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<DOCNO>PUBLICO-19941204-096</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19941204-096</DOCID>
<DATE>19941204</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>LPN</AUTHOR>
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Afonso Dhlakama em entrevista ao PÚBLICO
«Vou surpreender a comunidade internacional»
Em pouco tempo aprendeu muito. O chefe duma das piores guerrilhas do mundo mudou de farda e tornou-se um político. Afonso Dhlakama assume-se hoje como líder dum partido conservador e populista e não tem dificuldade em enunciar um programa, ouvindo as queixas de quase todos os sectores da sociedade. E promete mais: surpreender agora a comunidade internacional, colaborando com Chissano. Por táctica, claro.
Se por vezes parece ingénuo e simplista, para gáudio da imprensa de Maputo, já ninguém lhe pode negar uma visão estratégica por vezes brilhante, outras vezes marcada por ímpetos de cólera, mas sempre a imagem desconcertante de alguém que tem a consciência de que é temido pelo seu passado, o que lhe dá trunfos quando recorre ao «bluff».
Dhlakama continua a ser ambíguo quanto ao desejo do seu partido participar no próximo Governo moçambicano. Mas quanto aos governadores das províncias onde a Renamo venceu as legislativas, não há já ambiguidade alguma: «Sim e em força». Só que o reeleito Presidente da República dificilmente fará essa cedência pois tem vindo a declarar que os governadores das províncias são representantes do Governo central eleito democraticamente e que as eleições autárquicas só se vão realizar dentro de dois anos.
Dhlakama, que por vezes veste a pele de cordeiro legalista, faz por ignorar este aviso: «Onde ganhei quero governar». Tímido e desconfiado, ao longo da entrevista vai ganhando confiança até ser ele a não querer pôr fim à conversa, ultrapassado em muito o tempo combinado.
De manhã, quando falou ao PÚBLICO, à sombra de um árvore, junto da piscina da sua casa em Sommerchild, o bairro sofisticado de Maputo, Dhlakama apresenta-se só, sem a companhia de nenhum elemento do seu «staff». Apenas vimos o miúdo de metralhadora à porta e alguém que traz cafés e água, em que, aliás, não toca sequer -- Dhlakama não fuma, não bebe álcool e está longos períodos do dia sem comer. Quando se fala de armas, recosta-se na cadeira e pergunta: «Olhe para mim, para que é que eu preciso de armas?»
PÚBLICO -- Olhando para trás, que erros cometeu na campanha, e o que é que faria hoje de diferente?
AFONSO DHLAKAMA -- Não tive ainda tempo para reflectir, mas primeiro era preciso garantir que a comunicação social moçambicana fosse corrigida na sua maneira de funcionar, porque está desinformando e desviando a atenção das pessoas da realidade. Em relação à Renamo seriam precisos mais panfletos nas zonas rurais onde estão as pessoas que não sabem ler ou escrever para poderem identificar a minha cara... Os elementos da Renamo diziam para votar em Dhlakama que era aquele que tinha óculos, só que havia outro. Esse foi um erro. Outro problema foi de não termos escolhido a tempo os delegados de lista. Foram escolhidos miúdos, só por causa das habilitações. Muitos nem sequer eram da Renamo e não souberam resistir às manobras da Frelimo.
P. -- Com essas correcções os resultados seriam outros?
R. -- Acho que sim.
P. -- A Renamo ainda não desmentiu o seu interesse em ter elementos seus no próximo executivo... como é que a Renamo pode ser oposição e Governo ao mesmo tempo?
R. --ÊPode, desde que haja um acordo de princípio para a governação do país, um acordo sobre o programa de governação -- que é de Chissano, que ganhou as eleições. Um elemento da Renamo que entre no executivo pode fazê-lo como cidadão, mas entra para colaborar num programa Frelimo (que até pode não ser um bom programa), mas, num acto de reconciliação nacional, pode entrar, e nada impede que a Renamo, no parlamento, critique esse programa... Não fizemos nenhuma coligação. Aí teria que existir um entendimento sobre o programa de governação.
P. -- E os governadores das províncias onde o seu partido ganhou, essa é uma exigência?
R. --ÊAí sim, aí sim (risos) e com força! Em democracia, trabalha-se onde se ganhou, porque senão iam desfazer a nossa vitória nas cinco províncias. A Renamo a governar nessas províncias demonstrará que estamos a participar no desenvolvimento do país.
P. -- Essas cinco províncias detêm 70 por cento do PNB, não teme um «boicote» do Governo central?
R. -- Se o fizerem será o fim da Frelimo, o suicídio, e nas próximas eleições não terão sequer um por cento. Seria o fim, o desastre deles. Eles vão é tentar fazer o contrário, para dar a entender que, apesar de Dhlakama ter ganho, Chissano tem amor por aquela população, e vai tentar mudar o voto. Se fizerem boicote vão estar a promover a minha popularidade e a do meu partido.
P. -- Como explica ter menos votos nas presidenciais que a Renamo nas legislativas?
R. -- Em África, normalmente, os partidos não existem. O que chama votos aos partidos são os próprios chefes -- não quer dizer que em África não se aceite a democracia, estamos numa primeira fase --, mas um homem forte é que faz o partido e desde que o chefe marque com a sua personalidade o partido pode tornar-se grande. Eu tive menos cinco por cento do que a Renamo, mas há que contar com vários factores. O primeiro é a própria fraude, que era dirigida à pessoa de Dhlakama, para fazer com que eu não ganhasse as eleições. Por isso retiraram mais votos meus do que do partido. Há um segundo factor: para muita população bastou ver uma cara com óculos para pensar que era Dhlakama enquanto para a Renamo não havia confusão, bastava achar o símbolo com a perdiz. Isso fez a diferença. Não é verdade que a Renamo seja mais forte que Dhlakama, até porque não houve nenhum membro da Renamo que tivesse feito a campanha. Eu é que fiz tudo.
P. -- Sem Dhlakama a Renamo não existe?
R. -- Pode existir, mas neste momento Dhlakama é o líder e a unidade da Renamo. Mas a Renamo não é um partido artificial, desses em que alguém sentado em casa com a mulher ouviu falar do «trust fund» e decidiu criar um partido. A Renamo tem natureza própria. Quando em 1977 eu e o André (Matsangaíssa, primeiro presidente da Renamo) abandonámos a Frelimo e fomos para o mato, de poucos fomos muitos, de fracos fomos fortes.
Más companhias
P. -- Afonso Dhlakama passou de «guerrilheiro com estratégia de terror», segundo os EUA, a líder do partido dos descamisados, dos pobres, como se viu nas eleições e na campanha...
R. -- Nós sofremos muito a desinformação da Frelimo, este é um país que ainda sobrevive de mentiras, fomos muito sujados, perdemos até o apoio da Administração Reagan -- quando ele até apoiou aqueles «Contras» da Nicarágua, uma fabricação -- e aqui não quis apoiar uma guerrilha com implantação interna, que se batia contra os comunistas, os campos de reeducação, as guias de marcha, os fuzilamentos públicos...
P. -- Como explica então?
R. -- Foi má sorte... No início tivemos um pouco de apoio de um regime condenado internacionalmente -- Ian Smith, da Rodésia -- depois foi a mesma coisa com a África do Sul e o apartheid, e isto contribuiu para que os conservadores europeus e americanos dissessem que apoiar a Renamo era apoiar a estratégia desses grandes maus do mundo. Essa foi a má sorte que tivemos e para mais o regime marxista, uma posição estratégica da URSS, era uma máquina de desinformação... Após o acordo de paz muito americano já me pediu desculpa.
P. -- Põe a hipótese de se afastar da Renamo para dentro de cinco anos liderar uma candidatura presidencial independente?
R. -- (silêncio) Não tenho essa ideia.
P. -- E se, por um qualquer motivo, tivesse que se afastar da Renamo, quem seria o seu sucessor?
R. -- Neste momento não vejo ninguém... Não digo que não exista. São muitos mas neste momento não vejo ninguém.
P. -- Como é que vai sobreviver economicamente a Renamo nos próximos cinco anos?
R. -- Esse é um problema. A Renamo não tem empresas como a Frelimo. Nós não temos quase nada... Teremos que pedir aos membros da Renamo que passem a contribuir. Mas não é fácil. Muitos não têm para a sua sobrevivência. É uma outra guerra em que vamos entrar. Mas há pelo menos outros partidos com os mesmos princípios -- partidos conservadores --, com as mesmas ideias que a Renamo e que poderão ajudar-nos.
Programa
P. -- Concorda com essa ideia de que a Renamo é o partido dos pobres?
R. -- Concerteza. Os colados com a Frelimo, que comem bem e têm dólares, pensam que com a queda da Frelimo vão sofrer. Mas a maioria da população não tem nada e acredita que a Renamo pode criar um equilíbrio. Os ricos que foram beneficiados pela Frelimo não têm culpa. Mas é preciso equilibrar.
P. -- Continua a dizer que houve graves irregularidades, acha que a ameaça de abandonar as eleições minorou essas irregularidades?
R. -- Assustámos um bocadinho. A fraude era para que Dhlakama não tivesse nem dez por cento, que era o que Chissano dizia de mim, «um bandido armado, agente dos sul-africanos e dos portugueses»... Quando ameaçámos a Frelimo recuou um pouco... Estavam a preparar um «milagre» da Renamo com cinco por cento dos votos.
P. -- Se tivesse ganho as eleições presidenciais quais seriam as suas prioridades imediatas?
R. --ÊComeçaríamos pela comunicação social. É preciso mudar imediatamente. São boletins do partido Frelimo e não do Estado. É preciso imparcialidade. Os jornalistas não podem ser controlados. Depois era preciso mudar na segurança pública e do Estado. Os elementos da polícia são membros do partido Frelimo e pensam como tal; os serviços secretos também trabalham com a linha do partido o que é extremamente perigoso.
Em relação à economia era preciso proceder à privatização das empresas estatais, que no fundo são empresas dirigidas pelos primos, cunhados e irmãos dos ministros Frelimo. Mudar o código do investimento. Há muita burocracia e é preciso distribuir dinheiro porta-a-porta aos membros da Frelimo para se conseguir fazer qualquer coisa. É preciso uma boa política fiscal -- os empresários pagam ao Estado quase metade dos rendimentos da sua produção! --, é preciso criar incentivos às pessoas que queiram fazer dinheiro e é preciso demonstrar que a democracia veio e que isso significa liberdade, justiça...
Há ainda a questão do desequilíbrio entre regiões: olhe para Maputo... é como se fosse... uma pequena Nova Iorque -- aqui um jovem pode ter casa, bom carro, empresa, dólares no banco --, não é o que se está a passar no resto do país onde é tudo diferente. Este desequilíbrio regional é um grande problema.
P. --ÊE acredita que haverá mudanças?
R. -- Se não houver a população vai sair à rua para fazer greves porque as eleições devem criar mudanças, caso contrário o povo vai perguntar porque é que foi afinal votar.
P. -- A Renamo vai unir-se no parlamento aos nove deputados da União Democrática, há já contactos?
R. -- Ainda não há contactos, mas, por natureza, a UD faz parte da oposição. Pensamos que estará mais próxima da Renamo do que do regime da Frelimo. Tendo isto como base, esta União Democrática irá votar contra as medidas da Frelimo que não favoreçam a população. É assim a democracia.
Armas e símbolos
P. -- Como vai ser a actuação da Renamo no parlamento? Por exemplo, calcula-se que o Orçamento da Defesa tenha este ano um aumento de 20 por cento em relação a 93. A Renamo no parlamento aceitará essa medida?
R. --ÊNão, não concordamos de todo. A ser discutido não aceitaremos. Não há necessidade, a guerra acabou. Para as Forças Armadas, os armamentos da Renamo e da Frelimo são mais do que suficientes. Interessa é queimar armas.
P. -- Concorda com uma Onumoz II para resolver a questão dos arsenais ainda espalhados pelo país?
R. -- Depende sempre da vontade das partes, mas achamos que podem continuar até Abril, porque este modelo das Nações Unidas é a primeira vez que tem sucesso. Deve sair a máquina e ficar um pequeno grupo por causa das armas. Dizem para aí que a Renamo tem esconderijos... Não é verdade. Há sim armas em toda a parte. Os quarteis da Frelimo, que estão cheios, não são esconderijos, são armazéns. É necessário uma colaboração, fazer uma amnistia, comprá-las, destruí-las. Há muitas armas com os civis, agora não há qualquer intenção da Renamo em guardar armas, olhe para mim, eu estou aqui, não preciso de armas para nada.
P. -- Diz que o Estado moçambicano se confunde com o partido Frelimo. Vai propor imediatamente a alteração de toda a simbologia da Frelimo, o Hino Nacional «Viva a Frelimo!», a bandeira, os livros de História, as avenidas de Maputo, da Kim Il Sung à Lenine?
R. -- Essa é uma questão muito importante porque este país é como se tivesse nascido hoje. Por um lado, a Frelimo aceitou que o marxismo e o comunismo morreram em Moçambique, por outro, nós também temos os nossos heróis. Mas vai-se mudar nas calmas, nas calmas. Temos que alterar o Hino porque é o Hino da Frelimo e não da Nação. Na bandeira tem de se tirar a AK-47 [espingarda automática]. Nos livros das escolas fala-se dos «bandidos armados», porque é a História da Frelimo e não a História de Moçambique.
Terra e estrangeiros
P. -- Qual vai ser a posição da Renamo quanto à política da terra?
R. -- A terra deve pertencer à população que nela trabalha. É preciso que seja registado que este bocado de terra é do João, é preciso que seja distribuída e registada, só a partir daí é que a agricultura se começa a desenvolver. A Constituição não garante nada e as pessoas têm medo de ser corridas. Essa tem que ser uma das grandes discussões no parlamento.
P. -- E em relação à venda de terra a não moçambicanos? Ouvem-se todos os dias histórias de entrega de «pequenos países» em terrenos a estrangeiros?
R. -- Eu durante a luta armada já chamava a atenção à Frelimo... Eles chegaram a vender as áreas que nós controlávamos, mesmo onde eu tinha a base, em Maringue (risos). Sim! Maringue foi vendida à Anglo-American [conglomerado sul-africano que controla os diamantes]. Venderam a nossa base, onde estávamos a fazer guerra! Actualmente as terras ainda estão a ser dadas aos amigos dos ministros, a sul-africanos em troca de favores. Para a Renamo, primeiro estão os nacionais, mas ao estrangeiro não lhe vamos oferecer terras, mas pode-se criar um modelo. Se ele estiver disposto a desenvolver, pode-se lhe dar um tempo, 30 anos, por exemplo, para trabalhar a terra.
P. -- Não se sente frustrado por ter perdido as eleições?
R. -- Eu aceitei os resultados no interesse nacional. Não me custava nada ter apresentado provas da fraude, pedido novas eleições, mesmo com a comunidade internacional contra mim. Eu sou um lutador pela democracia e sinto-me o grande vencedor. É preciso ver uma coisa: o Presidente Chissano não ganhou. Eu ganhei mais do que ele... A Frelimo perdeu... Eu não tinha nada no Parlamento, hoje tenho 112 deputados... Eles tinham 250, hoje têm 128. Perderam, desceram, quando há um prejuízo é porque se perde.
P. -- Daqui a cinco anos ganha?
R. -- Sem dúvida (risos), se Chissano ganhou agora foi à força... Vê-se (risos) sim! Vê-se mesmo olhando para a cara dele quando nos encontramos, vê-se que há alguma coisa escondida. Vamos deixá-lo assim.
«Vou colaborar... com o Chissano»
P. -- Mas acha que o Presidente Chissano não vai proceder às reformas necessárias a Moçambique?
R. -- Eu não acredito que ele venha a ter sucessos porque vai querer resistir com as mesmas estruturas que já estão sujas, os mesmo ministros, os ortodoxos. Ele não vai querer afastá-los e eles vão denegrir a posição dele. Mesmo que tente apanhar alguns moderados aquela ala dura vai querer sempre continuar a aborrecer as populações e em cinco anos o povo vai dizer: chega de vez! Venha o Dhlakama!
P. -- E não sendo deputado mas assumindo-se como líder da oposição, não indo para o Governo, o que é que vai fazer nos próximos cinco anos?
R. -- Eu vou surpreender a comunidade internacional porque vou colaborar com Chissano... Eu vou andar pelo mundo a pedir ajuda para Moçambique, a pedir que venham investir, e depois vou trazer os resultados ao irmão Chissano -- uns milhões de dólares dos americanos, outros de Portugal -- e ele daqui a cinco anos não vai poder dizer que Dhlakama prejudicou Moçambique. Se eu não fizesse assim seriam munições para ele. Só que agora eu vou ajudá-lo e se vou trabalhar com ele, mesmo sem estar no Governo, sem o sabotar, trazendo investimento, então ele tem que fazer coisas boas e vão ser munições para mim. E se ele, mesmo com a minha ajuda não fizer nada, então, daqui a cinco anos, nem vale a pena fazer campanha porque eu ganho tudo.
Luis Pedro Nunes e José Pinto de Sá, em Maputo
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