns namorados', e querem dizer bastantes». Somos realmente diferentes, ou aparentemente diferentes por uma questão cultural?
Segundo Júlio Machado Vaz, «É frequente as mulheres valorizarem também a fidelidade psíquica, embora valorizem a fidelidade física. Os homens estão obcecados pela fidelidade física. Há autores que perguntaram: se o seu companheiro tiver uma relação sexual com outra pessoa, ou se o seu companheiro tiver uma relação sexual consigo pensando noutra pessoa, o que é que é pior? E nas respostas havia uma diferença estatisticamente significativa. As mulheres de cabelos em pé, pensando que eles podiam fazer amor com elas pensando noutra pessoa, enquanto os homens o que não queriam era que elas dormissem com outro. Em situação clínica, os homens que foram educados para ser homens -- isto não é cromossómico -- estão sistematicamente mais interessados pelo que aconteceu na realidade, concretamente o que é que aquela mulher fez com outro homem, sexualmente, do que, por exemplo, o que é que ela sentiu. Ela diz: aconteceu, mas reforçou a minha ideia, de quem eu gosto é de ti. Isto, nos homens, normalmente tem pouco efeito. O que pensam é: `Sim, mas fizeste'. Nas mulheres educadas para serem mulheres é frequente ouvir-se um discurso que é «sofri muito, mas ele disse-me que não tinha sentido aquilo que sentia comigo». Aparentemente, as mulheres têm uma visão mais lata da questão, e os homens querem saber quem pôs a mão em quem, quantas vezes, onde, fazendo o quê. E isto é o que eu ouço na clínica».
Os Casos Clínicos. Sabe-se em geral que as pessoas convivem mal com situações de infidelidade. Situações desse tipo podem dar origem a consultas. Surgem psiquiatras, psicoterapeutas, astrólogos. Segundo Isabel Leal, «as pessoas não são capazes de manter relações paralelas. Não penso que seja a infidelidade, é não serem capazes de hierarquizar. O problema é acharem que devem escolher e não são capazes. Mas as pessoas não vão consultar ninguém dizendo, por exemplo, `eu tenho uma relação extra-conjugal, sou um mau marido, sou uma má mulher'. O que eu ouço é `o meu casamento não corre bem, o meu marido é assim e assado, e neste contexto tenho uma relação extra-conjugal'». Ou, como diz Júlio Machado Vaz, a infidelidade como problema «surge num quadro de disfunção do casal. Nem sequer especificamente sexual, embora muitas vezes também sexual».
E as «vítimas»? Para Isabel Leal, «O problema não é a infidelidade, é o abandono. As pessoas aguentam as infidelidades todas, não aguentam é o abandono. Dizem: `o meu marido é infiel, mas agora deixou de me dar dinheiro, foi-se embora, etc'. Ou seja, a situação pode ser humilhante, mas tem de ter outras coisas. Sou mais categórica: eu nunca vi uma relação acabar por causa de uma infidelidade. A infidelidade projecta uma sombra na relação, mas não a destrói. E não é uma questão de grupo social, porque eu trabalho também em instituições, e aparecem todas as pessoas... Não é só o grupo social que surge na clínica privada». Segundo Allen Gomes, «A `vítima' sente-se traída e insegura. Tem uma grande necessidade de saber como é a terceira pessoa. Quer saber se é `melhor' ou `pior'. Para saber se escolha foi feita com esse critério... E as pessoas concebem planos complicadíssimos para conhecerem a terceira pessoa. Não contando com o inquérito feito ao «traidor», ao infiel, para saber como era, todos os pormenores». Isso é masoquismo? «Querem tentar perceber o porquê, por uma questão de segurança pessoal... É mais fácil uma mulher perceber uma infidelidade com uma mulher mais nova, ou mais bonita. Mas se o outro escolheu uma pessoa como ela? É muito mais ameaçador».
Fiéis. Naturalmente? Isabel Leal: «Nós só podemos ser fiéis a nós próprios. Não temos nenhuma capacidade de fidelidade aos outros. Acho que é um conceito social e cultural muito interessante mas... Acho que há fidelidade aos nossos valores, às nossas regras, mas em relação ao outro? A fidelidade ao outro é a fidelidade a uma circunstância, à representação do outro». Num casal, a fidelidade é em relação a essa estrutura, o casal, enquanto um valor «nosso». Enquanto é um valor «nosso». «Numa dimensão do intrapsíquico, eu não sou fiel ao outro, sou fiel a um valor elegido por mim, e portanto estou a ser fiel a mim próprio», acrescenta.
Armando Gouveia, astrólogo, em quinze anos ouviu inúmeras histórias de infidelidade. Não, também não está escrito nos astros. «A astrologia não é exterior ao indivíduo, é intrínseca». Alguma coisa, numa carta do céu, permite «ler» a infidelidade? «Depende. Não me vou pôr a dizer que os Gémeos e Caranguejos, etc...»
Uma carta do céu divide-se por áreas. «Faz-se uma leitura de conjunto, mas há áreas específicas. Podemos falar nas Casas, a Casa relativa à maneira como funcionamos com o outro, a Sétima Casa. Depende do signo que lá está, do planeta, de muitas outras coisas... Simplificando muito: depende da posição de certos planetas, da Lua, para se ler a infância, para verificar se houve instabilidade infantil; depende da posição do planeta Vénus no caso dos homens, e da posição do planeta Marte no caso das mulheres. Depois as indicações são combinadas. Os três vectores que podem concorrer para as pessoas se darem bem, e terem uma relação estável, são: educações relativamente semelhantes, passados semelhantes, estabilidade emocional, e isso tem que ver com a Lua e com a Quarta Casa; uma polaridade químico-sexual e isso tem que ver com os jogos Marte-Vénus; e a mutualidade de interesses, estratégias e objectivos de vida, o que já tem a ver com a cultura e com a educação».
A fidelidade é mais fácil. «O que interessa verdadeiramente é que comportamentos é que foram desenvolvidos no sentido de manter o vínculo. As espécies eram muito itinerantes. Havia talvez o risco de encontrar parceiros fora do grupo», diz António Bracinha Vieira. «Eu penso que muitas vezes a fidelidade traduz um mundo em que as pessoas estão cada vez mais sozinhas. Traduz um pesar dos prós e dos contras, um `é melhor não me meter nisto porque pode pôr em risco as coisas que eu tenho e não estou disposto a perder'. Ou seja, uma avaliação muito pragmática da situação, mais do que moral. Por outro lado, se a pessoa tem este tipo de aproximação, já foi mentalmente infiel... Não estou a dizer que é igual a uma infidelidade concreta, mas também não digo que não tem significado nenhum. Tem riscos. Porque às vezes conduz à criação de jardins secretos, que, porque são «jardins», e porque não são concretos, são mitificados e passam a ser uma vida paralela», diz Júlio Machado Vaz. «Mas, se falamos também nas fantasias, é muito complicado», considera Allen Gomes.
O que é que se faz? «Eu acredito que a fidelidade é possível, com constrangimentos. É preciso um projecto, e acreditar que vale a pena. A relação sofre um desgaste brutal, ao longo da vida. Quando me aparece uma pessoa destruída porque o seu parceiro lhe foi infiel, e ela sente isso como uma falha, porque sente que deixou de preencher as expectativas do outro, o que eu lhe digo é que isso não interessa nada. Na maioria das vezes, a outra pessoa foi infiel pelos seus próprios problemas, não pelos do parceiro», conclui Allen Gomes. «Uma pessoa pára aos 40 anos e pensa: mas eu tenho de viver com uma pessoa que escolhi quando tinha 20? Sim, mas seguindo essa lógica, aos 60 vai considerar que não tem de viver com a que escolheu aos 40, e aos 80 que não tem de viver com aquela que escolheu aos 60. Poderíamos escolher o trajecto da paixão... Mas o problema é que se verifica que as pessoas que escolhem assim apresentam sintomas de frustração, e começam a não acreditar na próxima paixão, e não parecem felizes em relação a isso. A motivação é a mesma, mas comparam e o resultado não é. Falta-lhes o projecto». Falta-nos portanto a dimensão projectual. Em contrapartida, temos muito tempo: «Não sei se foi o conceito de casamento «esticou» demais, ou se foi a nossa média de vida. Se calhar vivemos demasiado».
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