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<DOCNO>PUBLICO-19941223-009</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19941223-009</DOCID>
<DATE>19941223</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
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José Régio morreu há 25 anos
Um furioso desejo do Nada
Carlos Câmara Leme
Há 25 anos, na madrugada de 22 para 23 de Dezembro, morria em Vila do Conde uma das maiores personalidades da poesia, da literatura e do teatro portugueses. Ao longo da sua vida, sentiu sempre uma grande incompreensão de si próprio e em relação aos juízos que iam fazendo da sua obra. Entre tantas encruzilhadas, entre Deus e o Diabo, José Régio confrontou-se com muitos mistérios, sombras e interrogações. O Círculo de Leitores e a Câmara Municipal de Vila do Conde pressentiram que Régio não podia ser um escritor exemplarmente secreto. Embora ele mesmo tenha confessado ter um «furioso desejo do Nada».
«A vida parece-me um buraco vazio e negro, vazio e negro: sinto-me só e desterrado. Ah! quem me dera desaparecer!... sumir-me sem eu mesmo me sentir!... Tenho um furioso desejo do Nada.» Vila do Conde, 5 de Setembro de 1923. José Régio -- pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira -- tem 22 anos quando escreve, desesperadamente, estas linhas no seu diário. É um jovem, incompreendido, como o será ao longo de toda a sua vida.
«As Páginas do Diário Íntimo», assim como, mas num tom mais «soft», as da «Correspondência» (obras editadas pelo Círculo de Leitores, no quadro das «Obras Escolhidas de José Régio», em 15 volumes, sob a direcção de Eugénio Lisboa), estão cheias de lamentações, queixumes, amargura. Muita amargura. «Às vezes tenho vontade de morrer a um canto», desabafa a 4 de Novembro de 1924.
Mas o que é que estas páginas representam na obra de Régio, uma obra multifacetada da poesia ao teatro passando pelo romance e pelo ensaio? Se é -- como o são todos os diários -- uma confissão, não será também uma máscara, mais uma, das muitas que povoam o percurso regiano? Há várias passagens em que o próprio escritor se interroga sobre a natureza do seu diário. «Para que hei-de eu escrever estas coisas? Já não escrevo neste diário sem me violentar» (Coimbra, 14 de Março de 1924). Duas décadas mais tarde, a 22 de Outubro de 1946, confessa a sua relutância em continuar este registo. Avança duas razões para o fazer: (1) «a ideia de que, mais cedo ou mais tarde, por deliberação minha ou não, este diário virá a ser publicado»; (2) «a certeza antecipada (...) de que nunca, num diário, ousarei dizer `tudo'. Eu quase já tenho ousado dizer tudo -- mas só indirectamente, através da criação artística». Afinal, o que é que representa este Régio (quase) total?
Eugénio Lisboa, o estudioso mais sistemático da sua obra (autor de «José Régio. Uma Literatura Viva», ed. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, e «José Régio ou a Confissão Relutante -- Estudo Crítico-Biográfico e Antológico», ed. Rolim), pensa que o autor de «Jogo da Cabra-Cega» fez «um esforço sincero para dizer a verdade... quase toda»: «Não creio que o tenha conseguido totalmente, apesar do evidente esforço e da evidente sinceridade. Mesmo quando usa máscaras, o autor profundo segue, em geral, o velho `moto': a verdade, só a verdade, mas não toda a verdade.»
Às já citadas dúvidas sobre a importância do seu diário, Régio escreve, em 1946: «A arte ainda é o meu meio de confissão mais próprio; de confissão e de libertação.» A pergunta fatal é: então porquê este diário? Não poderá ele significar, justamente, «esse longo romance confessional para chegar a um posição de espírito em que se me torna impossível (...) sustentar uma certa espécie de camaradagem semiliterária, semimundana, de que várias circunstâncias da vida me afastaram»?
Patinhos feios
À semelhança de outros diários, sobretudo os que são mais contemporâneos -- o «Diário» de Miguel Torga e a «Conta-Corrente», de Vergílio Ferreira --, o de Régio não foge às habituais reflexões sobre a morte, a solidão, a arte -- uma constante ao longo de todo o livro --, a natureza da poesia ou as exigências éticas a que estão sujeitos os intelectuais. Porém, o que salta mais aos olhos é a sentida incompreensão com que os seus contemporâneos, inclusive os seus companheiros de estrada, foram lendo a sua obra. À luz disto, «As Páginas do Diário Íntimo» de Régio estão mais perto das páginas da «Conta-Corrente» de Vergílio Ferreira.
O que escreve em Junho de 1947 -- «quase todos [os críticos] estão ao serviço ou de doutrinas preconcebidas e incompletas, ou dum ressentimento de falhados como criadores» -- não podia muito bem ser subscrito pelo autor de «Aparição»? Sobre esta aproximação, Eugénio Lisboa, se considera «Conta-Corrente» «uma obra maior», com «algumas das mais notáveis páginas que [Vergílio] produziu», acha também que «tem outras detestáveis»: «Por exemplo, aquelas em que se queixa, repetidamente, de ser o patinho feio da literatura portuguesa.» E, neste ponto, Eugénio Lisboa é peremptório: «Não há qualquer semelhança entre Vergílio Ferreira e Régio. A queixa deste tem seriedade, é mais elegante, mais fundamentada e francamente menos escandalosa.» Na sua opinião, enquanto que o autor de «Para Sempre» tem sido «canonizado», Régio foi «torpedeado, em ondas de assalto sucessivas: neo-realistas, católicos, geração de 60».
Eugénio Lisboa, na introdução que faz em «As Páginas do Diário Íntimo», defende que elas não têm «uma tonalidade de contentamento narcisista». Mas o leitor não ficará indiferente às comparações que Régio faz do seu teatro, que considera ao nível do de Gil Vicente ou Garrett... Nem, por exemplo, quando lhe vêm propor Miguel Torga para o Prémio Nobel da Literatura e Régio se indigna «intimamente». E acrescenta: «Pensei que, entre a obra de Torga e a minha, se poderia ao menos, hesitar.» E ainda: «Entre a obra de Torga e a minha, não vejo um abismo em seu favor.» Para Eugénio Lisboa, «ser objectivo em relação à sua própria dimensão não suscita necessariamente o diagnóstico de narcisismo; Régio sabia -- e não lhe ficava mal sabê-lo -- que o seu teatro ocupava um lugar eminente na hierarquia da dramarturgia portuguesa». Quanto ao Nobel, o problema é outro. Régio teria sobretudo ficado ferido -- «que amigos seus e admiradores seus, como Alberto Serpa, não se tenham lembrado de o indicar, eis o que lhe doeu».
«Um novelo de fio que ensarilhou»
Em «As Páginas do Diário Íntimo», há núcleos que não passarão despercebidos a ninguém. Um deles é particularmente forte: o das relações que Régio foi mantendo, até à ruptura, com José Marinho. Os problemas não têm tanto que ver com as visões de ambos sobre a religião ou a filosofia. São coisas terra a terra que, por vezes, também se interligam com João Gaspar Simões, um dos co-fundadores da «Presença». «A ruptura com José Marinho», confirma Eugénio Lisboa, «foi desmedidamente traumática.» O conselheiro de imprensa da embaixada de Londres é muito sensível a esta história. «Alguma coisa `nele' morreu, quando se deu a ruptura com José Marinho». Admite que pode estar enganado, que preferia estar. Um história a que futuras investigações podem trazer novas pistas.
O futuro. Régio «refugia-se» no tempo. No tempo futuro. É como se estivesse a dizer: se o presente não me dá razão, os gloriosos dias que cantam amanhã (não os gloriosos dias comunistas de que ele é convictamente adversário, até porque de si mesmo diz ser «democrata, socialista e cristão»), vão perceber a minha obra, as minhas ideias, o que eu sou na história da literatura portuguesa.
Régio insiste, em particular a partir dos anos 40, nesta tecla: «Pois que o futuro pronuncie a última palavra.» Mas não é completamente crível que os tempos que correm -- apesar da louvável iniciativa do Círculo de Leitores -- lhe dêem razão. Eugénio Lisboa diz que «há sinais bem evidentes de que uma geração mais nova o está não só a ler, mas também a estudar com cuidado». A ASA vai publicar um volume sobre a sua obra. Mas quem conhece e lê Régio? Não é o próprio Eugénio Lisboa que reconhece que «Régio ficará como um escritor exemplarmente `secreto'»?
Talvez não. E ainda bem. Para além das obras publicadas pelo Círculo de Leitores, a Câmara Municipal de Vila do Conde editará no próximo ano uma fotobiografia organizada por Isabel Cadete. É uma recolha -- um retrato -- impressionante: 400 páginas, quase um milhar de fotografias, muitas delas inéditas, incluindo manuscritos quer do diário quer da sua obra. Foram muitos anos de trabalho, com muitos obstáculos para ultrapassar. As obras deviam estar nas montras das livrarias. Não estão. Por desleixo? Por incúria?
Régio sabia que a sua vida -- que ele compara a «um novelo de fio que ensarilhou» -- não era, como todas as vidas transparentes, cristalina. Antes pelo contrário: este homem, para quem o problema da existência de Deus (e do Diabo) era `o' problema, confessa, em «As Páginas do Diário Íntimo», que foi um dia a «uma casa de raparigas» e que as vertigens sexuais andam, por razões que nem ele próprio consegue explicar, de par com a sua criação literária. Nesta terra de medíocres é preciso ter coragem!
Ou como Régio escreve a Adolfo Casais Monteiro, a 26 de Junho de 1936: «Oh, Deus! Quanto custa não ser trapaceiro, nem totalmente estúpido, nem feito de m..., num `certo jardim da Europa à beira-mar plantado', em certos períodos florescentes da nossa história!»
O jardim parece que ainda não percebeu. Paciência.
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