<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19950213-008</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950213-008</DOCID>
<DATE>19950213</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>LMQ</AUTHOR>
<TEXT>
Ben Kingsley, protagonista de «A Noite da Vingança», comentou ao PÚBLICO o último filme de Polanski
«O cinema não aceita truques»
Deixando para trás uma bem sucedida carreira de actor shakespeariano, Ben Kingsley, britânico de ascendência indiana, celebrizou-se no cinema com a sua alucinante interpretação de Gandhi, premiada com um óscar em 1982. Uma encarnação tão perfeita, que se tornava difícil imaginá-lo noutro papel. Mas, desde então, Kingsley ofereceu-nos um convincente Lenine, ressuscitou Shostakovich, emprestou o rosto ao caçador de nazis Simon Wiesentahl, vestiu a pele de um cavalheiro otomano em «A Ilha de Pascali», foi árabe em «Harém» e judeu polaco na «Lista de Schindler». Em «Death and the Maiden» («A Noite da Vingança»), de Polanski -- filme que veio apresentar ao Fantasporto -- é um médico sul-americano. No futuro próximo, afirmou ao PÚBLICO, quer interpretar «pessoas simples, em situações do dia a dia».
Ben Kingsley esteve no Porto para falar do seu último trabalho: a interpretação do dr. Roberto Miranda em «A Noite da Vingança», de Polanski, que integrou a secção competitiva do Fantasporto. Kingsley, que participou anteontem à noite na sessão de encerramento do festival e recebeu um prémio pela sua carreira de intérprete, encarna neste filme um médico sul-americano -- sugeridamente chileno --, que é mantido prisioneiro por uma mulher (Sigourney Weaver) que o identifica com o homem que a torturara e violara há 15 anos atrás, quando o país se encontrava sob uma ditadura fascista. Baseado numa das mais representadas peças da actualidade -- «Death and the Maiden», de Ariel Dorfman --, o filme de Polanski deixa que seja o espectador a decidir se o alegado torcionário é efectivamente culpado, ou se -- para usar as palavras de Kingsley -- «ela apanhou o tipo errado». Foi este o desafio lançado ao actor: persuadir da sua inocência não apenas a sua suposta vítima, e o respectivo marido (Stuart Wilson), mas também os espectadores do filme. «Para fazer este papel, tive de decidir primeiro se a personagem era culpada ou inocente», reconhece Kingsley, ocultando, por motivos óbvios, a opção que tomou...
PÚBLICO -- Em «Death and the Maiden», o espectador sai sem ter a certeza se o dr. Roberto Miranda é culpado ou inocente; através da sua interpretação, Polanski consegue manter a ambiguidade até ao final...
Ben Kingsley -- Num papel como este, senti que era fundamental tomar uma decisão acerca da personagem, decidir se ela era culpada ou se estava inocente. Mas julgo não dever divulgar a opção que tomei. Não a confessei, sequer, aos outros actores; costumo partilhar as minhas ideias, mas desta vez preferi não o fazer, para não os influenciar. Conversei apenas com Polanski, em privado. A ambiguidade mantém-se, de facto, até ao fim. Só na última cena, quando está à beira do precipício e lutando pela vida, a personagem admite a culpa, mas naquelas circunstâncias, qualquer um o faria, para se salvar.
P -- Deve ser mais dolorosa a identificação com um torcionário do que com um homem inocente; mas, por outro lado, a um actor que assume gostar de desafios, a primeira hipótese pareceria, talvez, mais fascinante...
R -- Em ambos os casos seria fascinante. Do ponto de vista do espectador, esta ambiguidade implica que ele não saiba se estou a interpretar um inocente, ou a representar um actor que interpreta um inocente. O dr. Miranda representa pela sua vida; e é com este aspecto da personagem que me identifico, já que todos nós, seja por apenas cinco minutos, seja ao longo de vários dias, vivemos essa experiência: lutamos para fazer funcionar um argumento, para conquistar uma mulher... Foi muito perturbante desempenhar este papel, pelo facto de estar ali atado a uma cadeira e de os actores com quem contracenava me acusarem de ter feito coisas horríveis. Uma vez, tive de abandonar a filmagem, por alguns momentos, e só sosseguei quando Polanski me garantiu que eu estava a ir bem.
P -- Já tinha trabalhado com Sigourney Weaver em «Dave», de Ivan Reitman...
R -- Admiro muito o talento e a coragem da Sigourney. Interpreta aqui uma mulher da qual abusaram das formas mais terríveis -- choques eléctricos, violações --; é um papel que, necessariamente, afecta psicologicamente o actor. Também já trabalhara com Stuart Wilson na Royal Shakespeare Company; quando eu fiz de Hamlet, ele foi Laertes.
P -- E que balanço faz desta sua primeira colaboração com Polanski?
R -- Polanski é brilhante; sabe mais acerca do comportamento humano, dos seus padrões -- dessa dança humana --, que qualquer outro realizador com quem tenha trabalhado. Acredito que isso tenha muito a ver com a sua infância polaca no ghetto de Cracóvia; aprendeu a sobreviver antecipando o comportamento humano: «este homem vem oferecer-me um pedaço de pão, ou vem dar-me um tiro?». Uma das razões da imediata cumplicidade que senti com Polanski prende-se com o facto de o ghetto de Cracóvia também não me ser desconhecido, pois vivi a sua recriação na «Lista de Schindler».
P -- Não se sabe em que país decorre «Death and the Maiden», mas a associação com o Chile parece inevitável.
R -- A acção passa-se num país da América do Sul que se livrou recentemente duma ditadura, mas é natural a associação com o regime de Pinochet. Eu conheci Victor Jara, depois barbaramente assasinado, e fui presidente da Comisssão de Solidariedade com o Chile. Por coincidência, quando participei num espectáculo para financiamento desta comissão, li um belíssimo poema de Ariel Dorfman, que então ainda não conhecia e que é, justamente, o autor da peça «Death and the Maiden».
P -- Polanski quis fazer um filme político?
R -- Qualquer bom filme, qualquer bom livro, qualquer grande obra de arte é sempre uma declaração política, que envolve a sensibilidade, a inteligência, os preconceitos. Suponho que é de Camus a frase «quem disser que arte e política não têm nada a ver uma com a outra, não compreende a palavra arte nem a palavra política». Neste filme, assistimos à relação entre um casal que viveu muitos anos com mentiras, com disfarces -- por isso é que a minha personagem consegue dividi-los, explorar essas falhas. É também um filme sobre a vingança. É uma coisa terrível, a vingança, e que se transmite de geração em geração, como o leite materno: os sérvios esperaram 600 anos para apanhar a jeito os muçulmanos.
P -- «Death and the Maiden» é um filme violento. O que distingue esta violência da de filmes como «Natural Born Killers» [«Assassinos Natos»], de Oliver Stone, ou «Pulp Fiction», de Tarantino?
R -- São dois filmes que apreciei, mas em termos operáticos, pela sua forma, estilo, sentido de humor. O filme de Polanski é muito mais naturalista, e permite maiores subtilezas de interpretação. Em obras como «Pulp Fiction» o actor tem de seguir à risca o que o realizador diz. O perigo destes filmes, na América de hoje, é o de terem de explicar aos espectadores que «é tudo a brincar»; deviam mostrar um grande cartaz, no início, a dizer «não saiam por aí a fazer estas coisas». Na América há o receio de que os miúdos as façam mesmo, porque não sabem distinguir entre um drama, uma história, e um ralizador que lhes está a dizer: «assim é que vocês têm de viver, rapazes, isto é `cool'». Quanto a Polanski, julgo que é um homem altamente qualificado para falar da violência, não porque seja sádico, mas porque a sofreu.
P -- Antes de se tornar actor de cinema, fez carreira no teatro. São coisas muito diferentes?
R -- Não faço teatro há nove anos. Sinto-me mais livre no cinema. Apesar da presença da câmara e de haver uma série de decisões que são tomadas por outras pessoas, tenho mais controle sobre a personagem. Na Royal Shakespeare Company actuava em grandes salas, com 1500 lugares. No cinema, a câmara está ali em cima de nós, vê tudo, e, então, deixamos de representar. O que ela filma é o comportamento; à frente da câmara temos de ser nós, ela não aceita outra coisa. O cinema não aceita truques, não aceita representações.
P -- Há algum actor -- refiro-me aos actores de cinema -- que aprecie especialmente, que lhe sirva de referência?
R -- Há um ou dois cujos trabalhos revejo constantemente, e sempre com a mesma admiração. Destaco Spencer Tracy. Mas Spencer trabalhava muito, todos os dias, para conseguir despir-se de toda a artificialidade e aparecer assim, completamente natural, diante das câmaras.
P -- E com que realizadores gostaria de vir a trabalhar?
R -- Podia referir vários: Kieslowski é um deles, Jane Campion é outra.
P -- Encara a hipótese de um dia vir a somar à sua carreira de actor a experiência da realização?
R -- Espero que me seja dada a oportunidade de realizar um filme, mas apenas se sentir a necessidade urgente e irresistível de contar uma determinada história. Não é uma ambição em termos de carreira, não creio que tenha de dirigir um filme para crescer como artista.
P -- Enquanto isso não acontece, que projectos têm, como actor?
R -- A maioria das personagens que representei são pessoas isoladas, seres à parte; mas não poderei fazer isso por muito mais tempo. Agora, quero interpretar pessoas simples, no seu quotidiano, dar expressão a esse outro lado da minha vida. Sou uma pessoa normal, com desejos normalíssimos.
P -- «Gandhi» criou-lhe a reputação de um actor que se identifica profunda com as personagens que encarna. Realtivamente a outros papéis, foi-lhe especialmente fácil identificar-se com o líder indiano?
R -- Eu tento construir barreiras entre mim e a personagem, é vital que o façamos, sob risco de enlouquecermos. Mais do que o argumentista ou o realizador, somos nós que temos de olhar pela nossa personagem; e depois custa deixá-la ir embora, mas tem de ser assim. Empatia e identificação são coisas diferentes. A personagem que levei mais tempo a conseguir abandonar foi a que representei em «A Lista de Schindler», porque levava seis milhões de vítimas na minha alma. Não creio que seja fácil identificar-mo-nos com Gandhi, porque há nele aspectos obsessivos e narcisísticos: é terrível pedir às pessoas, como ele pediu, que morram por uma causa. Gandhi fez de mim uma marionete; durante a rodagem, chegava ao local e tinha vinte mil pessoas a gritar e a acenar-me, sentia-me como se estivesse drogado...
</TEXT>
</DOC>