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<DOCNO>PUBLICO-19950319-102</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950319-102</DOCID>
<DATE>19950319</DATE>
<CATEGORY>Nacional</CATEGORY>
<AUTHOR>JPMP</AUTHOR>
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A primeira entrevista com António Guterres depois dos Estados Gerais
«O PSD é a espuma, nós somos a verdadeira corrente»
Entrevista de José Manuel Fernandes, Jerónimo Pimentel e Raul Vaz
A segurança com que apresenta as propostas é uma das marcas dominantes do discurso de António Guterres. Raramente lhe faltam os argumentos para defender as suas posições e justificar como é possível fazer diferente. É com entusiasmo que fala da educação como prioridade de um seu governo. Passa para a reforma fiscal, prometendo rever o IRS para, tendencialmente, chegar a um imposto único. Não se alarga em promessas, a cautela tempera-lhe as palavras. Diz ser chegado o momento de ascender ao poder perante um PSD que não se renovou, que é a «espuma», enquanto o PS é a «verdadeira corrente». Assume-se liberal na economia, mas exorta aos valores da solidariedade social. Para si, a preocupação com a cidadania, a sensibilidade às questões sociais, a valorização da cultura e a educação são as questões que distinguem, no mundo de hoje, a esquerda da direita. É com tudo isto que se apresenta ao eleitorado para ganhar o seu voto. E só espera que o país não mergulhe em «polémicas serôdias» para que a sua mensagem passe.
Não podia estar mais confiante no final daquela manhã. Aberta sobre a grande mesa do gabinete do líder do PS no Largo do Rato, a última edição da «American Economic Review». Um estudo referente a um inquérito estatístico a pares de gémeos americanos confirmava que, por cada ano adicional de escolaridade, há um ganho no vencimento auferido de 12 a 16 por cento. António Guterres rejubilava perante aquela confirmação da justeza da sua aposta na educação, a «paixão» do seu governo como gosta de afirmar. Bandeira do PS para o próximo combate eleitoral, combate que é o único que lhe interessa, desvalorizando todos os outros, inclusive o que agora opõe o PSD ao Presidente da República.
PÚBLICO -- O país está preso ao conflito, real e público, entre o Presidente da República e o líder do PSD. Qual é, na sua opinião, o papel do líder da oposição nesse conflito?
ANTÓNIO GUTERRES -- Não pretendo ter qualquer papel nesse conflito, porque o considero artificial. É gerado pelo PSD de acordo com a teoria da anormalidade, explicada por Pacheco Pereira. Para o PSD ganhar eleições, tem de criar uma situação política anormal com uma forte carga emotiva, que esconda os problemas reais do país e os erros da governação. Daí que, em meu entender, o PSD o provoque esse conflito com o Presidente da República. Isso é negativo para o país, por isso não desejo ter qualquer papel nesse conflito.
P. -- Porém, não foi o PSD que foi visitar Bettino Craxi...
R. -- Essa visita não foi dirigida contra o PSD. Foi um acto pessoal, do qual o Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha conhecimento e que o PSD aproveitou para lançar mais achas para a fogueira.
P. -- Muitos socialistas criticaram «off the record» o acto do Presidente, embora o seu partido tenha acabado a defendê-lo publicamente. Não seria altura de o PS se emancipar?
R. -- O PS não tem posições «off the record», o PS tem posições «on the record». O PS tem, em relação ao Presidente da República, uma posição de independência institucional que é evidente para todos os observadores políticos. Nem o PS é um instrumento do Presidente, nem o Presidente é um instrumento do PS.
P. -- E não acha que a última resposta do Presidente ao secretário-geral do PSD é mais um degrau nessa confrontação e, assim, favorece a estratégia dos sociais-democratas?
R. -- As declarações do secretário-geral do PSD foram objectivamente injuriosas e o Presidente da República tem o mesmo direito de legítima defesa que qualquer outro cidadão.
P. -- O PS não preferiria que o Presidente optasse por um comportamento mais discreto?
R. -- O PS não tem conselhos a dar ao Presidente da República. Ele é o árbitro da vida institucional e o PS respeita a forma como exerce essa arbitragem. Não é da nossa parte que surgirão polémicas com o Presidente, essas polémicas não servem o país, isso é um peditório para o qual não estou disposto a dar nada.
P. -- Mas a actual situação não serve a sua afirmação estratégica...
R. -- Muita gente me tem dito que, uma vez que inevitavelmente o conflito institucional agitado pelo PSD ocupa as primeiras páginas dos jornais, o PS devia fazer qualquer coisa para disputar esse espaço. Mas, se isso se entende como querendo obrigar o PS a adoptar uma estratégia de anormalidade, recuso liminarmente essa lógica. O nosso objectivo não é fazer espectáculo, é estudar seriamente os problemas, apresentar as nossas propostas e discuti-las com o país. Apesar de tudo, tenho consciência de que as pessoas vão distinguindo o que é a espuma da verdadeira corrente. O PSD é espuma, nós somos a verdadeira corrente.
P. -- O PS está sempre de acordo com o Presidente da República?
R. -- Não. Já houve várias ocasiões em que exprimimos o nosso desacordo, e é até um facto óbvio para todos que houve solicitações do PS para intervenções presidenciais que o Presidente da República não atendeu. Uma coisa é haver desacordo, o que é legítimo, outra coisa o insulto, a injúria, a criação de um clima artificial de confronto. Nisso não entramos.
P. -- Havendo esse clima de confronto, não seria melhor a dissolução?
R. -- Já o disse.
P. -- Mas, neste momento, depois de Mário Soares ter dito o que disse...
R. -- Ao sr. Presidente da República eu não faço o mesmo pedido mais do que uma vez. Já o fiz. O Presidente entendeu agir de outra maneira, eu respeito. Não vou insistir, não vou alimentar uma polémica serôdia.
P. -- Há quem diga que o Presidente tem alguma dificuldade em conter-se porque não acredita que o PS, sozinho, consiga derrotar o PSD. Isto é, não acredita na competência de António Guterres para derrotar...
R. -- Essa é uma questão que deve ser posta ao Presidente da República.
P. -- Nestes Estados Gerais houve mais independentes de esquerda do que pessoas do centro-direita. Isso não quer dizer que as pessoas que, contrariando a sua estratégia de não-coligações, diziam que o PS devia abrir-se à esquerda tinham razão?
R. -- A grande maioria dos independentes que trabalharam nos Estados Gerais não tem uma conotação nem à esquerda, nem à direita, nem tem um passado de colaboração com outros partidos políticos. São pessoas muito qualificadas, no plano técnico, cultural ou político, que nos quiseram dar o seu contributo numa lógica que é muito menos a do primado das ideologias e muito mais a do primado da procura de soluções para um país que enfrenta um desafio muito complexo neste fim de século.
P. -- Esperava-se, no entanto, mais gente do centro-direita...
R. -- Não estou de acordo. Inclusivamente tivemos nos Estados Gerais muita gente que colaborou com o Governo nos primeiros anos de Cavaco Silva, naquilo que lhes parecia ser um projecto renovador, e que depois chegaram à conclusão de que, afinal, era um projecto arcaico e que rapidamente se esgotou. Não faz sentido dizer que estes foram os Estados Gerais da esquerda, estes foram os Estados Gerais de uma Nova Maioria que se assume na esquerda democrática e no centro político em Portugal.
P. -- As conclusões dos Estados Gerais são a espinha dorsal do futuro programa de governo?
R. -- As conclusões dos Estados Gerais são um conjunto de orientações, princípios e valores que serão totalmente tidos em conta na elaboração do programa de governo.
P. -- E as pessoas que participaram neles são o embrião de um futuro governo socialista?
P. -- Seguramente que, na equipa que agora vou constituir para a elaboração do programa de governo, estarão, na sua esmagadora maioria, elementos que participaram nos conselhos coordenadores. É também minha intenção que esses conselhos se mantenham em funções e possam ser câmaras de diálogo permanente para a aferição e debate em torno da concretização detalhada das políticas sectoriais do programa de governo.
P. -- As pessoas que assinaram o contrato de legislatura são os pontas-de-lança do PS para um governo?
R. -- Não deve tirar-se nenhuma ilação directa entre a participação das pessoas nos Estados Gerais e a presença nesta ou naquela pasta ministerial. Essas pessoas foram escolhidas de acordo com critérios que têm que ver com a sua própria representatividade na sociedade portuguesa. Não necessariamente com o exercício de funções governativas.
P. -- Nesse grupo de pessoas havia, incontestavelmente, nomes de peso, mas também surgiram pelo menos dois que pareciam estar ali por razões eleitoralistas, casos de Carlos Lopes e Rosa Mota...
R. -- Não se trata de razões eleitoralistas. Em primeiro lugar, porque houve um fórum muito importante para tratar das questões do desporto. Em segundo lugar, a sua presença tem um significado simbólico fundamental: nós queremos um país vencedor; e, para todos nós, Carlos Lopes e Rosa Mota representam a vitória de Portugal. A sua presença nos Estados Gerais é a presença de um Portugal vencedor, não a de um Portugal que fica para trás, que perde terreno em relação ao resto da Europa. É o Portugal que ganha a maratona, e não o Portugal que está a perder a maratona.
P. -- Mas esse parece ser mais o terreno dos tempos de antena, não o de um fórum de discussão...
R. -- Não é o terreno dos tempos de antena, é um terreno simbólico fundamental. Os Estados Gerais não foram um desfile de ministeriáveis, foram a criação de condições para criar um Portugal vencedor, e isso também passa pelos símbolos e pela vivência das emoções.
P. -- Então, para quando a equipa de elaboração do programa de governo?
R. -- Será concretizada nas próximas semanas.
P. -- Nessa altura vai, certamente, ter um enorme problema para conciliar as expectativas de um Barros Moura e de um Victor Sá Machado...
R. -- O que há de mais notável nos textos que foi possível reunir no contrato de legislatura é que eles representam um consenso muito grande em relação ao essencial das estratégias e das políticas, assim como uma muito significativa compatibilização de pontos de vista. Saímos dali com uma prioridade clara, assumida por todos, que é a da valorização das pessoas, do conjunto educação-formação-ciência-cultura. Isso foi assumido por todos, mesmo aqueles que se preocuparam com as questões da saúde, da agricultura ou da indústria. Como prioridade fundamental, será a grande condicionante das próprias prioridades orçamentais. Quando é possível obter este tão importante consenso, não é de esperar que haja agora dificuldades na concretização do detalhe dos programas sectoriais.
P. -- Os documentos dos Estados Gerais contêm sobretudo declarações de intenções -- e muitas delas até poderiam ser subscritas por gente de outros partidos --, e tem poucas medidas concretas, ficando a sensação de que relativamente a estas, que são as mais difíceis, já nem todos estarão de acordo. Não houve decisões porque não houve consensos?
R. -- Comecemos pelas questões fulcrais. Questão central da política económica é a compatibilização dos objectivos de desenvolvimento com a União Económica e Monetária: há total consenso e total clareza, espelhada, aliás, em dois textos provenientes de dois conselhos diferentes e que são inteiramente compatíveis.
P. -- Nessa matéria também não há diferenças importantes em relação à actual maioria...
R. -- Há divergências profundas relativamente à forma como foi conduzida a política económica no passado.
P. -- Não foi isso que se depreendeu da entrevista de Daniel Bessa à SIC...
R. -- Há divergências profundas. A forma como se conseguiu a desinflação da economia portuguesa foi, do meu ponto de vista, trágica, na medida em que foi feita à custa do sector produtivo, das empresas e do emprego. Isso não quer dizer que nós sejamos favoráveis a que, agora, se reinflacione a economia. Nós consideramos que é muito importante manter uma política de estabilidade cambial e uma inflação baixa, o que não quer dizer que tenhamos estado de acordo com a estratégia que foi seguida para alcançar esses objectivos.
P. -- Então concorda com a estratégia que está a ser seguida agora?
R. -- Em muitos aspectos sim. Noutros, sobretudo naqueles que têm que ver com as prioridades orçamentais, há divergências profundas que estão explicitadas no contrato de legislatura Mas passemos à segunda questão fulcral: a prioridade fundamental.
Ela foi assumida e é a prioridade na qualificação das pessoas, na educação, na formação profissional, na ciência e na cultura. É uma prioridade que contrasta com as do Governo anterior -- este foi o grande fracasso da acção governativa de Cavaco Silva, o grande sector esquecido. A tal ponto que um ex-secretário de Estado, Joaquim Azevedo, disse que a educação tinha deixado de ser uma prioridade para os governos de Cavaco Silva, nomeadamente depois de Roberto Carneiro ter perdido as batalhas que perdeu e ter sido obrigado a sair...
P. -- A sensação com que se fica é a de que as vossas propostas são o programa de Roberto Carneiro retomado dez anos depois...
R. -- ... e a prova é que nesta legislatura, a partir de 1992, o peso da despesa em educação no conjunto da despesa pública tem uma quebra de cerca de dois por cento. Além disso, houve uma total desorientação no sector educativo e um gigantesco desperdício na formação profissional. Quatro ministros, quatro políticas, o que quer dizer que nem Cavaco Silva nem o PSD tinham qualquer estratégia para a educação.
Neste momento, há uma estratégia e dentro da educação há prioridades muito claras. As nossas duas prioridades fundamentais são a generalização da educação pré-escolar e uma aposta fundamental no ensino básico, para que num intervalo de tempo o mais curto possível haja um ensino básico humanizado, com escolas de um único turno, em que as crianças passem o dia inteiro na escola. Hoje passam metade do dia na escola da rua, o que nas zonas suburbanas é uma verdadeira tragédia.
P. -- E quatro anos chegam para pôr isso em prática?
R. -- Com certeza que não chegam, mas chegam para tornar irreversível o caminho nesse sentido. E está quantificado o esforço que vamos realizar nesses quatro anos. Em 1999, este sector terá um aumento de percentagem no PIB de cerca de um por cento; ou seja, tendo em conta as expectativas de crescimento económico até 1999 e a necessidade de redução do défice orçamental que nós próprios advogamos, isso representará cerca de um quarto do aumento da despesa pública previsível desde agora até então.
É um objectivo perfeitamente viável, não é despesista, o que é despesista é a prática do Governo de Cavaco Silva. Em 1985, o Estado gastava cerca de 44 escudos em cada 100 escudos gastos no nosso país; em 1995 gasta 53 escudos. Se algum governo fez crescer a despesa pública, foram os de Cavaco Silva; se alguém não tem nenhuma autoridade moral para criticar como despesistas e demagógicas propostas quantificadas, viáveis e que se dirigem a uma necessidade vital do país, é o PSD.
P. -- Antes do despesismo, retomemos a questão da educação: o que o seu governo pretende fazer é a política de Roberto Carneiro com mais dinheiro?
R. -- Não. Há o reconhecimento do que o dr. Roberto Carneiro fez há dez anos e que o Governo não cumpriu, tendo ele de ser sacrificado. Mas há algumas divergências de orientação relativamente à prática política de Roberto Carneiro, nomeadamente na ênfase das prioridades. A prioridade ao pré-escolar não era uma prioridade de Roberto Carneiro, é nossa.
P. -- Qual é o objectivo do PS relativamente ao pré-escolar?
R. -- O nosso objectivo é conseguir que o mais rapidamente possível exista uma cobertura nacional do pré-escolar, embora não como um sistema estatal.
P. -- O primeiro-ministro disse que o objectivo do seu Governo é conseguir 85 a 95 por cento até ao fim do século. Não se está a ver a diferença...
R. -- Esse objectivo é totalmente incompatível com as suas prioridades orçamentais e com o facto de o Governo ter renunciado, em sede de negociação do Quadro Comunitário de Apoio, ao financiamento europeu para o pré-escolar. As afirmações de Cavaco Silva não passam de demagogia.
Mas por que é que o pré-escolar é essencial? Porque é uma condição decisiva para a igualdade de oportunidades. Eu próprio, quando era estudante universitário, trabalhei num bairro de lata de Lisboa onde tínhamos jardins-escola. Fizemos um estudo estatístico do comportamento dos alunos do nosso jardim-escola no ensino primário e verificámos que tinham um sucesso escolar muitíssimo superior ao das outras crianças do bairro. É, por isso, uma condição para um ensino básico muito mais eficaz, com muito menos perdas, com menos situações de abandono e insucesso.
P. -- Porquê esta obsessão com a educação?
R. -- A primeira razão desta prioridade total à educação decorre do facto de o modelo de desenvolvimento cavaquista, que assentou na mão-de-obra barata, estar esgotado com a dissolução do bloco de Leste e com a abertura dos mercados internacionais. Não somos mais a reserva de mão-de-obra barata do mercado europeu fechado. A segunda razão é que a educação é uma condição fundamental para a igualdade de oportunidades. O nosso sistema, infelizmente, reproduz as injustiças de geração para geração e, por isso, agrava a pobreza e a exclusão social.
P. -- Essa aposta no básico é uma atitude nova dos partidos socialistas e da esquerda democrática na Europa. Será devido a ela que mantêm as propinas no ensino superior?
R. -- É justo que as famílias de maiores recursos possam comparticipar nas despesas de educação superior dos seus filhos. O único problema é que isso assenta nas declarações do IRS e nós temos um sistema fiscal em que só pagam impostos directos os que vivem dos rendimentos do seu trabalho, as classes médias.
P. -- Como é que fazem para ultrapassar este problema? Não vão pedir atestados de riqueza às juntas de freguesia...
R. -- Queremos conduzir uma reforma fiscal, que é uma necessidade tão evidente para o país que o próprio Governo a reconhece e até convidou um socialista para dirigir a comissão da reforma. O que é necessário é que o IRS seja um imposto único sobre o rendimento, e não um imposto fundamentalmente sobre os rendimentos do trabalho.
P. -- Mas, enquanto não há novo IRS, o que é que faz com as propinas?
R. -- Nós pretendemos reformular o decreto-lei das propinas em simultâneo com a revisão do IRS, para conseguir este objectivo.
P. -- Quantos anos?
R. -- Espero que possa ser concretizado na primeira metade da legislatura. As questões da reforma fiscal não podem ser feitas de ânimo leve, mas temos ideias bastante concretas sobre o que é desejável fazer.
P. -- Uma das pessoas fundamentais no painel da educação foi o prof. Mariano Gago, que ao longo de anos a fio se manifestou contra as propinas. Ele mudou de opinião?
R. -- A conclusão a que chegámos todos em conjunto é que esta lei das propinas é injusta e por isso deve ser revista. Mas o princípio de que as famílias mais ricas devem poder suportar uma parte do custo da educação superior é um princípio justo. Para além de que há uma alteração que não pode ser esquecida: é que, neste momento, o número de alunos que entram no superior privado já é superior ao dos que entram para o público.
P. -- Isso é precisamente um dos argumentos do Governo a favor das propinas e que, na altura, o PS combateu...
R. -- O Partido Socialista sempre disse o que estou a dizer agora relativamente às propinas...
P. -- Não foi isso que aconteceu no início, antes do seu mandato como secretário-geral...
R. -- Eu sou responsável pelas posições do PS desde que sou dirigente, embora assuma gostosamente o passado do Partido Socialista.
P. -- Voltemos às reformas fiscais: todos estão de acordo, o IRS é injusto, mas como é que resolve o problema?
R. -- O caminho foi apontado desde logo por muitos dos que votaram vencidos, na altura em que o IRS foi estabelecido. O IRS permite cinco taxas liberatórias, o que quer dizer que há seis formas diferentes de taxar o rendimento, sendo que a mais pesada é a que cai sobre os rendimentos de trabalho, por um lado, e sobre os depósitos bancários, por outro. O que é indispensável é fazer um esforço no sentido de que, qualquer que seja a origem do rendimento, ele seja taxado da mesma maneira, isto é, um esforço de redução, se possível de anulação, do número de taxas liberatórias, criando condições para um verdadeiro imposto único. Esta orientação tem limites, tem dificuldades, mas será feita de forma responsável.
P. -- E o problema dos impostos sobre o património?
R. -- Esse problema é mais complexo porque são três: a sisa, a contribuição autárquica e o imposto sucessório. A sisa é um imposto particularmente antieconómico. Porquê? Porque, numa sociedade onde a mobilidade e a flexibilidade são cada vez mais desejáveis, a sisa penaliza a transmissão da propriedade. Por isso é desejável que ela seja abolida. Agora, não podemos esquecer que a sisa tem um rendimento significativo, pelo que não vamos aboli-la se não encontrarmos uma solução do mesmo tipo mais racional e que assegure um nível de receitas equivalente.
O segundo domínio em que há profundas injustiças é o da contribuição autárquica. Se existirem duas casas ao lado uma da outra, uma com avaliação matricial antiga e outra com uma avaliação actualizada, a primeira praticamente não paga nada e a segunda sofre um processo que é verdadeiramente expropriatório. Se fosse feita uma reavaliação de todos os patrimónios e fossem aplicadas as taxas actuais, criaríamos um sistema de expropriação global da economia. O que nos parece desejável é fixar o montante que o Estado deseja cobrar e iniciar um processo de transição que permita uma reavaliação do património e conduza, simultaneamente, a uma redução drástica da taxa.
O imposto sucessório tem um problema semelhante. As grandes fortunas não o pagam e há certos patrimónios, nomeadamente imobiliários, que também sofrem penalizações quase expropriatórias. A nossa intenção é criar condições que permitam, com a igualização, um imposto sucessório cujas taxas sejam muitíssimo mais baixas do que as actuais.
P. -- E isso não leva a uma perda de receitas?
R. -- Não, não. O que eu pretendo obter é a mesma receita, mas garantindo justiça e equidade na sua aplicação.
P. -- Alarga então a base?
R. -- Alargando a base de tributação, baixo as taxas.
P. -- Mas esse é exactamente o objectivo da reforma fiscal que está em curso...
R. -- Se esse é o objectivo, isso dá-me uma enorme vontade de rir, porque o que eu vejo é que estamos cada vez pior nesse domínio. Se estão satisfeitos com a situação actual, continuem a pagar os seus impostos, votem no PSD e vivam felizes. Eu estou tão insatisfeito com os impostos, acho que o que se está a passar é de uma injustiça tão gritante e as pessoas sentem-no tanto que muitos se julgam legitimados para fugir ao fisco. Ora, um dos mais graves dramas da sociedade portuguesa é a generalização da ideia de que só os parvos têm que pagar impostos. Com justiça fiscal, o normal seria que as pessoas sentissem o dever cívico de pagar os seus impostos.
P. -- A observação tem em conta o que está escrito como objectivo da reforma fiscal...
R. -- Não está escrito nem está aplicado. E devo dizer-lhe que o prof. Cavaco Silva está no poder há dez anos, já teve tempo para aplicar tudo quanto era necessário para resolver este problema. Não tem nenhuma autoridade moral para pedir um crédito de confiança para continuar a não fazer aquilo que nunca fez.
P. -- Ele não pediu, vai-se embora...
R. -- ... pede para o dr. Fernando Nogueira que é uma emanação sua, sem qualquer novidade ou inovação.
P. -- Toda essa reforma fiscal, vai fazê-la no mesmo prazo de dois anos?
R. -- Não. Considero que os ajustamentos no IRS são, apesar de tudo, mais simples do que os outros. Os ajustamentos em relação à riqueza exigem períodos de transição bastante dilatados no tempo. As alterações ao IRS serão uma prioridade, até para nos permitir introduzir um outro princípio importante: o da selectividade nas políticas sociais. Para isso são necessárias ideias inovadoras. Vou dar um exemplo: a habitação social tem tido como princípio a construção de casas pelo Estado e a bonificação de juros para a sua compra; em vez disso, o que nos parece fundamental é reabilitar o mercado de arrendamento e que o esforço do Estado se destine a apoiar as famílias no seu rendimento, para que elas tenham acesso a esse mercado.
P. -- Isso não é, à partida, muito parecido com o já existente subsídio de renda?
R. -- O subsídio de renda foi uma ideia do Governo do bloco central que nunca foi aplicada a sério.
P. -- A par da educação, a criação do rendimento mínimo garantido é a sua única promessa quantificada. Não teme que essa medida não só gere uma enorme burocracia, como acabe por constituir um estímulo ao não-trabalho?
R. -- Se o rendimento mínimo garantido fosse muito elevado, poderia eventualmente funcionar como estímulo ao não-trabalho. Mas, como fomos muitos cautelosos e a base de cálculo é a pensão social (17.50000), o rendimento mínimo destina-se a assegurar apenas aquilo a que eu chamaria as condições mínimas de dignidade humana e de sobrevivência. Para além disso, a atribuição do rendimento mínimo pressupõe o acompanhamento das famílias no sentido de as apoiar na formação profissional ou na procura de postos de trabalho.
Por outro lado, se o rendimento mínimo garantido fosse gerido pela burocracia central do Estado, teria esses inconvenientes. Mas as experiências dos países da UE onde ele existe -- e são todos menos Portugal e a Grécia -- revelam que a sua aplicação é tanto mais eficaz quanto mais descentralizada. A nossa proposta é que seja gerido a nível local e com a participação das organizações de solidariedade social mais envolvidas no tratamento das questões da pobreza. Queremos fazer participar a sociedade e evitar o alargamento de uma burocracia de Estado.
P. -- E quanto custa isso?
R. -- Com o grau de cautela que tivemos, o esforço é de apenas 0,3 por cento do PIB. É um preço muito baixo para a dignidade das pessoas, sobretudo quando há em Portugal cada vez mais famílias que não têm nenhum rendimento legal. E ajudará a eliminar causas que são hoje geradores da criminalidade nas ruas, geradoras de uma profunda intranquilidade. Ao assumir, pela primeira vez em Portugal, o combate à pobreza como uma prioridade...
P. -- Já está a falar de outra prioridade, para além da educação...
R. -- É com um nível de afectação de recursos muito menor, são níveis diferentes de aposta. Ao assumir este combate à pobreza, estamos a dar um contributo para resolver um dos problemas mais graves da sociedade portuguesa, que é o aumento da criminalidade e tráfico de droga.
P. -- Vejamos um caso concreto: aplicando essa lei, iria acontecer que todos os arrumadores de carros que enxameiam as cidades portuguesas e tenham mais de 25 anos passariam a receber o rendimento mínimo garantido. E isso não parece nada que os tirasse da rua, antes seria mais provável que fosse alimentar o consumo de droga...
R. -- Não estou nada de acordo com isso. Quem ler o projecto de lei vê que há outras medidas, de acompanhamento social. Foram escolher um exemplo... Mas a situação que mais me preocupa ainda é a daquelas famílias em que marido e mulher, com 45 anos, sem habilitação escolar e profissional, ficam desempregados. Quando terminam os prazos dos subsídios de desemprego, ficam sem nada. Para essas situações é irrecusável moralmente o rendimento mínimo garantido. Será pouco, não chegará, mas é qualquer coisa.
P. -- Mas na situação dessa família bastaria prolongar os subsídios de desemprego «ad eternum»...
R. -- Ora bem, mas isso sairia muitíssimo mais caro e é hoje reconhecido nos países da Comunidade que assim procedem como sendo um elemento fortemente dissuasor da procura de novos postos de trabalho, porque permite manter sem limite o rendimento da família sem ela trabalhar.
P. -- Voltando aos custos: em Setembro de 1993, numa entrevista falava de 20 a 30 milhões de contos. O projecto do PS, de Maio de 1994, fala de 35 a 40 milhões. O dr. Daniel Bessa, na SIC, disse que seriam 50 milhões de contos. Onde é que vamos parar? Não receia que se isto transforme numa caixa de pandora?
R. -- O problema da quantificação exacta é que não existem em Portugal estatísticas de rendimento, só existem estatísticas de consumo. Por isso, o trabalho técnico foi complicado para se poder ter uma estimativa sólida sobre o custo efectivo da medida. A nossa estimativa final no projecto-lei é de 35 a 40 milhões de contos no imediato, sendo de 50 o limite para 1999.
P. -- E os imigrantes estrangeiros desempregados têm direito a esse rendimento mínimo?
R. -- Têm, é para todas as famílias residentes em Portugal. Essa é uma questão de filosofia humanista de que não abdicamos, seja impopular ou não. Aliás, a nossa escolha da educação não é uma questão de popularidade. Há um estudo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, de 1990, onde se vê que a maioria dos portugueses desvaloriza o papel da educação como vector essencial do desenvolvimento. Mas, para nós, o facto de não haver essa consciência não nos faz desistir, antes nos faz ser ainda mais enfáticos na explicação da importância vital da aposta na educação.
P. -- Assim ainda perde as eleições...
R. -- Eu confio no esforço pedagógico que estamos a fazer e confio que os portugueses vão perceber que temos propostas sérias e não eleitoralistas.
P. -- Apesar do que disse o Presidente da República recentemente, o seu objectivo é a maioria absoluta...
R. -- Ora aí tem um ponto em que não estamos de acordo...
P. -- Sim, mas, mesmo deixando de lado a estratégia da «anormalidade» e da criação artificial de conflitos, temos de concordar, como diz Pacheco Pereira, que o sistema político português não favorece a formação de maiorias absolutas...
R. -- Há maiorias absolutas há oito anos...
P. -- Isso não altera o essencial. Em Espanha, com 37-38 por cento obtém-se uma maioria absoluta, enquanto em Portugal são necessários 43-45 por cento. Para obter este tipo de votação, sobretudo um partido de esquerda como o PS, que tem à sua esquerda um osso tão duro de roer como o PCP, mais difícil de esvaziar do que o CDS, não será necessário dramatizar as opções como, de alguma forma, foi feito nas presidenciais de 1986 ou aquando das maiorias de Cavaco Silva?
R. -- Referiu duas coisas diferentes: uma é o sistema político -- eu desejo que o PS tenha uma maioria, não quero ter essa maioria sem ter a confiança dos portugueses e, para mim, a proporcionalidade é um valor no qual acredito. A outra é a dramatização -- eu sou defensor da dramatização da vida política, mas em torno de questões reais; sou contrário à dramatização em torno de questões artificiais. Não contem comigo para dramatizar a vida política abrindo polémicas estéreis entre órgãos de soberania. A dramatização da vida política para defender as minhas ideias fá-la-ei de forma tão forte e tão audível quanto for possível.
P. -- Não é isso que ressalta para a opinião pública...
R. -- ... porque a própria lógica de funcionamento da relação entre a sociedade política e a sociedade mediática funciona mais no sentido de valorizar a dramatização das questões do político puro e, às vezes, do politiqueiro. É um dado de facto que eu aceito, porque a vida é o que é.
P. -- Mas o que ressalta também dos Estados Gerais é que, afinal de contas, em termos de política macroeconómica e política europeia continua tudo na mesma. Há, sobretudo, alguém que oferece mais investimento na educação e o rendimento mínimo garantido. Isso não é pouco para clarificar as opções?
R. -- Tive ocasião de dizer no encerramento dos Estados Gerais que a alternância democrática é um valor. E, por isso, o PS não estará no poder para sempre. Até é bom para a democracia que assim aconteça. Agora, há governos que passam e não deixam marcas, e eu gostaria de deixar três marcas. A primeira, a da transparência e da cultura democrática no exercício do poder, da dessacralização do poder -- e isso é muito importante porque tem que ver com a cidadania e a participação. A segunda marca será assumir como prioridade essencial a valorização das pessoas e tornar isto de alguma forma irreversível. A terceira tem que ver com uma sensibilidade às questões sociais, com uma cultura de solidariedade a que a vida portuguesa tem sido muitas vezes avessa. É aqui que estará o essencial da diferença.
Hoje, todos devemos reconhecer que a margem de manobra das políticas económicas é limitada. Pertencemos à UE, isso tem regras, e essas regras serão cumpridas. Não há nenhuma corrente política com futuro que não reconheça que é ao mercado que compete o essencial na afectação dos recursos na economia e que não reconheça que o Estado deve ter sobretudo um papel regulador e reequilibrador no plano da justiça e da solidariedade.
P. -- A esquerda mais próxima da direita?
R. -- Aquilo que cada vez mais distingue esquerda e direita numa perspectiva moderna prende-se com as questões da cidadania, com a sensibilidade às questões sociais, com a valorização da cultura e com a educação. Quem ache que para ser de esquerda é preciso ser a favor das nacionalizações ou que o mercado não deve ser respeitado está, pelo menos, 20 anos atrasado. É algum saudosismo desse tipo de esquerda que envenena muitas das análises sobre as diferenças entre o PS e o PSD. Não é por acaso que o principal intérprete da tese da não-diferença entre o PS e o PSD e o dr. Álvaro Cunhal.
P. -- Ainda há um eleitorado afecto às teses de Álvaro Cunhal que pode ajudar a decidir a vitória do PS. O que é que tem a dizer a esse eleitorado?
R. -- Terão de escolher se querem ter um governo do PSD ou um do PS. Se querem ter um governo do PS, têm de votar no PS.
P. -- O que lhes diz é para votarem útil, mais nada?
R. -- Com certeza. Um dos critérios fundamentais da motivação do eleitorado é a utilidade do voto. Para eu conseguir o voto dos comunistas, basta que eles compreendam que, do ponto de vista da justiça social e das garantias democráticas, do ponto de vista do combate ao abuso do poder, ao clientelismo e à corrupção, há muito a ganhar em votar PS. Não preciso de parecer comunista.
P. -- A educação e o rendimento mínimo garantido serão, assim, as únicas diferenças quantificadas na vossa proposta eleitoral?
R. -- Essas duas medidas correspondem a dois objectivos inamovíveis que nós entendemos que deviam já ser quantificados. Em relação a todos os outros sectores, a possibilidade de ir mais ou menos longe depende da própria evolução da economia. E naturalmente que se poderá ir mais longe na saúde, na habitação, se for mais rápido e mais forte o crescimento da riqueza. Definimos estratégias, definimos orientações, nalguns casos profundamente inovadoras. O que dizemos sobre saúde, por exemplo, é profundamente inovador, mas não se assume um objectivo quantificado porque vai depender do que for o crescimento da economia.
P. -- Não teme que haja depois algumas desilusões? Por exemplo: na área da cultura, há zonas que parecem ter alguma continuidade e outras de ruptura, mas, em muitos aspectos, mais uma vez parece estar-se perante um regresso a uma política anterior. Muitas daquelas políticas, de alguma forma, eram do tempo de Teresa Patrício Gouveia...
R. -- Mas qual é o mal disso?
P. -- Não tem mal nenhum...
R. -- Eu não sou pelo pecado original das políticas. O facto de o PSD ter tomado uma medida certa não quer dizer que a gente a não tome. Só é pena que tenha abandonado algumas das medidas certas que tomou no princípio.
P. -- Algumas delas foram abandonadas por razões orçamentais...
R. -- As medidas culturais não foram abandonadas por razões orçamentais, foram abandonadas pela lógica de terra queimada do dr. Santana Lopes.
P. -- E recuperam muitos dos colaboradores da ex-secretária de Estado...
R. -- Com certeza, é mais uma prova de que, afinal de contas, nem tudo foram ex-militantes do PCP nos Estados Gerais. É que o PSD deu uma ilusão de abertura há dez anos e, depois, fechou-se sobre si próprio. E o PS foi no passado um partido fechado e, hoje, está aberto à sociedade portuguesa. É por isso que eu acho que o PS é hoje um partido portador de futuro e que o PSD é hoje um partido esgotado. E é para mim profundamente positivo ter comigo muitos técnicos qualificados que, há dez anos, apostaram em apoiar o Governo do PSD porque acreditaram nele.
P. -- Voltando ao painel da cultura, nomeadamente à política da televisão pública, o que lá é proposto não implica uma duplicação do investimento do Estado?
R. -- Porventura não, se aceitarmos que a televisão pública não pode disputar audiências a qualquer preço, mas sim aceitar alguma modéstia no seu funcionamento. Eu penso que a actual situação na televisão é de desperdício, de gasto absolutamente inacreditável, de total falta de controlo nas despesas, o que configura, para além de uma manipulação política intolerável, sobretudo na informação do primeiro canal, a maior incompetência de gestão. Se há conselho de gestão que tem revelado a maior incompetência, para além de total subserviência na lógica do comissariado político em relação ao PSD, tem sido o da televisão pública dos últimos anos.
P. -- Não reconhece que a gestão de Freitas Cruz modificou a política despesista anterior?
R. -- Alguns dos contratos celebrados ou mantidos pelo dr. Freitas Cruz são ruinosos.
P. -- Tais como?
R. -- Por exemplo, os que respeitam ao futebol.
P. -- Admitiria um governo socialista a privatização de um dos canais públicos?
R. -- A estratégia que está configurada nos Estados Gerais e que assumo neste momento é a da existência de um segundo canal destinado apenas a públicos minoritários e de um primeiro canal generalista, embora com uma lógica que não seja a da disputa frenética das audiências. A evolução futura do audiovisual é imprevisível.
P. -- O PSD tem disposto da vantagem de conseguir ser, por vezes, poder e oposição ao mesmo tempo, uma espécie de alternância a si próprio. Por vezes, a contestação no seio da maioria foi superior à protagonizada pelo PS...
R. -- Penso que uma das vantagens que teve o último congresso do PSD foi a de deixar claro que quem ganhou foi o aparelho e que qualquer impulso renovador foi completamente inviabilizado. Com a actual solução, parece-me óbvio que o PSD não está em condições de assegurar a alternância a si próprio, quem ganhou foi o mesmo PSD. Agora, a questão da alternância deve ser colocada em relação às maiorias. Eu sou defensor da estabilidade política e reconheço que esta se consegue mais facilmente com maiorias de governo. Por isso, entendo que a uma maioria do PSD deve seguir-se uma maioria do PS.
P. -- Afirmou que Fernando Nogueira seria o Carvalhas de Cavaco Silva. Mantém essa ideia, mesmo depois de ele ter saído do Governo contra a opinião de Cavaco?
R. -- O problema é que o dr. Fernando Nogueira afirmou primeiro que queria sair do Governo, depois o primeiro-ministro não deixou, e ele submeteu-se à sua vontade e só veio a sair tarde de mais, quando devia ter saído no início. Afirmou recentemente que o PSD é dirigido por uma «troika» composta por ele próprio, pelo primeiro-ministro e pelo dr. Pacheco Pereira. Logo, eu diria que há hoje três PSD, o que revela que o dr. Fernando Nogueira atribui a si próprio uma situação de subalternidade.
P. -- Não acha que, alterando o estatuto dos titulares dos cargos políticos, mexendo nos seus direitos e obrigando à transparência, afunila o recrutamento de pessoas para a actividade política?
R. -- Penso que cada vez mais ficaremos restritos a recrutar gente séria.
P. -- Nem todos os sérios são competentes e nem todos os competentes são sérios...
R. -- ... não estou de acordo que haja uma relação inversa entre a competência e a seriedade da classe política...
P. -- ... a questão é saber se não considera que, com estas restrições, terá de haver compensações, pagando melhor a quem se dispõe a exercer cargos dessa natureza?
R. -- Poderá não ser das mais bem pagas do mundo, mas não creio que esse seja o problema decisivo da qualidade da classe política.
P. -- Mas a questão do vencimento não é importante?
R. -- Não considero que essa seja uma questão essencial. O essencial é a existência de regras de transparência e de incompatibilidades que permitam acabar com a promiscuidade entre o interesse público e os privados e que permitam garantir o restabelecimento da confiança da população naqueles que governam. E não creio que isso afaste gente competente. Penso, sim, que afastará -- e é bom que afaste -- aqueles que pretendem ir para a política para auferir benefícios ilegítimos. Eu não acho que haja qualquer vantagem em ter um deputado cujo objectivo seja servir-se dessa sua condição para vender mais caro o seu serviço a empresas nas negociações com o Estado. Isso é o que existe hoje. Afastar esses deputados não é afastar a competência, é afastar a falta de seriedade.
P. -- E essa situação é muito comum?
R. -- Devo dizer-lhe que essa situação é hoje muito frequente, nomeadamente no partido do Governo. Até porque é legal.
P. -- Uma das propostas de reforma é a do acesso de independentes às eleições para a Assembleia da República. Tendo em conta a recente criação de um partido confessional, não o preocupa que esta sua proposta possa favorecer a ocorrência de mais casos destes sem terem de passar por qualquer crivo, nomeadamente pelo Tribunal Constitucional?
R. -- A minha posição é de princípio: o poder reside nos cidadãos e os partidos apresentam candidaturas em nome dos cidadãos. Não há nenhuma razão para que esse direito não seja dado aos próprios cidadãos e tenha de passar obrigatoriamente pela mediação dos partidos. A questão que me põe é uma questão real, há sempre riscos de perversão no sistema democrático, mas eles tanto existem pela possibilidade de apresentação de candidaturas independentes como pela de criação de partidos realizando a forma de perversão que referiu, visto que já hoje com cinco mil assinaturas se pode criar um partido político. É extremamente fácil em Portugal a um qualquer tipo de interesses criar um partido político para prosseguir esses fins.
P. -- É mais fácil fazer um partido do que promover um referendo local...
R. -- Uma das coisas que desejamos é criar condições que facilitem os referendos locais, que hoje são praticamente inviáveis, e ao mesmo tempo dar a iniciativa popular aos cidadãos para o referendo nacional.
P. -- Antes da saída de cena de Cavaco Silva, a grande derrota para si seria o PSD repetir a maioria absoluta, mas agora toda a gente considera Nogueira um candidato mais fraco, logo o seu desafio aumentou substancialmente -- será sempre um derrotado se não conquistar a maioria. Se não a alcançar, o que é que faz?
R. -- O que vou fazer di-lo-ei na altura, de acordo com a minha consciência. O meu objectivo antes e depois é o mesmo: ganhar as eleições.
P. -- Ganhar as eleições ou ganhá-las com maioria?
R. -- Ganhar as eleições com maioria absoluta, porque considero que a estabilidade é um valor. Mas também disse que, se não tiver maioria absoluta, aceitarei o veredicto dos portugueses, governando com maioria relativa.
P. -- Fernando Nogueira não tem o carisma de Cavaco Silva, mas também não concentra sobre si tantos ódios. No seu entender, ele é um adversário mais fácil ou mais difícil?
R. -- Não sei, nem isso me preocupa, o que me preocupa é a força das nossas ideias, das nossas convicções e dos nossos valores. Nós não lutamos contra o PSD, lutamos a favor daquilo que pensamos para o país.
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