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<DOCNO>PUBLICO-19950228-072</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950228-072</DOCID>
<DATE>19950228</DATE>
<CATEGORY>Diversos</CATEGORY>
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Higiene Democrática
Fernando Rosas
O último congresso do PSD foi, a vários títulos, tão paradigmático que, apesar de algum atraso, não resisto a deixar aqui quatro breves notas sobre o que nele vi passar-se.
Em primeiro lugar, a manipulação informativa que o rodeou, particularmente escandalosa no que toca à televisão pública, posto que é paga pelo geral dos contribuintes, sejam ou não afectos ao PSD. Os longos directos do congresso madrugada adentro, sem precedentes de qualquer género em reportagens de similares acontecimentos, evidenciaram um claro propósito manipulatório: fazer-nos a todos, com bem notou Mário Mesquita, membros do PSD; fazer do PSD o partido de «todos os portugueses»; transformar as guerras interclânicas do partido do Governo em magnas questões da pátria; suspender os destinos do país na agitação sucessória dos barões do laranjismo. Em suma: fabricar do partido que está no poder, em véspera de eleições, uma imagem de principal, senão de único depositário das expectativas e dos anseios nacionais. Como se tudo se decidisse, para todos, nas orações paroquiais do sr. Nogueira, nos dislates arruaceiros do «gauleiter» madeirense, nos golpes de bastidores do sr. Barroso e seus amigos, na farra do famigerado sr. Lopes, no caceteirismo «nortista» de um cacique qualquer do Porto, naquele imenso pastel de lugares-comuns, de compadrios sem princípios, de clientes e clientelas -- espelho fiel, isso sim, do que é o poder neste país e de quem é a «elite» política que o gere.
Porque, precisamente, o contraste com a enormidade manipulatória da cobertura foi o da imensa vacuidade ideológica. A tal ponto que até o sr. Santana Lopes ia fazendo figura de doutrinário com um punhado de banalidades inócuas sobre a reforma do sistema político. Mas quem seriamente podia esperar o contrário! Efectivamente, o que estava em causa no congresso não era um debate de ideias contraditórias ou conflituais no seio do partido do Governo acerca do futuro do país. A única ideia que unia e dividia os dirigentes actuais do poder era, simultaneamente, a de o manter, primeiro, a de o redistribuir entre as várias clientelas e grupos de pressão, desde que o logrem conservar, depois.
À parte algumas diferenças de estilo e idiossincrasia, de apoios preferenciais em distintos «lobbies» regionais ou sectoriais encostados ao poder, de clientelas próprias a satisfazer, toda a gente sabe que nada de essencial dividiu ou podia dividir os candidatos do laranjismo à gestão superior do Estado, assim como nada de essencialmente diferente eles poderão realizar relativamente ao que foi a governação cavaquista. Um e outro eram filhos de uma cultura de situacionismo, de opções de fundo ou de simples tiques de um poder consolidado ao longo de dez anos, de vícios inelutavelmente inerentes à sua própria reprodução e subsistência -- e a função do vencedor, com melhor ou pior «performance» pessoal, será a de salvar o barco com tudo ou quase tudo o que lá vai dentro, ou de ir ao fundo com ele. Não há pois, grandes ideias a discutir acerca disto: a lógica da decisão era tão somente a de rearrumar posições entre baronatos eventualmente decadentes ou emergentes para cumprir tal tarefa e assumir os seus riscos. O congresso foi isso mesmo: um longo festival de retórica pública e de combinações privadas para dirimir a sucessão ao topo do aparelho do partido e, através dele, do Estado.
E esta natureza do congresso torna algo risível a imagem da «vitalidade», «participação» e «democraticidade» que os porta-vozes do PSD e certos meios de comunicação dele pretenderam dar. É claro que ele terá tido a «vitalidade» e a «participação» de um espectáculo de circo ou de boxe razoavelmente excitante, com o público a aplaudir ou invectivar as várias actuações dos artistas e a permanecer interessado pelo desfecho da coisa. Mas o desfecho da «coisa» em si mesma escapava-lhe quase completamente, e só não completamente porque era chamado a votar. Um voto arrebanhado e combinado antes do congresso, disputado, negociado e transferido ao longo dele, ao sabor das «combines» dos caciques e de pressões várias, de acordo com manobras cujo sentido fugia totalmente a qualquer real interferência das «bases» com que os barões do laranjismo se encheram a boca e nos encheram os ouvidos.
Na realidade, «as bases», isto é, os pequenos caciques e mandantes locais, os agentes dos escalões inferiores da rede de influência do partido governamental, na sua imensa maioria, assistiram alegremente, vitalmente, democraticamente, a um «show» cuja lógica interna, cuja decisão real, foram chamados a sancionar sem nele terem nenhuma verdadeira participação criadora.
Dir-me-ão que foi o costume. Que nos congressos dos outros partidos se passa o mesmo ou pior. Talvez. Só que convém registar que, ao contrário do que se fez crer, o PSD não foge à regra dessa forma de democraticidade interna e de pseudoparticipação com que o geral dos partidos do sistema encobrem o poder das claques que os controlam. Pelo contrário. Um Coliseu cheio e em directo na televisão não faz a Primavera...
Finalmente, a escolha do congresso. Uma escolha duplamente fraca: pelo perfil do personagem em si mesmo e pela escassa margem com que ganhou. Quanto aos efeitos que disso possa tirar o principal partido da oposição, devo confessar que faço parte do grupo dos cépticos: céptico quanto à capacidade da sua direcção em explorar uma situação que lhe é favorável; céptico, o que é mais importante, quanto a acreditar que ele possa vir a corporizar uma real alternativa, algo de diferente, ao menos nalguns domínios onde isso é possível, relativamente ao situacionismo.
Mas hei-de reconhecer, igualmente, que, independentemente de tais dúvidas, impõe-se a urgente necessidade da mudança do pessoal político, da cultura política, do estilo de força política, seja qual for o sentido que cada eleitor lhe queira dar. Um poder que dura há uma década com os inquietantes sintomas de apodrecimento que este dá pode criar formas subtilmente «mexicanas» de se apropriar «democraticamente» do Estado e de nele se perpetuar, bloqueando a alternância, ainda que recorrendo a processos formalmente adequados de legitimação.
Penso sinceramente que é necessário fazer funcionar o sistema democrático, para evitar o risco e a tendência reais para a progressiva formalização da legitimidade democrática. E isso faz-se pelo voto e, para além dele, com os partidos e fora deles, no parlamento e à margem dele. Pela intervenção dos cidadãos a todos os níveis.
Quando se assiste a espectáculos como os do último congresso do partido do Governo, compreende-se que a alternância, mais do que uma questão de política partidária, é uma exigência de higiene democrática.
Destaque:
«As bases», isto é, os pequenos caciques e mandantes locais, os agentes dos escalões inferiores da rede de influência do partido governamental, na sua imensa maioria, assistiram alegremente, vitalmente, democraticamente, a um «show» cuja lógica interna, cuja decisão real, foram chamados a sancionar sem nele terem nenhuma verdadeira participação criadora.
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