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<DATE>19941217</DATE>
<CATEGORY>Cien_Tecn_Educ</CATEGORY>
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Viagens ao ciberespaço
José Antunes
William Gibson é considerado o grande mestre de cerimónias do género, ainda que o termo «cyberpunk» lhe seja erradamente atribuído. A expressão nem sequer aparece em «Neuromante», que é de facto uma novela «cyber» e a suposta bíblia destas coisas. A paternidade do «cyberpunk» deve-se a Bruce Bethke, que usou o termo numa novela de SF publicada em 1980 na revista «Amazing». Seja como for, a verdade é que o culto dos universos e das comunidades virtuais continua de vento em popa, tornando-se mesmo tema de jogos onde «The Net» é o cenário de todas as vivências. Apresentamos-lhe alguns dos jogos que melhor exploram o tema.
Não são exactamente animadores os cenários traçados nos mais recentes jogos de computador. O futuro vai ser feito de quotidianos muito estranhos, com as cidades tal como as conhecemos a morrer e a ser trocadas pela «cybercity» -- de que a Internet é por vezes apontada como embrião. Uma cidade que não é tocável mas que existe, virtualmente, formada pelas múltiplas redes que, ligadas entre si, criam uma teia imensa cobrindo todo o planeta. E em ritmo crescente...
Os jogos recuperam, afinal, aquilo que a literatura «cyberpunk» já exprime, tornando em imagens gráficas as palavras tecidas pelos escritores. Morte, violência, sexo, drogas e muita, muita viagem na Rede, eis o que quase todos os jogos oferecem. E é difícil resistir-lhes, o que deve significar que algo está mal na alma humana. Adoramos estes ambientes tenebrosos que o futuro nos promete. Ou, pelo menos, adoramos jogá-los. Como demonstra o sucesso que a quase totalidade dos jogos com uma das palavras chave na embalagem têm tido. Quais são essas palavras? Virtual, Cyber, Net.
Dreamweb, da Empire, é provavelmente o mais simples dos recentes lançamentos concebidos em torno da herança de William Gibson. É um universo nitidamente pós-cataclismo aquele em que o herói do jogo, Ryan, vive. Sobretudo porque a par com um mundo material em decadência Ryan vive, quando sonha, na Teia -- The Web, outro nome associado à Internet --, uma vivência que o leva a encetar um diário, justamente intitulado, Diary of a Mad (?) Man. Porque Ryan não sabe se sonha ou vive realmente o que lhe sucede durante a noite, o que o leva a perguntar-se se está louco.
A análise grafológica da escrita do herói no diário que funciona como novela de introdução ao jogo deixa grandes dúvidas quanto à sua sanidade mental. Ryan sofre, pelo menos, de momentos de completa alteração da personalidade e mesmo de paranóia, que lhe torna insegura tanto a caligrafia como a construção de frases. E aquilo que escreve faz temer o pior. Poucos de nós escrevemos alguma vez, no nosso perfeito juízo, coisas como: «ontem, enquanto fazia amor com a Angel, pouco pensei na Eden. Eu não amo a Angel. Na última noite, quando fiz amor com a Eden, pensei na Angel todo o tempo. Amo a Eden».
A confusão torna-se mais perceptível quando Ryan procura transpor para o papel as visões que tem nos sonhos. «Perdi a minha mente esta manhã e tive de lutar furiosamente para a recuperar. Aquele ser que julguei ser o Pai Natal, por usar uma capa vermelha com capuz, está a aproximar-se cada vez mais. A capa, afinal, é tudo o que tem de comum com o Pai Natal. Não creio que ele tenha qualquer presente para mim, a sua expressão é severa, desumana, como se o remorso fosse coisa para ele desconhecida. Talvez, afinal, seja o Diabo. A sua voz tem algo de estranho, distante, como um sino de mosteiro numa ilha próximo da costa. Esta noite vem buscar-me, disse. Consigo distinguir mais duas palavras: Arachne... Deliverer..» escreve Ryan a 13 de Abril, logo a seguir a uma outra entrada ela também misteriosa: «O relógio continua a girar e não me quer dizer que horas são. O Pai Natal deu-me uma pistola. Soltem os cães da guerra. Eu morri ontem à noite».
Ryan, contrariamente ao que anota no diário, não morreu. Mas vai deixar atrás de si um rasto de morte, ao aceitar por missão liquidar sete pessoas de que nunca ouvira falar. É uma mortandade que pode apelidar-se de justa, porque esses setes seres subverteram as razões de existência da Teia (The Web), usando-a em seu benefício. Como se de parábola se tratasse, o jogo recria, de certa forma, a estrutura da Net, recolocando-a num universo de sonho que pode equiparar-se à viagem virtual que o ciberespaço promete.
A Teia é o local onde vamos ter sempre que sonhamos. Os reflexos desse universo do subconsciente afectam o quotidiano material sem que disso tenhamos noção. Todo o desenvolvimento civilizacional parte dali, razão porque a Teia é controlada por sete pessoas que dividem entre si os sete nós da cadeia. É a personalidade de cada um dos elementos que determina a evolução da Teia e, subsequentemente, do Mundo. A morte de um elemento obriga a procurar um outro humano que recebe a pesada herança de continuar a tarefa, introduzindo ao mesmo tempo novos contornos no conjunto, por força da sua personalidade.
Um cenário perfeitamente pacífico e que daria pouca substância para um jogo altera-se quando a Creative Reality, responsável pela concepção do jogo Dreamweb, introduz no guião a ocupação dos nós da Teia por forças do mal, que pretendem subverter o sistema, tornando a Teia diabólica, com evidentes reflexos no mundo. Os guardiães da Teia entram em acção e procuram um humano (é sempre um humano que salva os deuses...) capaz de destruir os sete elementos, para que o equilíbrio anterior seja recuperado. Pronto, estão lançadas as cartas para o jogo, e explicada a razão porque Ryan deixa notas tão estranhas no seu diário. O resto é uma aventura para descobrir e que realmente se descobre à medida que se avança pela realidade e sonhos do herói.
Com um grafismo que remete de pronto para jogos do passado, Dreamweb é um jogo exclusivamente para adultos, como assinala a etiqueta na embalagem -- «este jogo contém cenas de violência, não aconselhado a crianças» --, servido por um interface obtuso que dificulta a progressão do jogador. Mas esquecido esse pormenor e a ausência de cenários de espantação, o que fica é uma história sólida, quase detectivesca, que se percorre com gosto.
Igualmente impressionante, mas agora em todos os planos, é Bloodnet, da Microprose, que começa por mostrar na embalagem um selo de «para maiores de 18 anos» que, claro, cumpre a missão da serpente na história da maçã de Adão e Eva. Será difícil assustar uma qualquer criança com os gráficos de supostos vampiros sugando sangue pelos ecrãs de Bloodnet... mas talvez o «++ de 18» pretenda ocultar o facto de os personagens de Bloodnet viverem atafulhados em drogas, as mais diversas, que lhes dão diversos (e supõe-se que iluminados) estados de consciência. Qualquer herói que se preze tem os bolsos bem cheios de pastilhas para todas as ocasiões.
Bloodnet é um jogo que promete -- e dá, na medida em que é possível tornar visual uma viagem no ciberespaço -- um bilhete de ingresso no mundo virtual. O jogador divide-se entre Manhattan do ano 2094, uma cidade abandonada, pelo menos ao nível do cérebro, pelos seus habitantes, que se transferiram de armas e bagagens para o ciberespaço, onde das transacções comerciais até ao prazer, tudo pode ser conseguido.
Ransom Stark, o herói, é um ex-funcionário da Trans Technicals, empresa que gere a Bloodnet, uma rede de comunicações de dimensão gigantesca (de novo, a Internet é o modelo projectado no futuro). Stark, que passava os dias a lidar directamente com computadores, servindo de interface humano para acesso ao ciberespaço, foi despedido ao contrair a Síndrome Ontológica de Hopkins-Brie, que o torna instável, não lhe permitindo distinguir entre o real e o virtual.
Entre a vida e a morte, condenado a vegetar pelas ruas de Nova Iorque, Ranson Stark é salvo por Deirdre Tackett, uma cientista que tem poucas boas recordações da Trans Technicals, para quem trabalhou. No laboratório secreto de Deirdre, em Greenwich Village, a cientista coloca um implante neuronal em Stark, permitindo modular as percepções do herói, que passa a distinguir entre real e virtual. Stark, que conhece bem a rede da Trans Technicals, rapidamente ganha fama como «hacker» capaz de realizar viagens arriscadas no ciberespaço -- algo interessante e vendável numa comunidade como Nova Iorque, onde a sede de informação não parece esgotar-se.
De novo bem vivo, Stark sofre um rude golpe ao passear-se no mundo real. Numa viela de má fama é atacado por um vampiro, uma nova praga que invadiu Manhattan. Mordido, tem ele próprio de sugar sangue para sobreviver. O implante neuronal, entretanto, por alguma causa inexplicável, diminui os danos causados pelo vampiro, e assim as pessoas mordidas por Stark não se tornam, elas também, em apreciadores de sangue. Stark, entretanto, descobre que uma estrela «rock», Abraham Van Helsing, está por trás da praga de vampiros. Helsing pretende tomar conta de Manhattan e, dali, do ciberespaço.
É neste ambiente de filme de terror que Stark viaja ao longo do jogo, procurando liquidar Helsing nos três dias de que dispõe. Procurar Deirdre, por quem se apaixonou, vingar-se da Trans Technicals e derrotar o candidato a Hitler do ciberespaço, eis a tarefa de Ransom Stark. Do jogador, de facto.
Servido por uma interface muito fácil de dominar, Bloodnet oferece um universo gráfico de acordo com os delírios «cyberpunk» propostos por William Gibson e seus pares, mesmo quando tudo aquilo tem afinidades com os devaneios visuais de pintores tocados por LSD. Afinal, talvez as diferenças -- pelo menos ao nível da percepção visual -- entre as «trips» de ácido lisérgico e as viagens no ciberespaço (sobretudo quando, como faz Ransom Stark, a ligação é por um implante no próprio cérebro) não sejam muitas.
Um herói com um implante neuronal e uma habilidade especial na actividade de «hacker» é, de novo, uma característica de outro jogo lançado recentemente. Trata-se de System Shock, da Electronic Arts (Origin/Looking Glass na concepção). A história é simples: o jogador é um especialista em viajar no ciberespaço, sobretudo em áreas de acesso reservado. E não só o faz como se vangloria publicamente do facto. Acaba, claro, a contas com a polícia informática, após uma incursão no Sistema de Inteligência Artificial Shodan, que controla a estação orbital Citadel. Ser preso ou colaborar numa operação que visa descobrir o que Shodan prepara -- suspeita-se que decidiu ser senhor do universo -- são as opçães dadas ao «hacker». Que escolhe a segunda e se sujeita a uma intervenção cirúrgica que o deixa seis meses num coma de recuperação e com algo de novo no cérebro: um implante neuronal que permite a ligação directa ao mundo virtual.
Quando acorda, o «hacker», entretanto colocado a bordo da estação orbital, descobre que Shodan começou já a preparar-se para o futuro: a pesquisa genética realizada foi usada para transformar a tripulação em mutantes e criar um exército de cyborgs. É contra tudo isso que o jogador tem de lutar, num jogo dividido entre dois planos: o real (da nave) e o virtual (do ciberespaço), a que se acede pelos terminais espalhados pela estação. Sem resolver os problemas de um lado não é possível avançar no outro. E vice-versa. Tudo para pôr Shodan fora de jogo.
System Shock é menos «cyberpunk» do que Bloodnet, resumindo-se a ligação a quase este elo, depois perpetuado em múltiplas visitas ao universo virtual. O que resta, depois, é um excelente jogo de RPG («role playing game») ao estilo da série Ultima Underworld da Origin, desenvolvido num universo 3D que realmente envolve o jogador.
Comparável a Doom em alguns aspectos, System Shock é diverso e, quase se pode dizer, mais rico para quem procura mais do que um simples «tiro neles». A intensa vertente de aventura e estratégia que o jogo incorpora torna-o único, se bem que extremamente complexo e a exigir paciência e massa cinzenta em profusão. Titubeia-se nos primeiros passos, ante a multiplicidade de informação que peja o ecrã, quase apetece desistir ao descobrir a quantidade de teclas de comando, mas passados os primeiros momentos não se resiste a jogar.
A Origin soube, entretanto, deixar ao jogador a decisão final sobre a dificuldade dos enigmas ou a violência do jogo, permitindo que se defina quão belicosos são os mutantes (de zero a 100), com igual escala para as dificuldades ligadas à massa cinzenta. Assim, quem quiser somente passear-se pela estação espacial pode fazê-lo, enquanto os amantes de uma boa aventura podem activar somente os problemas, deixando aos saudosos de Doom a definição dos níveis de «murro neles». Qualquer mistura dos diversos elementos é também permitida, tornando System Shock num jogo jogável de múltiplas formas. Invulgar e extremamente bom...
Sonora e visualmente impressionante, logo desde a introdução cinemática que situa a acção, System Shock só peca por aquilo que exige em termos de «hardware»: um 486 DX2 é o que de mais básico se aconselha para a aventura.
Prestes a surgir no mercado, com o selo da Interplay, Cyberia é outra experiência no domínio do ciberespaço. Concebido pela Xatrix Interactive Design, é uma aventura com um cenário futurista, grupos de terroristas degladiando-se pelo poder e uma humanidade à beira do colapso. Um engenho capaz de acelerar o dia do Juízo Final acaba de ser descoberto nas terras geladas do norte asiático: o nome de código é Cyberia e foi construído há muito tempo pelas mais brilhantes mentes em nanotecnologias e cibernética.
Baseado em múltiplos percursos possíveis em torno de um fio condutor da história, o jogo promete uma experiência visual e sonora ímpar, com imagens animadas 3D de fluidez e precisão exemplares a par com uma banda sonora saída da mente de Thomas Dolby, fundador da Headspace e um dos primeiros compositores a explorar os universos de realidade virtual.
Título: Dreamweb
Produção: Creative Reality
Editora: Empire
Sistema base: 386/4Mb RAM/VGA
Preço: 999500
Título: Bloodnet
Produção: Microprose
Editora: Microprose
Sistema base: 386/2Mb RAM/VGA/CD-ROM
Preço: 999500
TÍtulo: System Shock
Produção: Origin/Looking Glass
Editora: Electronic Arts
Sistema base: 486/4Mb RAM/VGA
Preço: 1199500
Título: Cyberia
Produção: Xatrix Interactive Design
Editora: Interplay
Sistema: 486/8Mb RAM/VGA/CD-ROM
Preço: n/d
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