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<DOCNO>PUBLICO-19950211-149</DOCNO>
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<DATE>19950211</DATE>
<CATEGORY>Sociedade</CATEGORY>
<AUTHOR>BS</AUTHOR>
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Sessões de esclarecimento no coração do Vale do Ave
Filhos trabalham pelos pais
Bárbara Simões
As fábricas que empregavam às quinhentas e setecentas pessoas fecharam. As famílias desempregadas têm de recorrer a alguma coisa. Os pais não encontram trabalho, mas as crianças encontram -- diz a coordenadora da Comissão Nacional de Acção sobre o Trabalho Infantil. Estamos em Delães, no coração do Vale do Ave.
«Se os pais tivessem uma vida melhor, já não mandavam os filhos trabalhar». É uma das ideias mais repetidas durante as sessões de sensibilização para o problema do trabalho infantil realizadas, nas escolas, no âmbito do projecto "Tempo para Crescer em Famalicão». No ano passado, foram punidas 95 empresas e detectados 121 menores a trabalhar.
Estão sentados no chão da sala da escola, em frente a uma parede onde se equilibra um Cristo sem crucifixo. Acabaram de ver um filme que começa com dois miúdos a acordar e a sair de casa: um vai para a escola, o outro para a fábrica onde já trabalha. As cenas da criança operária aparecem sempre a preto e branco, em contraste com a rotina a cores da que anda a estudar. Uma «voz-off» repete que «a escola tem um papel insubstituível, juntamente com a família, na preparação da criança».
Em Delães, «o centro do Vale do Ave», nem é preciso ir muito longe com perguntas a seguir à exibição do filme, porque dentro da sala está uma garota de 13 anos que trabalha todos os dias de manhã, antes de ir para a telescola. «É numa confecção pequena. Cheguei a trabalhar numa grande, só que depois fui para uma mais pequena. Gosto da escola, mas também me sinto bem a trabalhar. Gosto de ajudar a minha mãe». Um professor interrompe para explicar que, ali, ajudar a mãe quer dizer ganhar dinheiro; não é de dar uma ajuda na lida da casa que a rapariga está a falar.
Tem sido assim em todos os lados por onde tem passado a equipa do projecto «Tempo para Crescer em Famalicão», a aplicação prática de uma campanha lançada, a nível nacional, pelo Ministério do Emprego e Segurança Social: os miúdos que aparecem na reunião das escolas podem não trabalhar, mas conhecem sempre alguém da mesma idade já com emprego. Dois dias antes de Delães, numa outra freguesia, em Bairro, falaram num rapaz de 13 anos que deixou a escola para ser trolha; na semana anterior, em Riba d'Ave, tinha aparecido um outro «empregado» na construção civil; em Joane, quando se perguntou às crianças se tinham amigos que trabalhavam, os braços no ar eram tantos que causaram admiração.
Articulado formalmente com o Instituto do Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT), o projecto de Famalicão envolve a Confederação Nacional de Acção Sobre Trabalho Infantil (CNASTI), a Câmara Municipal, as juntas de freguesia, as paróquias, o Centro Regional de Segurança Social, as associações de pais, o centro de saúde, a delegação escolar, os conselhos directivos, a Associação Industrial do Minho e o Tribunal de Trabalho.
As acções nas escolas abrangem 11 localidades. Destinam-se sobretudo a crianças com idades compreendidas entre os 8 e os 14 anos, mas constituem também uma oportunidade de sensibilizar e ouvir o que os professores e os pais têm a dizer. E o que eles dizem não se afasta muito de uma das opiniões que se ouviram em Delães: «Muitas vezes, o trabalho infantil é uma necessidade das famílias. Os recursos são tão fracos que obrigam os filhos a trabalhar. Se os pais tivessem uma vida melhor, já não mandavam os filhos trabalhar».
Escola? Para quê?
Uma professora acrescenta: «Também acho que, nestas zonas, as crianças não estão muito motivadas para frequentar a escola, porque não vêem grande utilidade nisso. Vêm porque têm de vir. Em casa, a escola é vista como um sítio para eles estarem. O que importa mais é o recreio e a hora da brincadeira -- porque estão livres e têm companhia. O importante era convencer os pais de que os filhos, aprendendo, ficam mais aptos a ter uma vida melhor».
É a vez de o presidente da Junta de Freguesia pôr o dedo na ferida e lembrar que o que se verifica -- «o recrutamento neste viveiro» das crianças -- «tem muito a ver com o nosso tecido empresarial». As fábricas que empregavam às 500 e às 700 pessoas fecharam. «Todos os dias lemos nos jornais: é uma que está a falir, é outra que está a despedir, é o pai que não recebe, é o fundo de desemprego que está a acabar. O quadro não é muito risonho. As pessoas têm receio de não conseguir emprego, porque já atingiram alguma idade».
Como resume a coordenadora da CNASTI, Deolinda Machado, «as pessoas desempregadas têm de recorrer a alguma coisa» e o que acontece é que «os pais não encontram trabalho, mas os filhos encontram». A diferença salarial, além disso, não é assim tão grande. «Um míudo é capaz de ganhar 30 contos e o pai não ganhará muito mais, até porque é sujeito a descontos. Para o patrão também compensa, porque não tem de descontar, por isso a entidade empregadora opta pela criança».
Nas escolas, nota-se já uma renitência maior em falar do assunto. Não por parte dos professores, mas dos miúdos. Deolinda Machado constata que as crianças «estão já mais instrumentalizadas para esconderem o fenómeno e mesmo os professores sentem muitas vezes dificuldades em obter respostas». Por outro lado, regista-se uma tendência de levar mais o trabalho infantil para as zonas rurais do interior, «uma estratégia de quem quer fazer este tipo de exploração e vai para onde é mais improvável chegar uma voz que denuncie».
Para a coordenadora da CNASTI, tem sido evidente, no trabalho que acompanhou nas escolas, que o insucesso está associado aos fracos recursos -- económicos e culturais -- dos pais e a problemas como as famílias numerosas, o alcoolismo e mesmo a droga. «Na zona de Guimarães, soubemos mesmo de um miúdo que tinha de trabalhar para a mãe, que era toxicodependente».
Os cafés, as confecções, o trabalho à peça em casa e a construção civil continuam a ser as artes profissionais que mais ocupam as crianças. Juntam-se-lhes as padarias. «Às quatro e meia ou cinco da manhã, vão distribuir o pão. Entram nas carrinhas, mas não vão à frente, vão atrás, entre os sacos, porque assim não se vêem. E é claro que a inspecção a essa hora não anda na rua». Nas padarias, as idades são ainda mais baixas, atingindo, segundo Deolinda Machado, os 11, os 10 e mesmo os 9 anos. «Fala-se em trabalhos leves -- eu não acredito que os haja», é a convicção da coordenadora da CNASTI.
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