<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19950212-113</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950212-113</DOCID>
<DATE>19950212</DATE>
<CATEGORY>Mundo</CATEGORY>
<AUTHOR>LD</AUTHOR>
<TEXT>
Ralph Giordano ao PÚBLICO
«Como se o crime tivesse começado em Dresden ...»
Lina de Lonet Delgado, em Colónia
Ralph Giordano abriu uma enorme polémica, no fim do ano passado, ao escrever ao Presidente Roman Herzog, lembrando-lhe que Dresden não podia ser transformada numa espécie de holocausto alemão, de forma a relativizar a culpa e a responsabilidade fundadora do nazismo. Em entrevista ao PÚBLICO, explica a razão porque é que ainda hoje «os alemães não sabem chorar os seus mortos».
Filho de uma professora de piano judia e de um músico descendente de italianos, Ralph Giordano nasceu em Hamburgo em 1923. Ainda muito jovem foi catalogado com «meio judeu», perseguido e torturado pela Gestapo. Sobreviveu. Após uma longa odisseia, tornou-se escritor e documentarista de cinema. É um intelectual respeitado e polémico. E também odiado: recebeu nos últimos anos, 856 cartas com ameaças de morte, a última delas na semana passada.
No se apartamento em Colónia, onde vive como numa caixa forte de recordações, Giordano falou ao PÚBLICO. Foi um longo monólogo sobre a Alemanha, «essa pátria difícil a que fiquei ligado pela língua, a maravilhosa ferramenta da minha profissão ... e pela dor».
PÚBLICO -- O senhor escreveu ao Presidente Roman Herzog, a pedir que não discursasse nas cerimónias de Dresden. Não concede aos alemães o direito de, também eles, recordarem os seus mortos?
RALPH GIORDANO -- Desde a minha libertação em Hamburgo, no dia 4 de Maio de 1945, que a minha vida é uma confrontação ininterrupta com a mentalidade do «estamos quites». Com pessoas que comparam Dresden a Auschwitz, que aumentam o número de vítimas alemãs e diminuem as do Holocausto. Pessoas que dizem que o bombardeamento de Dresden foi um crime «porque aconteceu já no final da guerra». Quer isso dizer que a destruição de uma cidade no início da guerra seria menos terrível? Será que também se indignaram quando Guernica foi bombardeada [pelos alemães] em 1937? Não disseram nenhuma palavra quando Varsóvia foi atacada. Roterdão, Londres, Coventry... Não, para eles o crime de guerra começa em Dresden. Isso indigna-me e foi isso que escrevi a Herzog. Eu não lhe pedi para não discursar, tão pouco pretendi dar-lhe uma lição. Quis apenas alertá-lo para um perigo: se uma tal cerimónia não for enquadrada no âmbito histórico correcto, irá ter pessoas indesejáveis a dar-lhe palmadinhas nas costas.
P. -- Essas pessoas são representativas daquilo que os alemães sentem?
R. -- Eu não falo de «os alemães», mas de uma grande parte deles que só comparam uma montanha de cadáveres com outra montanha de cadáveres. Que dizem que não foram mortos seis milhões de judeus, mas só quatro ou cinco milhões, como se isso fosse uma consolação. Os falsos justiceiros de Dresden não se interrogam sobre a responsabilidade da Alemanha pelo que aí aconteceu.
Eu não tolero que me ensinem o que é sentir luto pelos mortos. Eu nasci em Hamburgo e assisti ao bombardeamento maciço de Julho de 43, a essa nova era de Sodoma e Gomorra. Mas os verdadeiros criminosos foram aqueles que, sabendo que nada podiam fazer [para defender a população], continuaram a guerra. Hitler e os seus apoiantes. Esta Alemanha depois de 1945, tal como depois de 1918, tentou livrar-se de tudo isso tão depressa quanto possível. Alexander e Margarete Mitscherlich tocaram o cerne do problema, ao falar da «incapacidade de lamentar»: os alemães não conseguiram chorar os seus mortos.
P. -- Porquê?
R. -- Porque não conseguiram digerir a sua «liaison» com o nacional-socialismo, porque apoiaram um sistema que se mostrou criminoso desde o início. Aqueles que dizem «nós não sabíamos de nada», referem-se a Auschwitz, e com efeito, no que diz respeito à dimensão, aos pormenores, certamente não souberam.
Mas era preciso conhecer Auschwitz para fazer alguma coisa contra o nacional-socialismo? O que é que foram os anos 33 a 41, o que foi a Noite de Cristal em 38? Os partidos foram proibidos logo em 33, os sindicatos foram proibidos. Lojas de judeus foram boicotadas e livros queimados publicamente. As leis rácicas de Nuremberga foram feitas em Setembro de 1935!
O que eles pretendem é livrar-se da culpa. Eles dizem que os campos de concentração não são uma invenção alemã, que foram os ingleses que os criaram no século passado. Disso eles estavam bem informados. Mas dos seus próprios campos de concentração não sabiam de nada. Ainda do mesmo fôlego dizem «e nós não podíamos fazer nada». Então só se pode perguntar: contra o que é que vocês queriam fazer... se não sabiam de nada? Contra aquilo que desconheciam? Tudo isto mostra que este povo sofreu uma incrível perda de valores humanos. Nós lidamos aqui com uma geração cujas mentiras de vida atingem o mais profundo do seu ser. E elas determinaram a cultura política na RFA.
A «segunda culpa»
P. -- Como é que a questão foi tratada na RDA?
R. -- A RDA também não foi melhor. A RDA declarou-se co-vencedora da II Guerra e o Politbüro decretou todos os seus habitantes como nascidos antifascistas. Esse sistema não estava em condições de pensar o nacional-socialismo, porque ele próprio era uma mentira pegada. As duas repúblicas alemãs tentaram contornar os himalaias de cadáveres que os nazis tinham amontoado. A isso eu chamo a «segunda culpa», o recalcamento do passado, a integração social da maioria dos antigos culpados no sistema. Ela é o húmus deste ódio racista aos estrangeiros. O problema de hoje é um resultado do recalcamento feito pela geração dos pais e avós.
P. -- Passados 50 anos, temos uma nova geração na Alemanha da qual não se pode esperar que assuma a responsabilidade da guerra e do Holocausto. Não é tempo de se começar a falar antes em termos de «responsabilidade» para o futuro?
R. -- O passado tem a característica desagradável de não se poder fazer voltar atrás, e pessoas que não trabalham o seu passado, só contribuem para que ele se mantenha sempre presente. Eu dedico precisamente o meu livro «Segunda culpa ou do peso de ser alemão» a esses filhos, filhas e netos inocentes.
Claro que é horrível ter de confrontar uma geração com crimes em que não participaram de modo algum, mas é a corrente da responsabilidade nacional, que continua. Através do recalcamento, os pais e avós empurraram o seu passado para os filhos. Não se apresentaram como testemunhas, não disseram «foi assim com Hitler, este foi o nosso papel», não assumiram a autocrítica. Quando falo em escolas secundárias, sei que confronto esses jovens com uma coisa terrível, é um fardo que lhes transmito. Sei que são inocentes. A única razão porque o faço é para informar. Para que não mais se repita.
P. -- Como é que esses jovens reagem?
R. -- O processo da transmissão da responsabilidade a gerações que não conseguem sequer imaginar [o que se passou], é muito complexo. Nesta sala cabem 200 pessoas ombro a ombro, até mais... assim estavam elas nas câmaras de gás, e depois deitava-se Ziklon B para dentro, e dez minutos mais tarde tudo tinha acabado. Como é que os filhos da democracia conseguem imaginar uma coisa destas? Como é que podem compreender que os seus avós se tornaram assassinos, apesar de nunca terem acreditado que o pudessem vir a ser?
P. -- Como de reflecte isso na identidade alemã?
R. -- É uma questão complicada. Mas há factores importantes. Uma identidade nacional ainda nunca existiu na Alemanha. A Alemanha não se tornou num Estado centralizado através de um processo histórico orgânico como noutros países. Na Guerra dos 30 Anos, a Alemanha foi dividida em 300 parcelas, e isso só foi ultrapassado através da fundação do Reich, em 1871. Uma unidade imposta «de cima», e com a ajuda de três guerras -- contra a Dinamarca, a Áustria e a França. É aí que tudo começa, por assim dizer. Vinte anos depois da sua criação, o II Reich já era mais forte que qualquer dos povos vizinhos. Um colosso no centro da Europa, que encontrou um mundo que já tinha sido repartido. E não se deve esquecer que, na história deste II Reich, a Alemanha tentou por duas vezes alterar as relações de forças em seu proveito, pela força das armas, e falhou.
Os alemães só encontraram identidade num falso orgulho e isso deu os seus frutos.
P. -- Como a tese da «Alemanha, eterna vítima da História»...
R. -- Essa tese perdura até hoje. [O Tratado de] Versalhes, a crise económica mundial e o desemprego seriam os culpados da ascensão de Hitler ao poder, não uma justiça reaccionária, não uma polícia sempre atiçada contra a esquerda, não o império da imprensa alemã, não o anti-semitismo, não o militarismo... Não. Os culpados [dizem eles] foram Versalhes e o desemprego.
Característico é ainda o facto de defenderem que o mal vem sempre de fora. Os responsáveis pela História e pelas catástrofes nacionais não são os alemães... mas as potências estrangeiras. Gerd Frey, director do jornal «Nationale Zeitung», diz que a II Guerra Mundial foi um campo de batalha de extermínio contra a Alemanha. E depois seria vítima de Ialta, de Potsdam, da justiça dos vencedores, da desnazificação, da divisão do país, das perdas dos territórios do Leste. Alemanha vítima, vítima, vítima... E os iniciadores da «Querela dos Historiadores», em 1985, dizem que sem os «gulag» soviéticos não teria havido Auschwitz. Até a responsabilidade de um crime tão genuinamente alemão é remetida para um poder estrangeiro. E essa atitude vai até às esferas do poder.
Kohl, o tipo de alemão comum
P. -- Em que medida?
R. -- Tome como exemplo o chanceler Helmut Kohl...
P. -- ... ele diz que não se pode reduzir a História alemã a 12 anos.
R. -- E até tem razão. Agora aquilo que ele quer dizer com isso é que é característico de um homem que não tem nenhuma ligação interior às vítimas, nem com umas nem com outras.
Kohl representa um tipo alemão muito comum, um homem que não tem ligação emocional com as minorias, com os mais fracos, com os que têm de ser defendidos. Isso vê-se quando falta em indulto dos que nasceram mais tarde. Só mostra que não percebeu nada. Quando levou Ronald Reagan a visitar o cemitério nazi em Bittburg, só ilustrou a sua relação deturpada com o passado. Richard von Weizsäcker, por exemplo, também é um conservador. um democrata-cristão, mas é outra coisa: ele foi o Presidente alemão que conquistou o meu coração judeu. Mas muitos conservadores, muitos nacionalistas têm problemas em confrontar-se com a História porque os conservadores e os nacionalistas ajudaram a que Hitler, degrau a degrau, tomasse o poder a 30 de Janeiro de 1933.
P. -- Mas na Alemanha também há muita gente que pensa de maneira diferente...
R. -- Muita coisa mudou. Hoje a maior parte dos alemães reconhece a verdade histórica de Auschwitz. Nem sempre foi assim. E a nova geração de alemães é a menos bélica de toda a História.
P. -- Ao ponto de já serem criticados pelo seu «pacifismo radical»...
R. -- Sim, isso também se pode tornar problemático. A Alemanha terá que assumir a sua parte da responsabilidade perante os conflitos internacionais, quando um agressor tiver que ser travado, como Saddam Hussein. Caso contrário, as mães francesas, inglesas, italianas... irão interrogar-se porque é que os seus filhos têm que ir para a guerra e os alemães não. Mas de momento eu constato, com grande satisfação, que os alemães de hoje são os menos bélicos de sempre.
As manifestações [durante a guerra do Golfo] tocaram-me, apesar de não ter ouvido aí uma única crítica a Hussein, mas só aos americanos. Os jovens alemães mostravam medo de serem envolvidos numa guerra. E isso é algo de novo na História alemã. Os pais e os avós também terão tido medo, até poderão ter sido contra, mas não o mostraram e marcharam para a frente de batalha de Hitler.
Esta Alemanha não é uma Pátria fácil
P. -- Não exprime esse medo também uma falta de auto-confiança?
R. -- Sim, é outra vez a velha questão da identidade. É muito difícil. Os alemães ainda não se encontraram, tão pouco ultrapassaram o facto de terem aplaudido um homem como Hitler. Por outro lado, como é que os nascidos depois da guerra haviam de encontrar a sua identidade?
Ao longo de décadas sentiram-se cidadãos da RFA, os outros da RDA, e ambos sabiam que havia uma outra Alemanha. A História não permite aos alemães uma relação fácil com o conceito de nação e identidade. O que perigoso porque os demagogos de direita podem apoderar-se destes conceitos. Claro que é importante que uma nação encontre a sua própria identidade, o contrário é um vazio perigoso. Como se viu depois da I Guerra Mundial, apesar de eu não acreditar na possibilidade de uma repetição.
O que me perturba não é tanto o receio da extrema-direita como o espaço de movimento que aqui lhe é permitido. A questão da identidade perdurará. Mas com a reunificação foram criadas condições para que uma nova geração tenha uma atitude mais descontraída. No entanto, uma identidade não é possível sem o reconhecimento da História. Esta Alemanha não é uma pátria fácil, especialmente para pessoas com a minha biografia.
P. -- O que é o levou a ficar aqui?
R. -- É uma longa história. Em 1938-39, nós deixámos de querer pertencer ao colectivo. «Alemão» tornou-se sinónimo de inimigo. Na guerra sentimo-nos como parte da aliança anti-Hitler, como uma parte dos aliados. A nossa vida era uma partida entre a Solução Final (Endlösung) e a Vitória Final (Endsieg) dos aliados.
Antes da libertação, nós dizíamos que, se sobrevivêssemos a Hitler, o que nunca acreditámos, abandonaríamos a Alemanha o mais depressa possível. Não foi assim, por razões que antes desconhecia. Em primeiro lugar, punha-se a questão: o que seria desses alemães que nos esconderam e ajudaram a sobreviver pondo a sua própria vida em risco? Muito rapidamente tomámos consciência de que, depois desse estado de choque imediato, o velho espírito dos alemães viria outra vez à superfície.
A terceira razão foi a língua. A língua alemã é a maravilhosa ferramenta da minha profissão. Eu sempre tinha querido escrever. Tinha aprendido sete línguas, mas a minha alma exprimia-se na língua alemã. Com ela nunca tive dissonâncias, nem mesmo nos piores tempos nazis. Dez, quinze anos mais tarde, apercebi-me então que havia aqui milhões de pessoas como eu, alemães que pensavam como eu.
Todas estas coisas juntas foram mais fortes do que os traumas. Tem que ser uma ligação muito forte, porque os traumas são irreparáveis. Ainda há dias acordei no chão com os meus gritos. Os pesadelos aproximam-se, cada vez mais, à medida que o tempo se vai afastando. O tempo não sara. Este país é o meu destino. Esta dor terrível que me liga à Alemanha é um laço muito forte.
P. -- Como é que vê a Alemanha hoje?
R. -- A outra Alemanha não vai voltar, ao nível militar não voltará a ser perigosa para os seus vizinhos. O problema é outro, a debilidade democrática e o seu peso: o seu potencial de produção que faz de Portugal, Espanha... os anões. Quando se ultrapassar o fosso entre a antiga RDA e a RFA, a França e a Inglaterra serão liliputianas. A questão é: irão os alemães ter a sensibilidade para os medos dos seus vizinhos? Então se verá se os alemães aprenderam com a sua História.
P. -- E aprenderam?
R. -- Eu diria que uma parte sim, uma parte não. E a parte que não aprendeu irá mostrar-se nestas cerimónias de Dresden, ou no 8 de Maio, o Dia da Libertação, quando começarem a falar nos «crimes dos Aliados».
Quando Dresden foi bombardeada, a Europa estava em ruínas, em consequência da agressão alemã -- era sangue, lágrimas e destroços. Sobre isso os falsos justiceiros de Dresden não irão perder uma única palavra. 1945 foi o ano em que o «boomerang» da violência se voltou para trás, atingindo os que o tinham lançado. Só aí é que começou o grande choro dos alemães.
É preciso dizer-se que foram cometidos crimes horríveis contra os alemães, especialmente no Leste, violações maciças, cerca de dois milhões de mulheres foram violadas. Mas não se deve esquecer, mais uma vez, que se o Exército Vermelho chegou até ao Elba foi porque Hitler invadiu a União Soviética no dia 22 de Junho de 1941. São estas relações entre causa e efeito, a cronologia dos acontecimentos, que os falsos justiceiros de Dresden ignoram completamente.
Para já não falar nessa sua compensação «Dresden contra Auschwitz» ou o «não sabíamos nada». Quem argumenta assim não sabe o que foi o Holocausto.
A reunificação
P. -- Que papel desempenhará a reunificação alemã neste processo?
R. -- Confesso que nunca acreditei assistir em vida à reunificação alemã. Eu estava sentado nesta cadeira, na noite de 9 de Novembro, e quando comecei a ver na televisão como de repente as pessoas passavam o muro... chorei como um cão. Um sistema tinha acabado, o estalinismo em solo alemão tinha rebentado. Era o fim da guerra fria.
A reunificação alemã, apesar de todos os problemas, espelha uma coisa fantástica. Mas a questão da culpa coloca-se, mais uma vez, com o passado estalinista da RDA. Apesar de não ser comparável -- o peso criminoso do Estado do Holocausto é diferente de tudo aquilo que o SED (partido comunista da RDA) fez -- um regime monstruoso como socialismo real não se torna menos monstruoso porque houve um ainda mais monstruoso.
P. -- E mais uma vez os alemães se vêem confrontados com a questão da culpa...
R. -- Dois passados hipotecados... Se a Alemanha actuar em relação ao seu passado estalinista como actuou em relação ao nazi, então em meados do próximo século estaremos perante o mesmo problema de hoje. Eu noto paralelos incríveis entre o recalcamento depois de 45 e depois de 89. De repente, já não há de novo culpados, todos foram forçados, todos são vítimas. Mas entre eles há uma «espécie especial»: as «vítimas das vítimas». Isto é, no momento em que as vítimas de ontem acusam os responsáveis de ontem, então os responsáveis de ontem «transformam-se» nas vítimas de hoje. Isso é muito característico da Alemanha.
P. -- O senhor escreveu a Helmut Kohl a participar que ia adquirir uma arma para autodefesa. Não tem confiança nos mecanismos democráticos da RFA?
R. -- Eu escrevi essa carta a 23 de Novembro de 1992. Durante a noite vários turcos tinham morrido num atentado incendiário em Molln. De manhã, tinha encontrado a 222ª ameaça de morte na minha caixa do correio desde o atentado contra candidatos a asilo em Hoyerswerda, um ano antes. O ódio aos judeus voltara a crescer terrivelmente.
A mensagem central, que ainda hoje mantenho, era: nós, sobreviventes do Holocausto, nunca mais estaremos desarmados frente aos nossos inimigos de morte. E o delito não é a carta que um judeu teve de escrever no ano de 1992 porque o Estado mostrava uma insustentável passividade perante o perigo da extrema-direita. O delito são as circunstâncias que levam um judeu, em 1992, a ter que escrever uma tal carta. Eu não sou nenhum «pistoleiro» judeu. Entretanto nada mudou.
P. -- Mas foram proibidos alguns partidos extremistas, os aparelhos policial e judicial começaram a agir com mais rapidez...
R. -- São operações de cosmética. Duas ou três organizações declaradamente nazis foram proibidas, mas quantas existem? Mais de 80. E os pais espirituais são muito mais perigosos do que esses activistas na frente contra os estrangeiros. E, no entanto, não lhes acontece nada.
P. -- Porquê?
R. -- Porque este Estado nunca foi anti-nazi. Nunca! Este Estado de Direito trata os criminosos com punhos de renda. Veja-se o recente caso dos dois conhecidos neonazis, em Hamburgo, que falaram no «mito Auschwitz». Negar Auschwitz é punível por lei, mas o juiz diz que a expressão «mito» não implica negação...
Eu tenho confiança nos meus companheiros que defendem a democracia. Mas não tenho confiança naqueles que deixaram que a situação chegasse onde chegou. Não quero dizer que sou fatalista, ou que a direita vai ganhar. Não! Nós somos mais fortes. O aparelho de Estado está agora mais activo, mas também se sabe que estes grupos estão a preparar-se para a violência na clandestinidade. Quando o primeiro judeu for assassinado, esta república ficará em maus lençóis. Será uma situação nova. Esperemos que não se chegue a esse ponto.
Desde Setembro de 1991 eu recebi 856 ameaças de morte, a última na semana passada, todas anónimas. E eles sabem muito sobre mim, isso vê-se num fax que já recebi 13 vezes sem que a polícia consiga identificar o remetente. Neste fax dizem que, aqui, do outro lado do Reno, foi preparada uma câmara de gás para mim, e que já a experimentaram com um porco doméstico de 69 quilos. É o meu peso.
O perigo é que o Estado trata os extremistas de direita como parentes afastados, enquanto, no passado, soube declarar guerra aos extremistas de esquerda. Mau augúrio. Mas não capitulo. Na minha vida houve um medo inicial, na era nazi, em que o nosso crime era a nossa existência, que agora me dá coragem. Eu sobrevivi.
Dresden
P. -- As autoridades dizem que fenómenos idênticos se registarem noutros países...
R. -- Em 1993, aqui ao lado, numa rua comercial, uma miúda turca estava a ser terrivelmente espancada por três «skinheads». Todos os presentes fizeram como se não vissem nada, até que um homem a foi tirar dali. Eu não tenho os alemães de hoje por tão decadentes que não quisessem ajudar essa miúda. Tenho a certeza que muitos a queriam ajudar. Mas não o fizeram porque tiveram medo de serem eles a próxima vítima. E o terrível é que o seu medo não era injustificado. Eles não podiam estar seguros da solidariedade dos outros transeuntes. É isso a vergonha na Alemanha dos anos 90: que esses criminosos contem com a falta de coragem cívica. É verdade que também acontece noutros países, mas quer isso dizer que por assim ser é menos mau? O que aqui se tenta, e mais uma vez, é relativizar a culpa.
As coisas não são o mesmo na Alemanha ou na França. Sobre a História alemã pesa Auschwitz. E não foi a França que ocupou a Europa em 1939. É por isso que um mesmo acto não tem o mesmo peso. É isso que se tem de dizer aos alemães.
P. -- Mas implica tudo isto que não se deva recordar as vítimas de Dresden? Não se está, pelo contrário, a deixar o trabalho de luto às pessoas erradas?
R. -- Não se pode recordar as vítimas, se isso não for dirigido contra aqueles que, em primeiro lugar, foram responsáveis pela sua morte: Hitler e os seus apoiantes. Uma cerimónia solene que não siga esse princípio não é credível. Os aniversários... perguntaram-me o que é que eu sentia no 50º aniversário da libertação de Auschwitz. Eu não preciso das cerimónias para recordar Auschwitz. Auschwitz está em mim, é o compasso da minha vida.
P. -- Recebeu resposta à sua carta a Roman Herzog?
R. -- Não, ele não respondeu, nem vai responder, mas estou certo que ele me ouviu. Agora é com ele.
</TEXT>
</DOC>