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<DOCNO>PUBLICO-19950228-100</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950228-100</DOCID>
<DATE>19950228</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>TC</AUTHOR>
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A nova prostituição
Adriana das dez às sete
É a profissão mais antiga do mundo. Tem mudado. A Adriana trabalha numa «casa» -- um dos novos bordéis -- onde nenhuma mulher paga a nenhum homem. Cinco amigas que se estabeleceram por conta própria. A Adriana «gosta de dominar». Por enquanto. Porque uma pessoa tem de saber o que quer da vida.
Tereza Coelho
A Adriana, nome de guerra, tem 34 anos, é ruiva, os olhos são enormes, escuros, e a roupa -- calças cinzentas, camisa branca -- seria a roupa normal para ela trabalhar numa agência de representações, como diz o anúncio na parte de fora da porta, em letras verdes sobre fundo negro, por cima do horário: das 10h às 13h, das 15h às 19h. A recepcionista abriu. Representações? «Tinha de se pôr alguma coisa... e isto é representar. É um teatro... ninguém está aqui por prazer.» A primeira frase da Adriana tem potencialidades para meditação: alguém sabe o que é o prazer? «Passa-se tudo na cabeça, não é?» O corpo intervém, claro. «Representa.» É um suporte de uma operação mais vasta.
A «agência de representações» é aquilo a que dantes se chamava «um bordel». Os tempos mudam. Já não é como nos filmes (e alguma vez foi?). Nenhum «abat-jour» em forma de tulipa, nenhum espelho, nenhum forro de veludo vem redimir este «décor» funcional. E não há uma patroa, patética, gorda e empoada, a cheirar a perfume inquietante e adocicado.
A Adriana não é «a patroa». A Adriana gere algo que se parece com uma cooperativa. As outras quatro mulheres, «as meninas», têm responsabilidades. Todas contribuem para as despesas. E «levam para casa o correspondente ao que fizeram, dá-lhes uns 70 ou 60 contos por semana...» «Ao mês é muito mais que um ordenado mínimo. Se levarem 60 ao fim-de- semana, que fiquem com 20 para despesas pessoais, para comer e para o que precisem, chegam ao fim e pouparam. Conheci uma que tinha no banco dois mil contos, ao fim de um ano desta vida.» É assim tão fácil juntar? «Junta-se, sim. Mas junta-se quando uma casa está feita, quando já tem anos... Aqui, por enquanto, ainda não dá. Ainda temos muitas responsabilidades.» Vão ter, ainda e sempre. «É como em tudo. A responsabilidade tem-se sempre. Mas as pessoas têm que saber o que querem da vida. Ninguém faz esta vida por gostar.» Ninguém, nunca? «Algumas gostam, outras é das circunstâncias da vida. Umas adaptam-se e gostam. Umas viciam-se no dinheiro, sabem que lá fora nunca vão ganhar o que ganham aqui. É uma necessidade, até ver...»
AS ORIGENS. E a família? «É óbvio que os meus pais não sabem. Eu sou do Norte. Nasci lá. Casei aos 23 anos, vim para Lisboa com o meu marido... Trabalhei como `dama de companhia'... Era uma espécie de criada de uma mulher que me ia pondo maluca. Estive um ano casada.» Porque é que casou? Gostava dele? «Gostava. E a gente, quando gosta, é como os burros, com duas palas. Sempre à espera que o outro mude... Toda a gente me dizia que o meu marido era assim e era assado, e eu pensava: `Se ele gosta de mim, ele muda.' Era um irresponsável. Nunca pensava que havia amanhã. Eu sabia que ele era assim, mas sempre pensei que mudasse. Casámos, estava ele empregado. Depois despediu-se porque não gostava que lhe dessem ordens... Por amor de Deus, então trabalhar não é isso? E acabei a ser criada da velha para o sustentar. Andava com uns nervos, a tomar comprimidos... Depois aconteceu tudo na mesma altura. Ela mandou-me limpar o chão da cozinha. Estava o chão limpo com Sonasol, ela entrou por ali dentro de pantufas e escorregou. Meti-lhe as mãos por baixo dos braços para a levantar, vai ela começa aos gritos que eu a queria matar... Eu já não aguentava mais aquilo, não a aguentava a ela, não o aguentava a ele, e separei-me. Fui trabalhar para uma herdade no Alentejo. Sabia de pecuária, fui ser ajudante de veterinário.»
E foi, por três anos. «Tenho marcas dos calos nas mãos que nunca saíram, olhe aqui. Era trabalho duro. A maior parte das vezes não tinha folgas, não tinha nada. Um dia o patrão quis que eu fosse amante dele. Quando lhe disse que não, apanhou uma raiva e pôs-me de lá para fora. Vim para Lisboa... Trabalhei em lojas, em `boutiques', a última foi uma na Mouraria, que foi à falência. Fiz o que me apareceu à frente. Mas eram trabalhos temporários, sem contrato, sem nada. Numa loja meteram-me na rua ao fim de dois meses. E qual foi a lei que me protegeu? O patrão não foi com a minha cara e mandou-me embora; quis lá saber se eu era competente ou não. Eles têm a faca e o queijo na mão, o que é que uma pessoa faz à vida, ter de pagar comida, e o quarto, e a roupa. Não há solução. Veja o que aparece nos empregos do jornal. E veja o que pedem por um quarto: trinta e tal contos, quarenta. Eu já conhecia pessoas que estavam nisto. Na última `boutique' onde trabalhei, muitas clientes eram prostitutas assumidas. As pessoas que vieram comigo foi porque falámos como amigas, quiseram vir. Não podia abrir isto sozinha. Agora estou à frente, automaticamente sou a que faz menos, por uma razão: para impor respeito. Eu sei impor respeito. Estive sempre sozinha e habituei-me. Sei-me impor.»
Uma agência de representações sem homens: não há chulos. «A maioria destas casas tem um homem por trás. Recebe o dinheiro das raparigas.» Em troca, protege-as. Sem um homem, como é que tem a certeza que não há problemas? «A certeza não tenho. Tento evitar.»
AS NORMAS DA CASA. Na agência cada uma trabalha por si. Norma da casa. «As mulheres destas casas trabalham para os homens delas. Aqui não. Esteve aqui uma que tinha chulo. Ele vinha cá todos os dias trazer-lhe o comer, e ao meio da tarde vinha cá saber quantos homens é que ela tinha feito, até que eu disse-lhe que desculpasse, mas que assim não, que me dava má imagem à casa. Não ia tê-la aqui se vinha cá o homem, o `marido' como ela dizia, que elas aos chulos chamam maridos, saber quantos homens ela tinha feito... Não, assim não. E ela quando saía daqui ainda ia trabalhar para uma `boîte'. Eu ao princípio não percebi. Só lhe disse que ela não viesse vestida como aqui apareceu, de calças muito justas, mesmo com ar de puta. Disse-lhe que fosse discreta, que temos vizinhos. Claro que há homens que ainda fazem conversa, género `eu tiro-te disto, ponho-te por minha conta'... Vêm cá com a ideia de ser chulos. Mas diz-se logo: `Nós não precisamos de protecção. Protegemo-nos umas às outras.'»
Outra norma da casa: entram, escolhem e pagam. «Vêem-nas e dizem: `Pode ser esta menina.' E eu digo: `Maria, podes passar. São sete mil escudos.' E ele paga logo. Isto porquê? Porque há muitas casas em que eles, se for a pagar no fim, já não pagam. Uma vez a Sandra contou-me que noutra casa, em que se pagava no fim, o homem chegou ao fim do tempo e disse: `Olha, apetece-me estar outra hora contigo, vou ali à casa de banho.' E depois saiu e não pagou... Arranjam muitas artimanhas para não pagarem.»
Mais normas da casa: nem mulheres com drogas, nem mulheres sem preservativos. Os homens não discutem o preservativo? «Quando se negam, explica-se. Fala-se na sida, diz-se que é bom para todos: para a rapariga, para ele e para a mulher dele. Mas agora já aparecem uns que pedem, são os primeiros a falar nisso.» Não há problemas como os maus tratos, por exemplo? Na rua, as prostitutas estão sempre a ser maltratadas. «Aqui não. O cliente que vem a estas casas não é o cliente que vai à estrada. Tem uma certa posição, não quer ser visto. Quer ser discreto. Há um ou outro que tenta tratar mal a rapariga, aperta-lhe o peito, magoa-a... Nesse caso é-lhe comunicado: `Olhe o senhor para a próxima não vem cá.' Na rua há mais problemas que numa casa, porque a pessoa quando aqui vem já sabe as condições, ou porque telefonou e perguntou, ou porque um amigo disse-lhe: `Em tal parte há uma casa, eu fui e gostei, e gostei do ambiente.' Muitos gostam é do ambiente. Principalmente pessoas tipo advogados, juízes... [uma constante nestas coisas é a predilecção dos clientes por se anunciarem com uma carreira ligada às leis], esses que sabem perfeitamente que isto é contra a lei.»
O MÉTODO. O que é «o ambiente»? «É tudo muito calmo: o cliente apareceu, escolheu e entrou. O método é sempre igual. Elas lavam-se, eles lavam-se, aqui há muita higiene, fazem o que têm a fazer, e pronto, eles saem.» E se eles meterem nojo? «Não se pode escolher. De qualquer maneira, vão-se lavar e põem o preservativo». Nunca se sentiu agoniada? «Há homens que cheiram mal e nem se querem lavar... Obriga-se e depois evita-se olhar para eles. Pronto, estão aqui, têm que ser tratados como seres humanos.» Tem que se tratar «como seres humanos» por quanto tempo? «Todas as casas têm limite de tempo. Aqui o máximo é 40 minutos. E um tem que sair antes de entrar o outro, porque eles não gostam de se encontrar. Bem, a gente está aqui é para ganhar dinheiro, não vai estar o dia todo com um, não tinha lógica nenhuma. Quarenta minutos é mais que suficiente para o homem se lavar, estar com uma mulher e não sair daqui frustrado. Eles quando chegam gostam sempre de conversar um bocadinho, mas dá mais que tempo para isso... Uma vez um até comentou: `Aqui vale a pena, que eu aqui sou bem tratado.' E vale, eu acho que vale a pena tratá-los bem. Vale a pena ouvi-los, eles gostam de um tratamento personalizado.» Sete contos por 40 minutos é barato, não é? «É. Abrimos há pouco tempo.» Problemas com os vizinhos? «Tem de se manter uma disciplina. Mostrar uma boa imagem. Não andamos a entrar e a sair, entramos de manhã e saímos ao fim do dia. Fazemos comida aqui.»
OS HOMENS SÃO TODOS IGUAIS. A Adriana percebeu cedo na vida que as duas máximas -- «nada se consegue sem esforço» e «os homens são todos iguais» -- são duas grandes verdades. «O meu pai deixou a minha mãe grávida, foi para África. Voltou, tinha eu dez anos. Nunca o respeitei. Atirava-lhe à cara que ele nos tinha deixado. A minha mãe foi criada de uma mulher a quem eu chamava madrinha e que tinha um armazém de revenda; a minha mãe fazia o comer, andava ali a servir. O meu pai nunca mandou nada. Voltou e quis mandar em mim; mas porquê, se nunca fez nada por mim? Foi para lá por aventura, e depois voltou. Os homens são todos assim.»
Não há nenhum que não seja? «Conheci um. Não era meu avô, mas chamava-lhe avô. Morreu, tinha eu oito anos.» E agora a Adriana está quase a chorar. «Foi o único homem de quem gostei. Morreu com um ataque cardíaco na rua... Um dia fui visitá-lo e disseram-me que ele estava no cemitério. Fui para o cemitério à procura. O coveiro quis ajudar, procurou por todas as campas e não deu com o nome, sabe porquê? Porque ele foi para a terra, não teve campa, foi por isso... Para a terra. Sempre pensei em juntar dinheiro para lhe pôr uma pedra. Depois ia lá outra vez como se fosse a primeira vez, fazia o percurso todo, punha um ramo de flores... Mas nunca fiz nada. Esse homem era diferente de todos os homens que eu conheci.»
Um homem que goste de nós sem condições só se for o nosso pai ou o nosso avô, não é, Adriana? Não há nenhum homem assim. «Pois, eu nunca encontrei mais nenhum. O meu avô era bom e não esperava nada em troca.» Ninguém no mundo inteiro dá alguma coisa sem esperar outra coisa em troca. «Isso é verdade. Mas eu também não acho importante ter um homem. Acho importante olhar por mim e pela minha vida. Até agora só pude contar comigo, não é? E uma pessoa aqui fica traumatizada com homens. As mulheres pensam que têm uns santos em casa, e é isto.» Porque é que eles vêm? «Muitos é porque as mulheres não os satisfazem... Vêm à procura daquilo que não encontram. Vejo-os todos iguais. Não acredito que nenhum seja fiel. E todos têm umas taras. Talvez dantes pensasse melhor sobre os homens...»
Eles falam muito? «Falam sempre. O que há é muitos casos diferentes. Na sexta-feira veio um que não veio fazer nada. Pagou e disse que não queria nada, só queria falar. A vida dele, a mulher doente, que queria falar com alguém, queria quem o ouvisse e lhe respondesse. É solidão. E há os que têm vício de sexo. E há os que querem fazer coisas que as mulheres não fazem, e as mulheres não os compreendem, dizem eles.» Então são todos diferentes, são todos iguais? «São todos iguais. Eles dizem as coisas, mas não é na realidade... Convença-se que os homens vão a todas. Os que vêm aqui vão às outras casas. Correm-nas todas. E depois regateiam: `Vou ali que é mais barato...' É como se vivessem do sexo, e a gente não vive só de sexo.»
ALÉM DE SEXO. Além de sexo, vivemos de quê? O que é que quer de um homem? «Quero um homem responsável. Porque eu sou. No Alentejo ninguém me dava valor nenhum e eu fartava-me de trabalhar. Adorava os animais. Assumo que gosto mais dos animais que das pessoas; quero lá saber se sou ridícula, os animais nunca me atraiçoaram. Havia lá uma vaca, eu dava-lhe sempre de comer, e ela, quando eu a chamava, vinha atrás de mim... Quando ela foi para abate, eu até chorei. Se eu der de comer a uma pessoa, ela atraiçoa-me na mesma.»
Gostava muito das vacas. Menos do patrão. «O patrão aproveitava-se de eu estar sozinha e fazia-me trabalhar muito mais.... até ia fazer ordenha. Um dia mandou lá um fulano convidar-me para uma festa num hotel. Eu fui. Embebedei-me e acabei na cama com ele; só não houve nada porque eu estava tão bêbeda que adormeci. Insistiu, mas a partir daí apanhou-me tal raiva que me mandou embora. Arranjou uma data de histórias; acabei por ser despedida. Mas eu sabia o que fazia, e havia lá muitos que não... ficaram porque eram homens. Uma vez vi um, que dizia que tinha dez anos de prática, a meter o conservante no útero de uma vaca.» O que é o conservante? «A terramicina traz um pacote para conservar. Eu disse-lhe que havia uma vaca que ao fim do parto não tinha expulsado aquilo tudo do útero, e tinha que expulsar, senão apanhava uma infecção. Por isso é que se põe a terramicina. Eu fui buscar a vaca, fui buscar a terramicina e dei-lhe. E eu vi que ele meteu o conservante no útero da vaca. Chamei-lhe incompetente, era isso mesmo que ele era.» Prefere Lisboa ou o campo? «Acho mais saudável estar com os animais, mas não podemos ter tudo o que queremos.»
Quando diz que é «mais saudável», quer dizer o quê? «Os homens só querem sexo, sexo, sexo... e melhor se for de borla. Prefiro que paguem. Paga e satisfaz-se. Agora de borla.. Eu, o sexo, encaro-o como profissão. Um homem sai com uma mulher, diz que quer ir beber um copo, e o que ele quer é ir para a cama. Há os que andam muito tempo a tentar cativar a pessoa para os mesmos fins, há os que dizem logo, mas o sexo está sempre à frente de tudo. Eu para gostar de um homem tinha que ser um que não me quisesse só para o sexo. Mas nunca nenhum se interessou pelo que eu era, dentro de mim. Só para eu os satisfazer na cama. Mas também não acho que tenha ficado assim tão afectada por estar aqui... Fico, mas tenho capacidades para superar. Agora, para eu andar com um homem, ele tem que me provar que é em mim que está interessado. Sexo por sexo? Não quero dar o meu corpo de graça e amanhã ele não me conhece de lado nenhum.» Não é um exclusivo dos homens, há mulheres assim. «Pois há. Mas há mais homens.»
Sabe sempre o que quer? «Gosto de dominar. E aqui é o caso. Os que me querem são os que gostam de ser esse caso. O meu temperamento é para isso. Quando me deitaram o `tarot', disseram-me que eu tinha tanto de homem como de mulher.» Portanto, gosta de dominar os homens que gostam de ser dominados? «Gosto. Gosto quando são humildes. Não lhes bato, a não ser que peçam. Porque bater, mesmo que dê prazer no momento, depois faz impressão. Há os que querem que eu faça de macho, com o aparelho do sexo anal. Se pagam, é porque gostam. Muitos são bissexuais. Não dizem às mulheres; elas convencidas que têm ali um grande macho, e depois o grande macho só se consegue realizar quando tem uma coisa metida no ânus. Uma vez, um disse que era bissexual e se podia trazer um amigo, ele penetrava a rapariga e o amigo fazia sexo anal com ela. `Claro que sim', disse eu. `O preço é que já outro...' Há uns que querem duas mulheres uma com a outra. Há uns que engraçaram com uma e depois vêm sempre a essa. Outros variam... Há os que perguntam se temos homens. Eu acho que a mistura é muita confusão, optei só por mulheres; serviço de macho fazemos com aparelhos. Há casas que misturam, aqui não.»
Acha que estas casas deviam ser legais? «Evitam crimes, como os do estripador que matou uma porção de mulheres. Se elas estão na rua e se metem no carro, não têm ninguém que as possa proteger. Trabalhar ao domicílio é outro grande perigo. No jornal farta-se a gente de ler `fazemos domicílios', porque isso nem dá grandes problemas com a polícia. O cliente telefona, marca, de lá voltam a telefonar para o número do cliente a confirmar, eles pagam 30 ou 40 contos; metade é para a rapariga, metade é para a casa. Elas sujeitam-se a muita coisa. A rapariga mete-se no táxi e vai. Pode lá chegar e dar com três homens... ou com um sádico... Aqui dizemos logo que não fazemos domicílios. Se isto é a profissão mais antiga do mundo, porque é que em Lisboa não há casas legais, como há nos outros sítios? Quando eu era pequena, na minha terra, havia uma rua própria.» Acha o ideal? As mulheres que estiverem nessa rua ficam identificadas, e são tratadas de uma maneira diferente, não é? Chama-se censura social. «Isso também é verdade. Mas olhe, censura social aqui também temos; aqui toda a gente trabalha com nome falso.»
Nunca se veste de outra maneira? «Eles às vezes pedem. Muitos trazem... roupa, roupa interior, ligueiros, as coisas que eles gostam. `Lingerie' maluca. Perguntam se há chicotes e algemas. Às vezes ao telefone perguntam se fazemos sexo anal. Nessas coisas nunca respondo: digo que sou recepcionista. Porque há uns que querem conversa ao telefone para se estarem a masturbar. É assim que se... realizam. Outros é com insultos ao telefone: `Suas putas'...»
O SEXO NORMAL? Há muitos que peçam algemas e chicote? Como é que pedem? «Há menos, mas vão aparecendo. Esses é por marcação. Pergunto o que é que querem, e há os que querem ser algemados, e há os que querem que eu faça deles um cão...» Como é que isso se faz? «Eu digo: `Ladra, cão, ladra.' E eles ladram. `Agora lambe os pés à dona. Lambe o outro'... Os `escravos' só fazem aquilo que a `dona' manda. É assim que têm prazer. Só tocam na dominadora se ela obrigar. Têm erecção sem ser preciso tocar-lhes. O prazer é comandado pelo cérebro... Há casos de homens que é à porrada. Há um médico assim. Chega, encosta-se a esta mesa, põe o pénis em cima e, conforme eu lhe bato, ele vai gritando e vai dizendo: `Mais força, mais força'... Da primeira vez avisou: `Não quero que tu me toques, quero que tu me dês porrada. Não tenhas medo, bate-me...' É o método dele. Outros querem palavrões, querem saber com quantos homens estivemos. Esses também pouco tocam nas mulheres. Há um que é preciso dizer-lhe que a filha é uma puta, que foi ser puta para Espanha, e que vê todos os dias muitos pénis... Não se diz pénis, diz-se com palavrões porcos, que é assim que ele se realiza. Há outro que vai buscar os preservativos usados ao caixote do lixo e depois... Olhe, é preciso ter estômago, põe-se ali a falar e masturba-se a segurar o preservativo. Uma vez por semana. Senta-se na cama, a rapariga no chão, nua, e ele masturba-se. Eles em geral são humildes. São como o cão que obedece ao dono. Às vezes gritam.» Gritam como? «São histéricos. Gritam com a dor, e isso é que lhes dá prazer. Às vezes põe-se a mordaça, depende.»
E, em resumo, como é que se trata um homem como um cão? «Como? A pergunta não é `como', é `quando'. É quando ele pede. Quando ele diz: `Faz de mim um cão.' Às vezes dão a gravata para serem amarrados com uma trela: `Anda daí cãozinho, fazes o que a dona mandar, anda lá... Agora vais lamber os pés da dona. Agora ladra.' Pense assim: é como pedem. Há outros que gostam que a rapariga esteja vestida de cabedal... Uma vez um quis eu estivesse de galochas. São taras.» Onde é que bate, quando bate? E as marcas? «Estaladas na cara não deixam marcas. Se quiserem chicote é nas costas e no rabo. Há chicotes de verga, há de cabedal.» Se começa a chicotear, como é que sabe quando é que há-de parar? «Vejo se ele está a ter prazer ou não. Vou vendo como ele reage. Se vejo que ele está a sentir dor, mas que não é bem aquilo, começo outra vez. De qualquer maneira, antes pergunto tudo. Já com um ar severo: `Então o que é que tu queres?' E se é aquilo que eles têm no cérebro... Há uns que têm aquilo metido na cabeça mas nunca puderam experimentar com ninguém, e então começo devagar. Há uma primeira vez para tudo. Tenho que ser um bocado psicóloga.» Bater é mais caro? «Tem de ser. Para já é mais tempo. Bem, tudo depende, há uns que já sabem o que querem e passamos logo à acção. Mas é mais difícil que o sexo normal. E, além disso, tem de se recuperar o dinheiro do chicote, das algemas... Depois lá se vão embora com o mesmo ar com que entraram.» Com que ar é que entraram? «Um ar normal. Eles não assumem.»
Nunca lhe dá vontade de rir? «Na altura não. Concentro-me. Porque, por exemplo, logo que ladram é preciso mandá-los fazer outra coisa, ou logo que lambem os pés, é preciso estar sempre a mandá-los fazer mais coisas... Não posso pôr o homem ali meia hora a lamber-me os pés. Vou variando. Só assim é que eles têm prazer. Convença-se disto, o sexo faz as pessoas esquisitas. Não é só agora que eu acho. Lembro-me de ser miúda e ir com outras miúdas, e andavam uns homens a masturbar-se de carro, a olhar para nós. Eu achava-os muito esquisitos.»
NINGUÉM COMO NÓS. Acha a vida mais dura para os homens? Para as mulheres? «Para as mulheres. Têm que fazer as mesmas coisas que os homens e ao mesmo tempo têm que se defender dos homens que as querem ajudar. Sempre foi assim. É como lhe disse: nunca encontrei um homem que me dissesse: `Eu dou-te isto porque gosto de ti...' Era sempre o sexo que estava à frente. Aos 15 anos fui amiga de um que me disse: `Olha miúda, nunca aceites nada de um homem, que se ele te der alguma coisa é porque te vai pedir alguma coisa em troca.' Deu-me um perfume. E depois disse: `Eu podia-te fazer muito feliz. Alugava um quarto num hotel e passávamos lá umas horas.' O meu grande amigo que me dava conselhos, não era? Senti-me mesmo revoltada. Ele não me dizia nada como homem, mas eu era muito amiga dele. Vendo bem as coisas, há os que são logo directos, e esses são os que eu prefiro. Para que é que hão-de andar ali a iludir? Eles querem é ter de graça, a cantilena é para isso. Eles adoram-nos, não é? Nunca encontraram ninguém como nós...» Aquilo que os homens dizem: «Nunca conheci ninguém como tu?» E: «Parece que já nos conhecemos há muito tempo?» «Pois. Sempre isso, sempre, e acham isso até lhes cairmos na cama. A partir daí somos iguais a todas. Eu não sou um objecto sexual. Aqui, nós para eles somos objectos, mas eles para nós também são: têm que pagar, é mais equilibrado. Como pagam, escusam de estar a mentir, e a dizer que somos muito bonitas e gostam muito de nós... Estamos aqui com um interesse, eles vêm aqui com outro. É um empate. Não ficamos frustradas...»
Nunca se sente mal? Nunca se sente muito triste? «Sinto. Caio na realidade. Penso que estou farta desta vida. Mas defendo-me. A seguir penso: `Vocês vêm aqui e têm de pagar.'» Porque eles pagam por uma coisa que não vão conseguir ter nunca, é isso? «Eu acho que é isso, mas não sei explicar bem. E nota-se mais nos que não têm dinheiro. Um desses quis ver todas as raparigas nuas para escolher a melhor. Queria todas e depois nenhuma lhe servia. Outro disse: `Vim cá mas não tenho dinheiro.' E olhava, e eu respondi: `Então para a próxima não venha cá fazer esta figura.' Nota-se mais que eles não podem ter o que querem quando têm menos dinheiro. É isso que tenho andado a estudar.»
Talvez seja porque, se tiverem dinheiro, têm menos a sensação de estar a pagar por uma coisa, em vez de outra coisa que eles querem, mas não sabem bem o que é, e só sabem que não podem ter? «É isso que eu ando a estudar. Hei-de conseguir perceber melhor.»
Depois o dia acabou. «Vou para casa. Vivo sozinha. Quando muito, tinha um bicho.» Um bicho gosta sem condições. É assim que os animais gostam de nós. «Isso é que eu gostava. Por isso estou sozinha.» Nunca tem medo? Dos homens? «Dos homens nunca, desde miúda. Diziam-me: `Olha que vem ali o papão.' E eu levantava-me e ia à procura dele... Mas tenho medo da morte. Não é bem a morte. É outra coisa, é o sofrimento. Eu sei que temos alma, e eu acredito em Deus, mas é o momento de morrer... Penso: `Deus vai aceitar-me, com o que eu fiz?' Depois penso: `Deus perdoa...' Quero uma morte rápida. Uma vez eu estava no abate, e percebi que as vacas pressentem a morte. Foi quando vi uma a olhar para mim como se me dissesse: `Ajuda-me, tira-me daqui.' Elas sentem o cheiro da morte? «Sentem, pressentem, percebem que vão morrer. Ela olhou para mim com os olhos tão baços. Matam-nas com uma espécie de pistola... Eu disse ao homem que estava a fazer aquilo: `Olhe, só uma pessoa muito ordinária é que é capaz disto.' Eu não era capaz. Olhe, sou mais capaz de fazer isto do que de matar uma vaca. Porque todas, todas elas percebem que vão morrer.»
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