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<DATE>19950218</DATE>
<CATEGORY>Cien_Tecn_Educ</CATEGORY>
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Entrevista com Anne d'Harnoncourt, directora do Museu de Arte de Filadélfia
«Ver uma reprodução não é o mesmo que olhar para um Botticelli»
Pedro Fonseca
Os museus são os locais da arte por excelência. É aí que as obras de arte são concentradas, conservadas e exibidas. O recurso à tecnologia digital na criação artística, porém, pondo fim à noção de «original» e permitindo cópia múltiplas e absolutamente idênticas, está a colocar os velhos museus perante desafios de um novo tipo. A mesma tecnologia digital, por outro lado, permite a difusão das obras de arte originais contidas nos museus, abrindo novas formas de contacto do público com a arte. O PÚBLICO entrevistou Anne d'Harnoncourt, directora do Museu de Arte de Filadélfia, um dos muitos que está a apostar na tecnologia dos CD-ROM para divulgar as suas obras e interrogou-a sobre o futuro dos museus.
PÚBLICO -- Em que projectos de arte digital está o seu museu envolvido?
ANNE D'HARNONCOURT -- De momento, não temos um projecto nosso, mas fizemos um acordo com a Continuum Productions através do qual eles podem digitalizar 1300 obras de arte das 130 mil que temos em colecção. Eles podem usar essas imagens em CD-ROM ou para outras utilizações. Se, por exemplo, forem obras de Rubens, podem usá-las em qualquer coisa que estejam a fazer sobre Rubens, se o desejarem. No museu, recebemos um conjunto dessas mesmas imagens para fazermos o que quisermos com fins culturais e educacionais. Como não temos recursos -- e pensamos que não os teremos durante algum tempo -- para sermos nós a fazer este tipo de trabalho, parece-nos mais sensato trabalhar com eles porque, obviamente, têm bastante «know-how». É um bom negócio.
P. -- Como tem decorrido a relação com a Continuum?
R. -- Até agora, tem sido boa. Estamos num estádio prematuro, eles apenas fizeram a digitalização das imagens e esse processo não está terminado. Que tenhamos conhecimento, ainda não finalizaram nenhum produto.
P. -- Por que razão considera bom para o museu a venda dos direitos para comercialização em suportes digitais?
R. -- O que é muito importante é que os direitos não são exclusivos. Podemos ceder ou vender os mesmos direitos a qualquer outra pessoa. Eles são muito activos neste domínio, estão muito interessados e são líderes de mercado na sua área; mas, se alguém estiver interessado em participar num projecto connosco e, dentro de dois anos, nos fizer uma proposta e nós pensarmos que é uma boa ideia, estamos livres para o fazer.
P. -- O CD-ROM ou a Internet podem servir para divulgar as obras existentes nos museus?
R. -- O CD-ROM, a Internet ou qualquer meio audiovisual podem alertar para a existência das obras. De outra forma, poderíamos não as conhecer, nunca as ver ou não saber onde ela estão, ainda que conhecêssemos a sua existência. Poderíamos conhecer a existência de uma dada obra de Rubens, Cézanne ou El Greco e não saber que essa pintura estava em Filadélfia, em Lisboa ou noutro sítio qualquer. O facto de conhecer todas as obras desse artista, por outro lado, permite-nos saber como é que cada pintura encaixa no conjunto da sua obra.
P. -- E o CD--ROM ou a Internet não poderão acabar por substituir os museus? Até que ponto é que a tecnologia digital constitui uma ameaça para o futuro dos museus?
R. -- A observação de uma obra de arte original é insubstituível. É uma experiência muito complicada, depende da luz com que é vista, da disposição com que se está, de imensos factores que fazem com que as obras de arte «falem» às pessoas tanto directa como indirectamente, falem às emoções, ao sentido de perspectiva, à percepção. Uma mesma obra de arte afecta de modos desiguais em dias diferentes: num dia, quase faz chorar porque é triste e, no dia seguinte, é muito bonita porque não se pensa na tristeza, por exemplo.
P. -- E não acredita que isso possa acontecer quando essa obra é vista num ecrã?
R. -- Talvez, mas tenho a impressão de que as pessoas olham para as coisas num ecrã de modo diferente: para obter informação. Talvez possam obter os mesmos resultados, mas acho que ainda é cedo para o dizer. As pessoas relacionam-se com um objecto físico de um modo diferente da forma como se relacionam com uma imagem num ecrã. É apenas um processo visual diferente: num caso, o cérebro assimila imensas «pequenas caixas de cores» e, noutro, olha-se de um modo muito mais complicado, do ponto de vista fisiológico, para um objecto real num espaço real.
P. -- E esse relacionamento visual não poderá ser enriquecido com tecnologias mais perfeitas, como a TV de alta definição?
R. - Não acredito. É como ver um filme fabuloso sobre o Grand Canyon ou o Evereste. Eles poderão ser mais bem vistos em filme, porque os sobrevoamos de helicóptero, porque os podemos ver enquanto o sol se põe ou qualquer outra coisa do género, mas nada disso substitui a emoção de estar lá. Penso o mesmo da realidade virtual: embora seja fantástica, é artificial. Estamos conscientes de que é artificial e isso é, de algum modo, parte da experiência, ainda que possa ser muito agradável.
P. -- Mas, hoje, a arte pode ser toda ela «artificial» nesse sentido. É possível fazer obras de arte virtuais, que nunca existem em suportes físicos mas apenas em ecrãs e mostrá-las em «museus virtuais», como algumas experiências na Internet...
R. -- Tudo isso é uma grande aventura. Pessoalmente, ainda não vi nada feito de um modo que seja realmente interessante. Há alguma semelhança entre isso e um filme fabuloso, com um som soberbo. São experiências visuais diferentes e perfeitamente aceitáveis como tal. A questão é saber se são interessantes.
P. -- Com estas obras virtuais, a primeira e a centésima cópia assemelham-se ao original. Isso não vai alterar o papel dos museus, como locais de apresentação pública dessas obras?
R. -- Não, se se pensar na experiência que agora parece antiquada de ler um livro. Enquanto lê, a pessoa emociona-se devido ao modo como o texto está escrito. Nessa experiência, é o conteúdo do livro que o concentra. Numa obra de arte, passa-se o mesmo, ainda que de forma diferente. A imagem pode começar a dar essa emoção, uma boa reprodução da imagem pode fazer dizer que «esta imagem é fantástica», mas, ao contrário do livro -- que é uma resposta que está completamente contida nele mesmo e que interpretamos enquanto lemos --, olhar para uma reprodução é apenas parte da experiência de olhar para uma obra de arte. Tem de se ir mais longe.
O acesso generalizado a boas reproduções significa apenas que mais gente ficará com vontade de ter a experiência da coisa real. No final do século XIX, com a invenção da fotografia, uma família de fotógrafos italianos registou todos os grandes monumentos de Itália e, pela primeira vez, pessoas que nunca tinham estado naquele país puderam ver como eram os palácios de Veneza, a praça de São Pedro, o Coliseu, mas isso apenas fez aumentar o desejo de lá ir. É a mesma coisa com um quadro: ver uma fabulosa reprodução a cores não é o mesmo que estar em frente ao Coliseu ou a olhar para um Botticelli. É diferente.
P. -- Isso será verdade para obras que existem em suportes físicos e que são irrepetíveis, mas há obras criadas nos e para os suportes digitais. Qual é a sua opinião sobre essas obras?
R. -- Acho que são muito interessantes. Sempre me interessei muito por arte contemporânea e parece-me que estas tecnologias e materiais interactivos vão produzir, nas mãos de alguns artistas, espantosas obras de arte num «medium» completamente novo, onde não haverá original.
P. -- Acha que é necessário um código deontológico para a manipulação digital?
R. -- Claro. Penso que, de muitos modos, há já uma espécie de código de senso comum, mas é um código que se desenvolve com os «media». Não se pode realmente inventar um código antes de saber quais são as possibilidades desses «media».
P. -- Estamos, então, ainda no princípio?
R. -- Sim. Quando se olha para uma pintura abstracta de Mondrian, por exemplo, vemos branco, preto, vermelho e azul e a manipulação digital pode alterar as cores para púrpura, rosa, verde (que ele detestava) ou outra cor qualquer. No momento em que isso é feito, o quadro deixa de ser um Mondrian e transforma-se noutra coisa qualquer. Penso que estamos todos simultaneamente inquietos e excitados com as possibilidades da digitalização e da manipulação das imagens. É como com as antigas fotografias de Mao nadando no Mar da China, quando não se sabia se ele estava morto ou vivo, e quando os jornais chineses mostraram essa fotografia. Podia ter sido apenas a sua cabeça retirada de uma outra fotografia e sobreposta nessa imagem. Por agora, a questão coloca-se principalmente aos meios de comunicação social, ao relato dos acontecimentos actuais. No domínio da arte, depende da forma como a obra resultante da manipulação é apresentada. Se dissermos que é um Mondrian e se for cor-de- rosa e verde, será desagradável. Não interessa se é digital ou não.
P. -- Com estes novos meios digitais também pode aumentar o número de falsificações?
R. -- Sim, mas a falsificação de uma pessoa é a imaginação de outra. O ser humano foi sempre muito imaginativo a adulterar coisas, a fazer imitações, falsificações -- tão bom como a fazer as coisas reais. No mundo da arte, lidamos com obras de arte originais e com coisas que provêm delas. Às vezes, as obras que são originadas pela primeira são más imitações, às vezes são falsas, outras vezes são influências, outras vezes são pontos de partida curiosos. Não vejo que isso vá mudar assim tanto.
P. -- Quem vai ganhar com esta combinação entre museus tradicionais e novos formatos digitais? Serão os museus ou empresas como a Continuum?
R. -- Quem vai ganhar mais será o público. Se a pergunta for quem ganha dinheiro, digo-lhe que é claro que a Continuum está neste negócio para fazer dinheiro. Quanto aos museus, estão no negócio de mostrar obras de arte ao maior número possível de pessoas e o seu fim não é ganhar dinheiro mas sobreviver, ter mais arte, tomar cada vez melhor conta da arte que possuem. Não penso que haja alguma razão para que uma empresa lucrativa e um museu não possam ser muito bons parceiros. O objectivo de um museu é fazer com que as obras de arte por que é responsável e os artistas que as criaram quando estavam vivos falem pela sua própria voz, que cheguem a muitas pessoas. O «multimedia» é um modo de o conseguir. Obviamente que teremos sempre a ambição de que as pessoas venham ao museu e vejam os originais por si mesmas, porque essa é, provavelmente, a mais completa experiência que alguém pode ter. Ler um livro sobre arte, ver uma exposição e ter experiências «multimedia» sobre obras de arte são coisas diferentes. A comunicação singular entre a obra de arte e a pessoa é uma experiência fantástica e qualquer pessoa que trabalhe num museu quer que mais pessoas tenham essa experiência. Devemos usar todos os meios possíveis para conseguir que mais pessoas tenham essa experiência.
P. -- Como vê, então, o papel dos museus no futuro?
R. -- Espero que, nalguns casos, esse papel seja alargado. A arte é tão antiga como o ser humano mas os museus ainda são muito novos: têm, no máximo, 200 anos e muitos nascem todos os dias. Os museus vão mudar -- mas como... não sei dizer. As obras de arte continuarão a existir e serão importantes porque constituem a materialização da criatividade humana. Os museus são simplesmente um modo de preservar essas obras para o futuro.
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