<DOC>
<DOCNO>PUBLICO-19950330-119</DOCNO>
<DOCID>PUBLICO-19950330-119</DOCID>
<DATE>19950330</DATE>
<CATEGORY>Diversos</CATEGORY>
<TEXT>
O património cultural do Côa não pode ir por água abaixo
Vítor Oliveira Jorge *
As primeiras manifestações artísticas da humanidade, datáveis de há uns 30 mil anos, ocorrem na sua esmagadora maioria em grutas, situadas principalmente no Sudoeste da França e no extremo Norte de Espanha. São pinturas e gravuras praticadas nas paredes das cavernas, como em Altamira (Espanha) e Lascaux (França). Existe também a chamada arte móvel, constituída por objectos «decorados» ou pequenas esculturas, e alguns destes têm uma expansão pan-europeia, ocorrendo por vezes em locais de ar livre.
Neste mundo artístico, a Meseta ibérica constituía até há alguns anos uma simples e pobre periferia. Conheciam-se algumas grutas (de que a portuguesa do Escoural -- Alentejo -- era a manifestação mais ocidental), que revelaram arte parietal e/ou móvel.
Começou-se depois a encontrar arte parietal de ar livre e essa foi a grande novidade dos anos 80 do nosso século. Mazouco, no concelho de Freixo de Espada à Cinta, com o seu magnífico cavalo gravado, rodeado de outros animais, tornou-se histórico, sendo hoje citado em todos os manuais, como o célebre «Atlas de Arqueologia» da Time. Provavelmente, a área em torno de Mazouco conteve outras gravuras; mas estas foram submersas pelas águas do Douro e do seu afluente, a ribeira de Albagueira. Em 1989 foi descoberto o complexo de Siega Verde, no rio Águeda, o qual tem cerca de 550 figuras do período paleolítico superior (há cerca de 18 mil anos), as quais têm vindo a ser estudadas e publicadas desde então pelos professores da Universidade de Alcalá de Henares, Rodrigo de Balbim Behrmann e Javier Alcolea Gonzalez.
Mazouco e, sobretudo, Siega Verde, deixavam antever a possibilidade de um dia, nos xistos e grauvaques do Douro ou seus afluentes, se encontrarem novas gravuras paleolíticas.
Mas tal possibilidade tornou-se uma realidade, que excedeu todas as eventuais expectativas, no rio Côa, ao longo de 10 ou mais quilómetros do seu percurso, o que o torna o maior santuário desta época ao ar livre no mundo. Há ali certamente milhares de gravuras praticadas nas rochas, em sítios escolhidos pelo seu valor simbólico, numa espécie de «marcação» da paisagem, que não era casual, mas obedecia a um complexo sistema de natureza religiosa.
Como sabemos isso? Por que razão chamamos santuários a esses locais?
Quando nos finais do século XIX, foi descoberta a arte paleolítica, a primeira ideia que sobre ela vingou foi a da «arte pela arte». Ou seja, os «artistas do Paleolítico pintariam ou gravariam as paredes das grutas com uma finalidade puramente estética. Tratava-se de uma nítida projecção no passado da concepção moderna da arte, e portanto anacrónica. Mais tarde, nos inícios do século XX, quando se começou a conhecer melhor as populações caçadoras-recolectoras do planeta, verificou-se que para nenhuma delas (como os Aborígenes australianos) a prática de grafismos era gratuita, mas estava imbuída de intencionalidade, inserida no quotidiano das populações. E surgiu a teoria da «arte mágica». Os caçadores pintariam animais de espécies de que se alimentavam para que, por magia simpática, se assegurassem da sua captura ou promoverem a sua fertilidade e propagação. Um materialismo de pequeno alcance presidia a estas concepções, inspiradas no espírito anti-clerical de alguns dos seus defensores.
Só nos anos 60 do nosso século a perspectiva «estruturalista» de Leroi-Gourhan revolucionaria por completo estas teorias redutoras e primárias. A partir de um estudo exaustivo e de um tratamento estatístico das figurações parietais e móveis, aquele professor de Paris concluiu que os temas mais representados eram os dos bovídeos (bois e bisontes) e equídeos, seguidos de toda uma série de animais secundários, como os cervídeos. Estes com frequência, estavam em zonas de passagem ou figuravam na periferia dos painéis. Tais temas animalistas eram acompanhados de sinais esquemáticos, que também podiam ser reduzidos a dois grandes grupos: os sinais cheios (interpretáveis como alusões ao feminino) e os sinais alongados, conotáveis com o princípio masculino. Estaríamos pois, na arte do Paleolítico superior, perante o suporte gráfico de uma complexa mitologia, que parecia organizar-se em torno de princípios duais, representando os cavalos o masculino e os bisontes ou auroques o feminino. As próprias grutas, na sua forma tão específica, como invaginações naturais, poderiam estar conectadas com uma realidade feminina.
Se as interpretações de Leroi-Gourhan são, ainda hoje, controversas, não há dúvida de que elas marcaram uma revolução na maneira como passamos a ver a arte do Paleolítico. Animais, sinais, ou figuras humanas, não tinham sido representados ao acaso, justapostas ao longo do tempo anarquicamente, em momentos de ócio ou com puras intenções de expressão estética; nem tinham sido figurados apenas para se assegurar um melhor êxito nas caçadas. As grutas eram todos organizados, em que a relação das figuras entre si e com a topografia desses locais era altamente significativa. Ou seja, as cavernas eram a moldura que dava sentido às próprias composições que, longe de serem realistas, estavam impregnadas de um refinado simbolismo, não só na escolha sistemática dos temas tratados, mas também nos convencionalismos plásticos que evidenciavam.
É isso que nós notamos agora no Côa, mas desta vez ao ar livre, e numa extensão tão vasta, que nos vai permitir, pela primeira vez, perceber como é que estes nossos antepassados organizavam conceptualmente a paisagem, como se esta última fosse uma gigantesca gruta a céu aberto. Os cavalos e os bois são aí os mais representados. Com frequência têm grandes dimensões ou são picotados de forma a serem mais visíveis. Pelo contrário, certos cervídeos ou caprídeos são figurados em posição lateral ou em traço mais fino. Todo um jogo entre o que é para se ver logo, até de longe, e o que só se dá a ver com o tempo está praticado naquelas rochas. A decifração desse jogo, só possível com a limpeza cuidada de rocha a rocha e com o estudo sem pressas, é, só por si, um fascinante trabalho. Muitas superfícies que hoje parece não conterem gravuras poderão tê-las, ou mesmo estar recheadas das mesmas, só sendo visíveis em certos momentos do dia ou segundo determinados ângulos de luz. A relação dos painéis gravados com os painéis não gravados, destes com a topografia envolvente, com os cursos de água e com todos os outros elementos da paisagem é um dado fundamental da pesquisa. É por isso que as alterações já produzidas pelas obras da projectada barragem, mesmo que estas últimas parassem hoje mesmo, constituiriam, por si sós, um gravíssimo atentado a um património que deve ser considerado como uma edição única da Bíblia ou do Corão: um livro de sabedoria milenária dos primeiros europeus modernos, escrito na rocha há 20.000 anos.
Tudo o que foi dito visa sustentar a afirmação de que, mesmo que fosse possível cortar cada rocha gravada e colocá-la noutro local, a sua relação mútua e com a paisagem perder-se-iam, destruindo irremediavelmente o seu sentido. É essa a razão que nos leva a dizer que a barragem e a preservação e usufruto deste imenso santuário rupestre são incompatíveis. Mesmo admitindo que isso fosse tecnicamente possível, «salvar» algumas gravuras e condenar as restantes e todo o vale que lhes dá contexto, seria como guardar algumas páginas de um livro único e precioso e queimar todo o resto. Para sempre e irremediavelmente.
É isto que é importante transmitir. As pessoas que estão contra a barragem não são fundamentalistas ecológicos, adversários do progresso ou teimosos sem sentido de equilíbrio ou com os pés não assentes na terra. Pelo contrário. Essas pessoas perceberam que a projectada barragem de Foz Côa, com a sua imensa albufeira, submergiria para sempre todo um ecossistema, que não era visto pelos homens de há 20.000 anos como algo de alheio, de exterior, onde eles fossem «rabiscar as fragas», mas como parte da sua alma. O rio Côa era, com certeza, um rio sagrado, um enorme santuário, com o seu silêncio, com os seus animais e as suas ribeiras, com a memória dos mortos e dos deuses. Um santuário que se preservou milagrosamente até aos nossos dias e a cuja morte não podemos assistir, impávidos e serenos.
Essa morte seria um holocausto cultural tremendo, comparável com as fogueiras que os regimes autoritários fizeram durante a última guerra para queimarem pilhas de livros, para tentarem apagar, intransigentemente, uma parte da memória de muitos milhões de homens e de mulheres, só porque pensavam de maneira diferente. A barragem de Foz Côa seria um dos maiores actos de vandalismo jamais praticados num país com 8 séculos de história e de cultura, que se honra de ser uma nação tolerante.
Estarei com estas palavras a ofender os promotores da barragem? Não é essa a minha intenção. Compreendo a sua falta de conhecimentos em Pré-História, assim como eu assumo a minha ignorância em matérias de engenharia, e tantas outras. Mas, por favor, saibam ouvir, neste caso, quem sabe do assunto, senhores engenheiros e senhores políticos! Ouçam a voz de centenas de milhares de pessoas que, em todo o mundo, apelam para o governo português para que trave, quanto antes, este crime cultural. Tenham a coragem de fazer marcha atrás, admitindo o erro, aliás certamente involuntário. E colaboremos todos numa solução alternativa, planeada, que dê emprego e verdadeiro desenvolvimento às gentes de Foz Côa e do interior em geral. Essa solução existe e pode ainda ser implementada. É uma questão de decisão política que, a não ser tomada já, tornará tristemente célebres, para todo o sempre, os nossos actuais governantes. Não creio que o desejem; acredito, apesar dos formidáveis interesses em jogo, que o processo ainda é reversível e que o prestígio do país será reposto, até enriquecido, e que as populações de Foz Côa se regozijarão, no futuro, com a solução que se terá de encontrar. A paragem da barragem, solicitada pelos peritos da UNESCO, é apenas o começo de uma nova fase, fase de muito trabalho, de investimento em imaginação e em dinheiro, para criarmos aqui um projecto grandioso, certamente um dos mais ambiciosos deste país durante o corrente século, e que orgulhará a nossa geração e quem o decidir executar.
Em resumo, que projecto é esse? A criação de um vasto parque natural e arqueológico luso-espanhol, recorrendo, se possível, a fundos comunitários vocacionados para a promoção do desenvolvimento de regiões fronteiriças. Esse parque contará com um museu e centro de estudos, capaz de albergar estudiosos de todo o mundo e permitir a realização de cursos e de congressos. Aí se poderá vender uma imensidão de produtos culturais, desde postais e t-shirts até livros e vídeos. Aí se mostrarão os resultados das escavações e análises entretanto feitas em toda a área. Circuitos pedestres e para jeeps, devidamente sinalizados, mapas e brochuras, guias treinados para o efeito, dominando várias línguas, encaminharão os turistas para as diversas zonas do vale, onde os esperarão placards explicativos de cada conjunto de gravuras, ou de cada estação arqueológica entretanto estudada e musealizada. Esses turistas alimentarão uma plêiade de restaurantes, hotéis, pousadas, parques de campismo, permitirão reactivar, por exemplo, a linha de caminho de ferro do Douro até Espanha, ligando o Côa e o Águeda. Os vinhos da região tornar-se-ão ainda mais famosos em todo o mundo, bem como todos os valores culturais e naturais da zona.
Nada disto surgirá por encanto, mas é óbvio que exigirá muito trabalho. Mas o vale do Côa merece-o. Nele existem sinais de ocupação humana desde o Paleolítico superior até hoje. Todos os actuais estudantes de Arqueologia do país, desde que tornados profissionais competentes, não chegarão para integrar ou coordenar as equipas que terão de se formar. Mas o vale não precisará de ficar interdito aos turistas durante os estudos. Com uma articulação bem planeada, investigação e desenvolvimento de um projecto de rentabilização imediata irão a par.
Não sou natural de Foz Côa, mas trabalho ali desde 1989 e apaixonei-me por aquela terra. Que as minhas palavras sejam entendidas como um contributo para o seu autêntico progresso e valorização, ditadas por um imperativo de consciência, e com todo o respeito por todos quantos ali trabalham e se orgulham do que é seu. E neste caso, do que também é de todos nós, portugueses, e da humanidade em geral. Bem hajam os que me souberem ouvir sem preconceitos.
* Professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
</TEXT>
</DOC>