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<DOCNO>PUBLICO-19950327-085</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950327-085</DOCID>
<DATE>19950327</DATE>
<CATEGORY>Diversos</CATEGORY>
<AUTHOR>JCE</AUTHOR>
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Contra a «dramatização» do discurso político
João Carlos Espada
Na passada terça-feira, na Universidade de Berkeley, na Califórnia, realizou-se um debate sobre a experiência portuguesa de transição para a democracia. O ponto de partida era o livro de Samuel P. Huntington, da Universidade da Harvard, dedicado à «terceira vaga» de democratizações na segunda metade do século XX. De acordo com Huntington, Portugal inaugurou esta terceira vaga, com a revolução de Abril de 1974. As dificuldades de percurso e o sucesso global da experiência portuguesa teriam influenciado directamente as políticas externas americana e europeia, tornando-as claramente comprometidas com a causa da democratização no Sul da Europa, na América Latina e no Sueste asiático. Finalmente, esta onda de democratização teria conduzido, numa segunda fase, ao colapso do comunismo.
A proposta de Huntington é suficientemente geral para poder ser criticada em muitos aspectos. Mas o ponto em discussão não era tanto o da pertinência da tese geral sobre a «terceira vaga» mas, sobretudo, o das condições que tinham propiciado o sucesso da democratização portuguesa. Entre essas condições, a análise centrava-se nos aspectos políticos e institucionais da construção democrática, que dizer, aqueles aspectos que decorrem das decisões dos actores políticos, mais do que das tradições particulares do país.
Gostaria de submeter aqui, tal como submeti em Berkeley, a hipótese de que um factor crucial do sucesso português foi a prioridade concedida ao acordo sobre regras gerais, em detrimento do acordo sobre objectivos particulares. E acrescentaria que, se essa hipótese estiver correcta, a prioridade de regras gerais sobre objectivos particulares volta hoje a ser crucial na democracia portuguesa.
Quatro momentos da experiência portuguesa, entre vários outros, podem ser citados para ilustrar o papel desempenhado pela prioridade das regras gerais. Em primeiro lugar, o anúncio pelos militares do MFA de que eleições geral tinham lugar um ano após o golpe de 1974. Estas «eleições fundadoras», como lhe chamam O'Donnell e Schmitter, forneceram os alicerces da legitimidade parlamentar que permitiram às forças moderadas derrubar a tentativa de golpe de Novembro de 1975, e, o que é mais importante, derrubá-lo em nome da democracia parlamentar. Sem as eleições de Abril de 1975, o combate contra a aliança comunista esquerdista teria sido um mero combate entre propostas políticas substantivas rivais, e não, como realmente aconteceu, um combate entre defensores de regras imparciais e defensores de objectivos particulares.
Um segundo momento importante foi a declaração do major Melo Antunes, à saída do 25 de Novembro, garantindo que o Partido Comunista não seria ilegalizado, desde que ele repeitasse as regras do jogo democrático, nomeadamente, o veredicto sagrado do voto. Embora possa ser dito que isto contribuiu para atrasar a normalização do sistema democrático e da economia de mercado, a verdade é que essa decisão reforçou uma vez mais o consenso nacional em torno de regras gerais.
Um terceiro momento importante foram as eleições presidenciais de 1985-86, as quais, de alguma forma encerraram o ciclo da transição. O confronto entre Mário Soares e Freitas do Amaral foi um confronto entre dois protagonistas maiores da batalha por regras gerais na vida política portuguesa. Não é indiferente que a «direita» e a «esquerda» tenham sido representadas nesse memorável confronto por líderes moderados com inquestionável apego ao modelo liberal democrático do Oeste («Ocidente» parece que não é, hoje, «politicamente correcto»).
Um quarto momento crucial terá sido a convocação de eleições gerais em 1987, pelo presidente Soares. Ao ter sido eleito pela «esquerda» e ao ter desobedecido à reivindicação de um governo para a «esquerda», Mário Soares consagrou no país a ideia de que existem regras gerais que são aplicadas, mesmo quando desagradam a certos objectivos particulares. Acredito que essa decisão foi crucial para o clima de estabilidade e crescimento económico que o país viveu até recentemente.
Se Portugal tem, hoje, um «problema», não creio que ele resida, sobretudo, em matérias de política substantiva. Há certamente muitas políticas erradas, outras mais ou menos, e outras simplesmente incontornáveis. Mas há um traço distintivo e seriamente preocupante na atmosfera política nacional: uma crescente «crispação» no confronto político, na linguagem e na dramatização do discurso, o que ocorre a par com um cepticismo crescente acerca da existência de regras gerais que limitem a capacidade da actual maioria prosseguir objectivos particulares.
Alguns líderes da maioria actual pensam mesmo -- e defendem publicamente -- que a dramatização do discurso (acompanhada de medidas duras contra este ou aquele caso de alegada corrupção) é a solução ideal para o momento presente. (Nalguns casos, fica mesmo a dúvida se eles não advogarão esse tipo de solução para todos os momentos, isto é, se essa não é a sua visão da política.)
Este é um erro fatal. Portugal é uma democracia relativamente jovem confrontada com tensões crescentes no mundo pós-guerra fria, e com um impacto da plena integração europeia que será necessariamente doloroso. Qualquer observador interessado no fenómeno político sabe que estes são os sintomas de uma necessidade imperiosa: coesão nacional.
A direita tradicional vê a coesão nacional assente num remédio simples: autoridade. A esquerda tradicional tem outro remédio simples: projecto de desenvolvimento nacional. É óbvio que precisamos de ambos, isto é, de pontos fixos que comandem a lealdade dos cidadãos, mesmo nos momentos mais difíceis. Mas, porque a lealdade tem de ser sentida por todos, e não apenas por fiéis das maiorias de plantão, os moderados da «direita» e da «esquerda» deviam procurar outro «remédio»: reformas institucionais que renovem a credibilidade da democracia portuguesa, das suas normas gerais, e da sua capacidade para acomodar mudanças, descontentamentos e desilusões (bem como, talvez não menos importante, ilusões).
À distância, é difícil sugerir medidas concretas de reforma institucional. Mas há direcções gerais que podem ser citadas. Parece óbvio que o sistema eleitoral português -- que foi adequado à fase de instauração democrática, favorecendo a disciplina partidária à custa da ligação eleitor-deputado -- devia ser moderadamente reformado. O Parlamento devia ser visto como a sede do escrutínio permanente da actividade do governo, e como o primeiro lugar a que os eleitores se dirigem para apresentar as suas reclamações.
É urgente remover a impressão de que o sistema político está a favorecer a corrupção e o clientelismo. E é urgente combater a ideia de que o poder judicial é o mecanismo fundamental no combate à corrupção e ao clientelismo -- uma ideia que se instalou em Itália, e que se alargou a Espanha e, talvez, à França, devido à incapacidade desses sistemas políticos gerarem mecanismos fiáveis de escrutínio e responsabilização. Uma hipótese interessante seria, talvez, a constituição de uma comissão independente, sem poderes executivos, que acompanhasse a alocação dos fundos europeus e lhes desses publicidade regular.
Também no plano económico e social deviam ser encaradas medidas que favorecessem a coesão nacional, evitando que esta fosse confundida com a «inveja democrática» contra os ganhadores. É imprescindível que a plena integração europeia não seja entendida como o enriquecimento de alguns à custa do empobrecimento de muitos, mas como a abertura de oportunidades leais de que todos devem usufruir, embora com resultados desiguais.
Em suma, se quisermos continuar à altura do exemplo dado por Portugal na transição para a democracia, devíamos concentrar esforços no reforço da credibilidade das instituições e das regras gerais a que obedecem, e não na democratização artificial, de tipo já justamente classificado de «maoista», do conflito político.
Gostaria de submeter aqui a hipótese de que um factor crucial do sucesso português na transição para a democracia foi a prioridade concedida ao acordo sobre regras gerais, em detrimento do acordo sobre objectivos particulares. Se essa hipótese estiver correcta, a prioridade de regras gerais sobre objectivos particulares volta hoje a ser crucial na democracia portuguesa.
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