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<DOCNO>PUBLICO-19950307-135</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950307-135</DOCID>
<DATE>19950307</DATE>
<CATEGORY>Cultura</CATEGORY>
<AUTHOR>MS</AUTHOR>
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Mário Santos
Luiz Pacheco publica novo livro
«Sou um moribundo alegre!»
Com chancela da Contraponto e distribuição «semiclandestina» pelo correio, Luiz Pacheco está de volta com «Memorando, Mirabolando». Ele não quer espantar a caça, mas acautelem-se os presunçosos. Alguém falou de «transparência», de «frontalidade»? Confira-se com o que diz Pacheco: «Não conheço dois gajos como eu, porra!» Nós também não. Este homem é um atentado ambulante à hiprocrisia!
«(...) respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva.» Assegurada a «imortalidade na espécie» -- Pacheco tem oito filhos e hesita no número de netos, 11 ou 14? --, o homem que escreveu isto, na narrativa «Comunidade», tem agora 70 anos e está há muito sozinho na «cama-jangada». Dorme pouco, come menos, lê muito e aqui não ficará um quarto do que nos disse em quatro horas de conversa. Vai publicar um novo livro, ainda «virtual». É uma «autobiografiazinha em fragmentos» e intitula-se «Memorando, Mirabolando». Não irá para as livrarias, mas quem não tiver encontrado na caixa do correio o postal para pedir o livro à cobrança, pode tentar a sorte escrevendo para «Contraponto, R. Camilo Castelo Branco, 210-6º, 2910 Setúbal». Custa 2.99000 e terá cerca de 100 páginas. Enquanto o carteiro não toca, nas livrarias ainda haverá exemplares de «O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor», «Exercícios de Estilo», «Textos de Guerrilha», «Pacheco Versus Cesariny».
PÚBLICO -- Que livro é este prometido «à cobrança»?
Luiz Pacheco -- É um livro que foi concebido como obra póstuma. Encarreguei o Vítor Silva Tavares de o organizar e depois fomos avançando. É um livro em construção, um livro virtual. Posso morrer daqui a um segundo, esperemos que não, que o livro está tão adiantado que os gajos que já me enviaram os postais podem ter a garantia de que ele faz a edição facilmente. Mas eu gostava de ver o livro, gostava de ver a reacção das pessoas... E até gostava de viver mil anos, porra!
P. -- A distribuição sigilosa é uma revisitação dos inícios da Contraponto ou não encontrou editor que o pusesse nas livrarias?
R. -- E o taco? Olha este! Isto é uma chatice, mas é infalível! Porque eu sei que nenhum gajo vai receber o livro sem primeiro pagar ao carteiro! Eu nisto estou muito calhado, neste esquema do postalinho. Comecei a usá-lo em 1951, porque havia também a questão da Pide: o livro escusava de ir às livrarias. Era um processo de venda semiclandestina...
P. -- Mas assim vai fazer uma tiragem de menos de 300 exemplares e é difícil acreditar que não houvesse editor interessado em pôr nas livrarias mil ou 2 mil exemplares. A Colibri, por exemplo, que reeditou «O Libertino...» não há muito tempo...
R. -- A Colibri? Que optimista! A Colibri tem lá um livro meu, «O Livro do Coiote», há dois anos quase, e o meu filho era lá funcionário ou sócio ou não sei quê, e nunca mais o publicam! Deram-me 20 contos e agora não publicam! Perguntei ao meu filho: quando é que põem essa merda cá fora? E sabe o que é que o gajo me diz? Qual é a tua pressa?! E isto é um gajo a quem eu dava 50 por cento dos meus lucros, ou mais!
P. -- Como é que seleccionou os eleitos que vão poder comprar o livro?
R. -- Não houve selecção nenhuma, não me lixe! Isto é assim: um gajo está na cama, sozinho, e em vez de ver televisão -- agora parei com essa merda -- estou entretido... Mandei para o Eugénio de Andrade, para a Fundação Eugénio de Andrade, Foz do Douro, Porto: foi devolvido, por ser desconhecido! É o fim da macacada! Afinal de contas, um grande poeta popular! Isto é que nunca me aconteceu: dois postais vieram do correio anónimos. Foi um sacana qualquer que me quis lixar, e como o correio não está lá a reparar se o postal vem assinado ou não, paguei 84 paus por essa merda!
P. -- É sabotagem...
R. -- É sabotagem! Quem será o gajo? Tenho impressão que é o Pires... Mandei fazer 2 mil postais, porque é assim: metem-se no correio 5 mil postais e a média de respostas é de dois, três por cento... Tenho aqui três devoluções e desconfio que os gajos mandaram-me à fava: o Miguel Sousa Tavares, o Carlos Eurico da Costa e o Mário Braga, gajos que não me gramam...
P. -- Quando lhe falámos na hipótese de uma pré-publicação no PÚBLICO, disse que havia pessoas, «convocadas a depor», que não iriam gostar e não queria «espantar a caça». Quem são?
R. -- Olha, olha! Não faço comentários! É o meu tabu! Não me lixe! São quase todas! O Fernando Pessoa não se ofende, mas esses gajos todos, os fernandinhos, caem-me em cima! O Miguel Torga, a sorte dele é ter quinado, mas ofendem-se a filha, e a mulher, e o caneco... E o Mário Soares? Eu não lhe posso mandar o postal por causa disso! A Natália não se ofende, mas ofende-se o Dórdio... E a Papuça d'Arrebol, sabe quem é esta gaja? É uma rapariga que viveu comigo, tenho dois filhos dela. Quem lhe chamava Papuça d'Arrebol era o Cesariny, para gozar comigo. No outro dia perguntei ao meu filho: sabes quem é a Papuça d'Arrebol? É a tua mãe! Ficou assim um bocado encaralhado... Ó pá!, passo umas noites levadas da breca, a gente também tem de gozar um bocadinho, porra!
P. -- Também há cartas?
R. -- Isso é o melhor que lá está! Quando me pagar os 2.99000 vai ler... Mas não vamos criar expectativas, porque não é um livro de escândalos! É um livro para fazer algum dinheirito, não é para matar ninguém, nem para derrubar o Governo, nem para dissolver a Assembleia da República... Quando me vieram com a história de querer ver o original, pensei: isto será alguma tramóia deste gajo ou do Pires? Sou desconfiado como a merda, e o Pires sabe que eu tenho muito boas histórias dele...
P. -- Mas se essas pessoas vão ler o livro qual é o problema?
R. -- É o problema de não criar expectativas exageradas! Não vou dizer coisas espantosas: se fosse caso disso, dizia-o! Tenho um diário desde 1970, escrito como quem caga ou como quem mija, e houve pessoas que cortaram comigo porque, como eu tenho a língua um bocado afiada, julgam que estou a dizer muito mal dos gajos lá no diário!
P. -- São textos recentes?
R. -- Alguns estão escritos, sei lá, desde 1970, outros foram feitos agora... Não tem unidade: repare que é «uma autobiografiazinha em fragmentos»...
P. -- Textos repescados do espólio, para «fazer algum dinheirito». Está a entrar no ramo da «literatura avençada»?
R. -- Tenho de comprar uns sapatos! Tenho de ir tirar a cera que tenho neste ouvido! Tenho que comprar óculos novos!
P. -- Há escritores que «têm» de comprar uma televisão nova ou um carro...
R. -- Mas aqui em casa não há luxos, porra! Nunca viu uma casa como esta! Isto é uma capoeira!
P. -- Não estamos a falar de luxos, mas daqueles escritores que se limitam a fazer «render o peixe» do espólio e do nome...
R. -- Já o fodo! Veja lá se põe essa merda, que ainda vai para o meio da rua e depois vem cá para casa lavar a loiça!... Quando eu ataco o escritor avençado, não é porque um escritor não tenha que ganhar dinheiro! O avençado é uma funcionalização do acto de escrever! Por que é que não preciso de ganhar umas massas? Há-de bater cá à porta quando estiver desempregado!... Um gajo ganhar dinheiro com o que faz não é mal nenhum!
P. -- Mas é diferente fazer só para ganhar dinheiro...
R. -- Não é! É profissionalismo! Você não estava muito melhor num baile de carnaval a esfregar a gaita com essas gajas todas? E está aqui a gramar um maluco! Eu andei durante 10 ou 15 anos por quartos vagabundos do pior que há, a aturar umas velhas horrorosas, sacanas de toda a espécie! Tinha 50 contos da SEC, mais 15 ou 20, e isso dava muito bem, porque pagava 25 contos de quarto e tinha umas gajas, de uma coisa chamada Centro de Apoio à Terceira Idade, que me traziam o comer: sopa que dava para um gajo lavar os pés, um prato bom, três papos-secos e duas peças de fruta. E pagava ao fim do mês, seis ou sete contos! E não se gasta lume, não se lava a loiça... De maneira que não tinha necessidade de trabalhar para ter dinheiro!
P. -- Aliás, parece que a necessidade é que desde sempre o estimula a escrever...
R. -- Claro! Mas eu vou fazer umas merdas duns artigos para uns jornais de merda ou uns editores de merda, fazer artigalhadas para ganhar uma trampa?! Não preciso! Tenho dinheiro que chegue para o quarto, a roupa é dada! E de repente considerei-me morto! Durante os últimos dez ou oito anos lia policiais e livros de «cowboys»... Quando vim para aqui disse: agora tenho que me defender! E trabalhei mais agora aqui, desde Abril do ano passado, do que em dez anos!
P. -- A literatura é apenas uma maneira de ganhar a vida?
R. -- Não! Fiz um artigo com a morte do Torga, aqui para a «Gazeta de Palmela», um artigo muito puxado cá das tripas, que não me pagaram, claro! Agora, isso é a chamada coisa do profissional, e eu não podia recusar! A puta não pode dizer não ao cliente, porra! Hoje ninguém quer é trabalhar!...
P. -- E isso é mau?
R. -- Porque é tudo a vigarizar! O Pires faz aquela merda daquelas crónicas no PÚBLICO -- o Lobo Antunes por acaso tem feito crónicas primorosas -- e agora, como não tinha material para a avença, reuniu-as num livro que é um disparate... E o gajo não precisa disso!
P. -- Voltando ao livro: parece que só faltam dois textos, um sobre o Torga e outro sobre o Vergílio Ferreira. Porquê? Mudou de opinião sobre eles?
R. -- Isso é mentira, nego tudo! Mas vou fazer uma «homenagem» a Miguel Torga. Porquê? Porque quando um gajo aprecia um autor não faz um poema de merda, como fez o Manuel Alegre, nem o que fez o estupor do Guterres, que vai para o Coliseu pedir um minuto de silêncio, parecia o bispo de Setúbal. Vá p'ró raio que o parta! Ainda o morto está quente na cova e já estão a explorar o gajo!
P. -- Como é que se pode homenagear um escritor de que não se gosta?
R. -- Não é isso! Há bocado falámos da avença: o Torga não era um escritor avençado! Era até um escritor único em Portugal, e no mundo, porque era um gajo que se editava a si próprio. Mas é um chato do caneco. Por exemplo, faz um poema para cada Natal: é como quem mata uma galinha ou um peru!
P. -- Não respondeu! Vai «aconselhar» um escritor que não parecia?
R. -- O gajo para mim era um mestre, foi muito importante na minha vida, e se o meu livro é uma autobiografia tenho que meter sempre o Torga! Mas deixei de lê-lo porque é um grandecíssimo chato! Não é não gostar dele: enganou-me! Então o gajo que não queria entrevistas nem prémios literários mamou os prémios todos quantos havia e morreu, como diz o Mário Soares, com a frustração de não ter tido o Prémio Nobel! Não queria mais nada?! E é muito reaccionário, benza-o Deus, coitadinho!
P. -- E Vergílio Ferreira?
R. -- Esse ainda é pior! Ainda está vivo! Já lhe mandei três postais, só para o chatear, claro! E sabe o que é que o gajo disse ao Vasco? Que três contos é muito dinheiro! E que depois um gajo manda a massa e eu não mando o livro! Estes cabrões são forretas, são mesquinhos... O José Carlos Vasconcelos fez um «JL» com uma homenagem ao Torga, e num almoço com o Cela disse o pior possível do gajo: que era sumítico, mesquinho, isto e aquilo... São uns hipócritas, porra! Agora não me esteja você a confundir, porque de facto não há dois Torgas neste país! Fiquei muito abalado, porque sou um bocado maluco dessa coisa da literatura e este gajo é, de facto, um exemplo de grande escritor... A minha paisagem humana vai-se despovoando. E a culpa também é um tanto minha: ando por cá a demorar-me... Não digo isto por causa do Torga. É porque, dias antes, o meu filho mais velho teve um colapso cardíaco e, pela ordem natural das coisas, eu devia ir à frente... Depois, uma filha minha telefonou para cá: tinha sido operada àquelas merdas dos miomas e não me quis dizer nada antes para eu não me estar a preocupar... Se eu só estou por cá a demorar-me, devia era ir-me embora, não é?
P. -- Deixou os policiais e os «cowboys». Tem lido o que se publica por aí?
R. -- Tudo! Aí é que está a gaita! Não há nenhum gajo que tenha agora publicado que eu não tenha comprado... Comprei «Estrela de Seis Pontas», do meu camarada Álvaro Cunhal, e gostei muito. «Cinco Noites...» é uma merda, mas este é muito bem feito.
P. -- E Herberto Helder? E a nova «Titânia» do Cesariny?
R. -- Tenho-o aí, porra!, mas o gajo estragou o livro! Poesia já não suporto, qualquer poesia...
P. -- Tem uma relação estranha com Cesariny: ora diz bem, ora diz mal...
R. -- É uma relação muito casta, muito casta! É assim: o Mário publicou nestes últimos anos -- também é avença! -- um livro giríssimo que esses gajos não gramaram e que é uma porrada no paneleiro do Fernandinho, «O Virgem Negra». Esse é um livro do Mário que com sessenta e tal anos continua com o mesmo desplante e a mesma graça de quando tinha 20! Agora, este «Titânia» é já muito desembrulhado... Tenho impressão que o livro -- estou agora a falar do meu, porque com as asneiras do Mário posso eu bem --, sem ser uma indecência, tem alguma coisa... Não, não é para me darem o Nobel!, mas tem uma certa piada... E são coisas que não ofendem ninguém. Mas vão ficar muito ofendidos!
P. -- Essa preocupação é quase uma novidade! Tem dito tão mal de tanta gente...
R. -- Isso não é assim! Um tipo tem um certo sentido crítico, uma certa costela malevolente, um certo pendor para a caricatura, e não se cala: fala e escreve. Depois, quando um gajo faz um livro de merda e eu digo que aquilo é uma merda, dizem-me: oh!, você diz mal de tudo! Eu não digo mal de tudo! Quando editei o Cesariny, o Mário Sacramento, o Vergílio Ferreira, é porque gostava! Não disse mal daquilo que editei! Agora, se a seguir fazem uma porcaria...
P. -- Disse-me que gostou muito do Pedro Paixão. Não deixa de ser um bocado surpreendente...
R. -- Tenho a impressão de que é o gajo que faz agora uma prosa mesmo moderna. Ele fala de um mundo em que estou inteiramente a Leste: para mim, a 24 de Julho de hoje é o Tibete! Mas fala com muita segurança, com muito conhecimento de causa e com emoção. Mas também não vai muito mais longe...
P. -- Também leu o romance de Miguel Esteves Cardoso?
R. -- O Miguel é assim um gajo giro, mas agora está a ficar insuportável. Pode-se gostar daquilo? Depois pensei: o gajo, para escrever isto, porque há lá grandes disparates mas também há coisas muito bem esgalhadas, deve estar muito alegre, muito entusiasmado. E mandei-lhe um postal a dizer «És o Mozart da prosa portuguesa!» O gajo gostou e mandou-me outro exemplar... Há também uma rapariga, que está agora um bocado sumida, que é a Hélia Correia. E estou convencido de que o Lobo Antunes está ainda na pujança, mas também está a entrar muito no requinte formal... E o último livro da Maria Velho da Costa tem coisas muito giras e tem coisas muito idiotas...
P. -- Parece ter sempre uma opinião definida sobre as pessoas...
R. -- Passam-se aqui dias em que não vejo ninguém. Qual é a minha ligação com o mundo? Era a televisão, é o rádio, são os jornais e é o telefone! Um gajo que está aqui sozinho, que não dá uma foda, o que é que faz? Lê, anota, pensa... Mas a vida não é só ler, porra! E então um gajo não se engana? Não sou o Jeová, essa está boa!
P. -- ... e manifesta-a de modo normalmente virulento e intempestivo...
R. -- Isso é uma grande qualidade! É muito prestimoso haver um gajo, que não é parvo de todo e que tem um bocado de experiência da literatura, que diz: isto é bom, isto não presta! Para mim, caralho! Não estou a dar valores a ninguém! Estás armado em polícia!, disse-me um gajo. Não estou armado em polícia, estou armado é em juiz! Porque se tenho uma opinião, digo-a ou escrevo-a!
P. -- Ninguém disse que isso não é um virtude!
R. -- Inestimável! Porque não conheço dois gajos como eu, porra! Há muitos anos, a Natália mandou-me um poema que era uma merda e um ensaio sobre o D. Sebastião que era um disparate: não publiquei. Nunca mais perdoou! Porque depois de eu ter publicado três livros dela, supôs que era o meu Deus... Não era! É pior que o ácido sulfúrico na barriga! Nunca mais perdoam! Mas espere lá, que eu sou muito desconfiado e quando me elogiam fico fodido! Mas o que é que este gajo quer? Quando me atacam ou me censuram já fico mais descansado, porque então vou meditar...
P. -- Mas esse estilo truculento, que ajudou a criar a aura de «maldito», não acabou por abafar de certo modo a sua obra literária propriamente dita? É como se o identificassem mais por essa circunstância biográfica do que pelos textos...
R. -- Mas o defeito é das pessoas, quero lá saber disso! Um tipo não pode evitar isso, não é? Quando vim para esta casa, esse estupor desse Jasmim, o Poeta das Gaivotas, veio cá e disse-me: «Não tens cabedal para esta casa!» E tu não tens cabedal para a tua mulher, que és um grande corno! Sabe o que é que o gajo disse? «Tu agora aqui deixas de ser maldito!» Deixo de ser maldito? Mas quem é que quer ser maldito, porra?! Ó pá!, eu aqui não estou melhor do que num quarto a aturar uma velha maluca?! Deixas de ser maldito... Ainda bem! Eu agora queria era ter aqui, em vez daquela merda dos carrinhos de linhas na parede, três quadros do Pomar, um do Chagall, dez Picassos! Para os vender e comprar carrinhos de linhas depois!
P. -- Mas você próprio não «exibiu» essa imagem?
R. -- Repare nas minhas calças: sou o gajo das calças curtas. Porquê? Porque não mando fazer um fato desde 1957 ou 1958! E por acaso tinha um bom alfaiate, mas o último fato não o paguei e nunca mais lá fui... «O gajo anda de calças assim para provocar, para se mostrar original.» Não é! Eu vejo aí é calças a três e quatro contos, e ia eu dar três contos por um par de calças?! Jamais de ma vie, porra! Se me dão calças compridas eu visto-as, dão-me curtas, eu visto-as! Quero lá saber... São dadas! Essa carneirada acha de mim uma coisa, eu acho deles outra! Agora, isto não tem nada a ver com a obra que fiz!
P. -- Pelas «reservas» que fez em relação ao novo livro, parece estar menos combativo...
R. -- Também estou a dar as últimas! Nesta casa recuperei, fisicamente, tanto quanto isso é possível a um gajo com duas hérnias, com um efizema... Agora é a vista que me está a foder mais, mas no aspecto de trabalho, de lucidez, de leitura, deixei os policiais e não sei que mais... E cortei com a televisão desde que começou a história do Cavaco, puta que os pariu...
P. -- Por falar em Cavaco, há uns anos dizia que não se sentia «digno» de entrar para o PCP. Depois disso filiou-se...
R. -- Pensei: agora que estou no fim, quero é que me arranjem onde cair morto... Sabe, eu gosto muito daquela bandeira e os gajos prometeram que me levam o caixão com a bandeira! Tenho uma militância contemplativa! Fui para ali como para um porto de abrigo...
P. -- Abrigo contra o quê?
R. -- Então não hei-de ter uma ideiazinha política, porra? Em relação a um PS que eu acho um partido do pior que há! Eu em tempos, quando era pequeno, fui assim um bocadinho salazarista, tinha até o busto de Salazar no meu quarto. Não tinha formação política nenhuma, era germanófilo, e de repente um gajo abre os olhos. Mas ainda hoje considero que o mano Salazar era um estadista a sério! Outro dia vi o Cavaco -- está a gravar mas não me importo! -- lá no Palácio de S. Bento e disse: em relação aos gajos que o rodeiam, e em relação ao Guterres, este gajo é um estadista! Agora, o Sampaio é bem giro, é um gajo porreiro!
P. -- O que é estranho é a ideia de não ser «digno»...
R. -- O comunista é um homem novo e eu era um gajo anarca, era um gajo cadastrado, fodilhão de miúdas, essas merdas todas...
P. -- Não sabia que era tão puritano!
R. -- Mas eles são muito puritanos! Eu não sou nada puritano, porra! E um comunista é tão puritano como outro gajo qualquer.
P. -- A ideia da morte perturba-o?
R. -- Estou sempre à espera de não acordar no dia seguinte! Aliás, tenho um problema de que se vai rir: como é que eu vou avisar que estou morto? Já me perguntaram por que é que não ponho o telefone ao pé da cama... Olhe que ideia fantástica! O meu filho do Pinhal Novo agora vem cá muitas vezes, o meu filho do Montijo nunca aqui veio... E está no Montijo, tem carro, estava aqui em meia-hora! Morro e ao fim de oito dias está aqui um fedor que não se pode...Quero lá saber! Mas eu tenho uma vida tão doente, que sou é um moribundo alegre, tenho espírito de convalescente... Mas já estou a ficar chateado disto... Fui criado numa casa com muita gente e aqui estou muito sozinho...
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